sábado, 9 de setembro de 2017

Uns brincaram a fazer a lei e outros cumprem-na vergonhosamente

Poderia referir-me a outras leis e decretos-lei, mas a que está na mira hoje é a Lei n.º 46/2005, de 29 de agosto, que estabelece limites à renovação sucessiva de mandatos dos presidentes dos órgãos executivos das autarquias locais.
Segundo o seu art.º 2.º (esta lei tem apenas dois artigos), ela entrou em vigor apenas a 1 de janeiro de 2006, apesar de aprovada na Assembleia da República a 28 de julho de 2005, promulgada a 14 de agosto e referendada a 18 de agosto.
O essencial do estipulado vem no art.º 1.º, que se desdobra em três números, que, a seguir, se transcrevem:
“1. O presidente de câmara municipal e o presidente de junta de freguesia só podem ser eleitos para três mandatos consecutivos, salvo se no momento da entrada em vigor da presente lei tiverem cumprido ou estiverem a cumprir, pelo menos, o 3.º mandato consecutivo, circunstância em que poderão ser eleitos para mais um mandato consecutivo.
“2. O presidente de câmara municipal e o presidente de junta de freguesia, depois de concluídos os mandatos referidos no número anterior, não podem assumir aquelas funções durante o quadriénio imediatamente subsequente ao último mandato consecutivo permitido.
“3. No caso de renúncia ao mandato, os titulares dos órgãos referidos nos números anteriores não podem candidatar-se nas eleições imediatas nem nas que se realizem no quadriénio imediatamente subsequente à renúncia.”.
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Uma lei tão extensa (!) e de tão intricada complexidade (!) deu pano para mangas pelo tempo que demorou a negociar entre os partidos liderados, ao tempo, por José Sócrates e por Marques Mendes e pelas dificuldades de interpretação que levantou aquando da sua real aplicação, ou seja, por ocasião das eleições autárquicas de 2013.
Se a motivação da limitação de mandatos na presidência de órgãos executivos era motivo para se legislar, a lei deveria estender-se aos presidentes de governo (da República e das Regiões Autónomas), até porque se aplica a norma, desde o princípio do nosso atual ordenamento jurídico-constitucional, ao Presidente da República, a quem se permite apenas o exercício de dois mandatos consecutivos. E dizem que não tem poderes executivos! Quem terá mais influência social e económica que os presidentes de governo? Ou será que o mal está apenas nos autarcas?
Por outro lado, se o legislador estivesse a trabalhar com seriedade, poderia ser generoso deixando que aqueles que vieram a ser impedidos fossem eleitos para mais um mandato e não dois, como foi possível esticando a parte final do n.º 1 do art.º 1.º, dada a entrada em vigor da lei apenas a 1 de janeiro do ano seguinte em que os eleitos estavam no exercício de mandato que haviam de cumprir como se não houvera a lei.
E, continuando a falar da putativa premência da limitação de mandatos como dissuasão das indevidas influências políticas, a lei deveria abranger os autarcas que servem a autarquia a tempo inteiro e não apenas os presidentes de câmara municipal e/ou de junta de freguesia. Caso contrário, o caciquismo e a dependência do executivo municipal mantêm-se, como se verifica em tantos casos. Não vejo, porém, inconveniente a que integrem um órgão não executivo (assembleia municipal ou de freguesia).
Pior foi o que sucedeu em 2013. Tendo surgido dúvidas se os presidentes de Câmara e/ou de junta poderiam ou não candidatar-se a outras autarquias (câmaras de outro concelho ou juntas de outra freguesia), os dois principais partidos políticos (liderados por Passos e por Seguro) não tiveram a coragem de promover a clarificação da norma por via legislativa no Parlamento. Porém, o Presidente da República (Cavaco Silva) veio a terreiro referir que o texto que chegara às mãos do seu antecessor para promulgação referia, em vez das expressões “o presidente de câmara municipal e o presidente de junta de freguesia”, as expressões “o presidente da câmara municipal e o presidente da junta de freguesia”, a insinuar que a intenção do legislador seria impedir a eleição para a câmara ou para a freguesia em que o titular estava em exercício.
Obviamente, os juristas deram pouca relevância ao contributo presidencial e os tribunais, chamados a dirimir as questões, fizeram a interpretação restritiva da lei, por se tratar de norma restritiva de direitos e tendo em conta o velho aforismo “in dubio favores ampliandi, odia restringenda”.
Assim, ao abrigo da lei, houve cidadãos presidentes de câmara que puderam candidatar-se à presidência de outras câmaras municipais (tendo alguns sido eleitos) e cidadãos presidentes de junta que se candidataram a outras juntas de freguesia (e tendo alguns sido eleitos). E houve cidadãos presidentes de junta que se candidataram, ao abrigo da lei, à união de freguesias a que passou a pertencer a freguesia de cuja junta eram presidentes, alegando junto do poder judicial que se tratava de outra entidade política – alegação que os tribunais acolheram, não tendo em conta o princípio exposto na alínea a) do art.º 3.º da Lei n.º 22/2012, de 30 de maio: “preservação da identidade histórica, cultural e social das comunidades locais, incluindo a manutenção da anterior denominação das freguesias agregadas”.
