Poderia
referir-me a outras leis e decretos-lei, mas a que está na mira hoje é a Lei
n.º 46/2005, de 29 de agosto, que estabelece limites à renovação sucessiva de
mandatos dos presidentes dos órgãos executivos das autarquias locais.
Segundo
o seu art.º 2.º (esta lei tem apenas dois artigos), ela entrou em vigor apenas a 1
de janeiro de 2006, apesar de aprovada na Assembleia da República a 28 de julho
de 2005, promulgada a 14 de agosto e referendada a 18 de agosto.
O
essencial do estipulado vem no art.º 1.º, que se desdobra em três números, que,
a seguir, se transcrevem:
“1. O presidente de câmara municipal e o presidente de junta de freguesia
só podem ser eleitos para três mandatos consecutivos, salvo se no momento da
entrada em vigor da presente lei tiverem cumprido ou estiverem a cumprir, pelo
menos, o 3.º mandato consecutivo, circunstância em que poderão ser eleitos para
mais um mandato consecutivo.
“2. O presidente de câmara municipal e o presidente de junta de
freguesia, depois de concluídos os mandatos referidos no número anterior, não
podem assumir aquelas funções durante o quadriénio imediatamente subsequente ao
último mandato consecutivo permitido.
“3. No caso de renúncia ao mandato, os titulares dos órgãos referidos nos
números anteriores não podem candidatar-se nas eleições imediatas nem nas que
se realizem no quadriénio imediatamente subsequente à renúncia.”.
***
Uma lei tão extensa (!) e de tão intricada complexidade (!) deu pano para mangas pelo tempo que demorou a negociar entre
os partidos liderados, ao tempo, por José Sócrates e por Marques Mendes e pelas
dificuldades de interpretação que levantou aquando da sua real aplicação, ou
seja, por ocasião das eleições autárquicas de 2013.
Se a motivação da limitação de mandatos na presidência
de órgãos executivos era motivo para se legislar, a lei deveria estender-se aos
presidentes de governo (da República e das Regiões Autónomas), até porque se aplica a norma, desde o
princípio do nosso atual ordenamento jurídico-constitucional, ao Presidente da
República, a quem se permite apenas o exercício de dois mandatos consecutivos.
E dizem que não tem poderes executivos! Quem terá mais influência social e económica
que os presidentes de governo? Ou será que o mal está apenas nos autarcas?
Por outro lado, se o legislador estivesse a
trabalhar com seriedade, poderia ser generoso deixando que aqueles que vieram a
ser impedidos fossem eleitos para mais um mandato e não dois, como foi possível
esticando a parte final do n.º 1 do art.º 1.º, dada a entrada em vigor da lei
apenas a 1 de janeiro do ano seguinte em que os eleitos estavam no exercício de
mandato que haviam de cumprir como se não houvera a lei.
E, continuando a falar da putativa premência
da limitação de mandatos como dissuasão das indevidas influências políticas, a
lei deveria abranger os autarcas que servem a autarquia a tempo inteiro e não
apenas os presidentes de câmara municipal e/ou de junta de freguesia. Caso contrário,
o caciquismo e a dependência do executivo municipal mantêm-se, como se verifica
em tantos casos. Não vejo, porém, inconveniente a que integrem um órgão não executivo
(assembleia municipal
ou de freguesia).
Pior foi o que sucedeu em 2013. Tendo surgido
dúvidas se os presidentes de Câmara e/ou de junta poderiam ou não candidatar-se
a outras autarquias (câmaras de outro concelho ou juntas de outra freguesia), os dois principais partidos políticos (liderados por Passos e por Seguro) não tiveram a coragem de promover a
clarificação da norma por via legislativa no Parlamento. Porém, o Presidente da
República (Cavaco
Silva) veio a
terreiro referir que o texto que chegara às mãos do seu antecessor para
promulgação referia, em vez das expressões “o presidente de câmara municipal e o
presidente de junta de freguesia”, as expressões “o presidente
da câmara municipal e o presidente da junta de freguesia”, a insinuar que a
intenção do legislador seria impedir a eleição para a câmara ou para a
freguesia em que o titular estava em exercício.
Obviamente, os juristas deram pouca relevância
ao contributo presidencial e os tribunais, chamados a dirimir as questões,
fizeram a interpretação restritiva da lei, por se tratar de norma restritiva de
direitos e tendo em conta o velho aforismo “in
dubio favores ampliandi, odia restringenda”.
Assim, ao abrigo da lei, houve cidadãos presidentes
de câmara que puderam candidatar-se à presidência de outras câmaras municipais (tendo alguns sido eleitos) e cidadãos presidentes de junta que se candidataram
a outras juntas de freguesia (e tendo alguns sido eleitos). E houve cidadãos presidentes de junta que
se candidataram, ao abrigo da lei, à união de freguesias a que passou a
pertencer a freguesia de cuja junta eram presidentes, alegando junto do poder
judicial que se tratava de outra entidade política – alegação que os tribunais
acolheram, não tendo em conta o princípio exposto na alínea a) do art.º 3.º da Lei
n.º 22/2012, de 30 de maio: “preservação da
identidade histórica, cultural e social das comunidades locais, incluindo a
manutenção da anterior denominação das freguesias agregadas”.