Ora, a ser razoável a candidatura à presidência da junta da união de freguesias a que passou a pertencer a freguesia de cuja junta o cidadão era presidente, foi pena que nenhum cidadão presidente de câmara se tivesse recandidatado pela enésima vez à presidência da câmara do município em que estava em funções alegando que a realidade do município era diferente, dada a supressão e/ou agregação de freguesias. Com efeito, um composto de sete elementos é diferente de um composto de doze. Os tribunais aceitariam esta alegação?
Está confirmado pela sucessão de acontecimentos que Sócrates e Marques Mendes andaram a brincar às leis e que o combate ao caciquismo e à criação de dependências não era a sério. E os deputados não souberam ou não quiseram saber o que estavam a votar.
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Já em 2013, um presidente de junta que havia cumprido muito mais que três mandatos figurava em segundo lugar na lista do PSD que se apresentava para a assembleia de freguesia da mesma autarquia e demonstrava publicamente “a intenção de continuar a ocupar o cargo de presidente da junta”, após a renúncia da esposa, que encabeçava a referida lista. Na ocasião, conforme se lia no JN, o Presidente da concelhia de outro partido lamentava:
“É uma vergonha o que se está a passar naquela freguesia. É uma maneira habilidosa de tentar contornar a lei (de limitação de mandatos) e enganar as pessoas,”.
Mas o PSD acabou por ganhar as eleições e dizia o mesmo crítico:
“Enganaram as pessoas, porque colocaram nos cartazes a fotografia dele. E ela não apareceu em lado nenhum, nem sequer nos comícios. O nome dela foi só para o tribunal.”.
Aquela senhora, que é jurista (e advogada), não renunciou e o marido não a pôde substituir permanentemente, mas obviamente que influenciou e condicionou como soube e quis.
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Desta vez, no concelho a que pertence a aludida freguesia, o presidente da câmara, do PSD, eleito há três mandatos consecutivos, integra a lista candidata ao mesmo órgão autárquico em 2.º lugar, seguindo como cabeça de lista o atual vice-presidente. Em relação à aludida freguesia, o impedido de se candidatar como cabeça de lista à assembleia de freguesia e, por consequência, a presidente da junta, candidata-se agora já sem o impedimento da Lei n.º 46/2005, de 29 de agosto – uma lei pouco mais que decorativa! Podia não ser assim, mas, já que é, cumpra-se.
É de referir que o atual presidente de câmara, que agora vai em segundo, quase na idade da reforma/aposentação, não revela os seus planos para daqui a 4 anos, alegando que não quer “dizer nada que seja comprometedor” e que “entrega isso ao tempo” (vd JN de 8 de setembro).
Gosto imenso da razão amorosa que o autarca apresenta como justificação. É com prazer que a transcrevo do JN de ontem:
“O meu vice-presidente ajudou-me muito nestes 12 anos e entendi que agora tinha a obrigação de o ajudar. (…). Fez questão que eu fosse em segundo lugar na lista e a única coisa que pretendo é que esta equipe (sic) continue a trabalhar pelo concelho.”.
Como são gratos os autarcas e como são eles que não querem, os outros é que querem! Não será, antes, a passagem de atestado de incompetência ao cabeça de lista e a expressão máxima da hipocrisia e do interesse?
O aludido presidente de câmara não se sentirá desconfortável por ser vice-presidente, porque sempre trabalharam em equipa e, além disso, foi vice-presidente “durante 18 ou 20 anos”, o que nunca lhe fez confusão, mas assegura que não está “alapado no poder” – que faria se estivesse! Mais: diz displicentemente que está “num cargo eleito e não nomeado” e que, “se o povo não quiser esta equipa, manda-nos embora”.
Diga-se que nunca foi o vice-presidente – figura criada já no século XXI –, mas vereador substituto (o 2.º da lista vencedora), que não tinha de exercer funções em regime de permanência.
O aludido 2.º na lista para a junta de freguesia podia ser membro da assembleia de freguesia (órgão não executivo), mas esta elegeu-o para vogal da junta (secretário), que, segundo a lei autárquica, substitui o presidente nas suas faltas e impedimentos. Ora, segundo a lei de limitação de mandatos, ele não poderia assumir a presidência da junta mesmo interinamente – o que quer dizer que a freguesia esteve 4 anos em situação irregular só para satisfação de interesses e caprichos particulares protegidos por um partido democrático.
É o que vai acontecer na câmara se a lista ganhar as eleições. O candidato que vai em 2.º – que poderia candidatar-se à assembleia municipal, órgão não executivo – não pode assumir a vice-presidência, ou seja, substituir o presidente nas faltas e impedimentos deste. Terá que ser outro vereador a fazê-lo. E a Câmara funcionará de forma irregular. E não havia necessidade.
Esta do sobe e desce aconteceu na Rússia e em Timor-Leste em que se alternaram em mandatos o Presidente da República e o Primeiro-Ministro, sem grandes vantagens.
Lembro-me de que a Ação Católica da minha terra, que tanto bem fez, estiolou precisamente por não renovar a direção: limitavam-se a trocar de posição funcional presidente, secretário e tesoureiro.
Ora, em política, não é necessário nem pode ser. Mas, se o povo assim quer, assim o terá. Todavia, tinha razão o dominicano que, ao dizer-lhe o franciscano “Nada temos, mas tudo possuímos”, replicava: “Para quem não tem vergonha todo o mundo é seu”!   
Não vale, senhoras e senhores, cumprir a lei de qualquer maneira, sobretudo se de forma vergonhosa e sem escrúpulos! Não vale, senhores/as líderes partidários/as, brincar às leis e deixá-las navegar na eficácia, como não vale os senhores deputados/as exercerem sem ponderar o que fazem!

2017.09.09 – Louro de Carvalho

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