Ora, a ser razoável a candidatura à
presidência da junta da união de freguesias a que passou a pertencer a freguesia
de cuja junta o cidadão era presidente, foi pena que nenhum cidadão presidente
de câmara se tivesse recandidatado pela enésima vez à presidência da câmara do
município em que estava em funções alegando que a realidade do município era
diferente, dada a supressão e/ou agregação de freguesias. Com efeito, um
composto de sete elementos é diferente de um composto de doze. Os tribunais
aceitariam esta alegação?
Está confirmado pela sucessão de
acontecimentos que Sócrates e Marques Mendes andaram a brincar às leis e que o
combate ao caciquismo e à criação de dependências não era a sério. E os
deputados não souberam ou não quiseram saber o que estavam a votar.
***
Já em 2013, um presidente de junta que havia
cumprido muito mais que três mandatos figurava em segundo lugar na lista do PSD
que se apresentava para a assembleia de freguesia da mesma autarquia e
demonstrava publicamente “a intenção de continuar a ocupar o cargo de
presidente da junta”, após a renúncia da esposa, que encabeçava a referida
lista. Na ocasião, conforme se lia no JN,
o Presidente da concelhia de outro partido lamentava:
“É uma vergonha o que se está a passar naquela freguesia.
É uma maneira habilidosa de tentar contornar a lei (de limitação de mandatos) e
enganar as pessoas,”.
Mas o PSD acabou por ganhar as eleições
e dizia o mesmo crítico:
“Enganaram
as pessoas, porque colocaram nos cartazes a fotografia dele. E ela não apareceu
em lado nenhum, nem sequer nos comícios. O nome dela foi só para o tribunal.”.
Aquela senhora, que é
jurista (e
advogada), não renunciou
e o marido não a pôde substituir permanentemente, mas obviamente que
influenciou e condicionou como soube e quis.
***
Desta
vez, no concelho a que pertence a aludida freguesia, o presidente da câmara, do
PSD, eleito há três mandatos consecutivos, integra a lista candidata ao mesmo órgão
autárquico em 2.º lugar, seguindo como cabeça de lista o atual vice-presidente.
Em relação à aludida freguesia, o impedido de se candidatar como cabeça de
lista à assembleia de freguesia e, por consequência, a presidente da junta, candidata-se
agora já sem o impedimento da Lei n.º 46/2005, de 29 de agosto – uma lei pouco
mais que decorativa! Podia não ser assim, mas, já que é, cumpra-se.
É
de referir que o atual presidente de câmara, que agora vai em segundo, quase na
idade da reforma/aposentação, não revela os seus planos para daqui a 4 anos,
alegando que não quer “dizer nada que seja comprometedor” e que “entrega isso
ao tempo” (vd JN de 8
de setembro).
Gosto
imenso da razão amorosa que o autarca apresenta como justificação. É com prazer
que a transcrevo do JN de ontem:
“O meu vice-presidente ajudou-me muito nestes 12
anos e entendi que agora tinha a obrigação de o ajudar. (…). Fez questão que eu
fosse em segundo lugar na lista e a única coisa que pretendo é que esta equipe
(sic) continue a trabalhar pelo concelho.”.
Como
são gratos os autarcas e como são eles que não querem, os outros é que querem! Não
será, antes, a passagem de atestado de incompetência ao cabeça de lista e a
expressão máxima da hipocrisia e do interesse?
O
aludido presidente de câmara não se sentirá desconfortável por ser vice-presidente,
porque sempre trabalharam em equipa e, além disso, foi vice-presidente “durante
18 ou 20 anos”, o que nunca lhe fez confusão, mas assegura que não está “alapado
no poder” – que faria se estivesse! Mais: diz displicentemente que está “num
cargo eleito e não nomeado” e que, “se o povo não quiser esta equipa, manda-nos
embora”.
Diga-se
que nunca foi o vice-presidente – figura criada já no século XXI –, mas
vereador substituto (o 2.º da lista vencedora), que não tinha de exercer funções
em regime de permanência.
O
aludido 2.º na lista para a junta de freguesia podia ser membro da assembleia de
freguesia (órgão não executivo), mas esta elegeu-o para vogal da junta (secretário), que, segundo a lei autárquica,
substitui o presidente nas suas faltas e impedimentos. Ora, segundo a lei de
limitação de mandatos, ele não poderia assumir a presidência da junta mesmo interinamente
– o que quer dizer que a freguesia esteve 4 anos em situação irregular só para
satisfação de interesses e caprichos particulares protegidos por um partido democrático.
É
o que vai acontecer na câmara se a lista ganhar as eleições. O candidato que
vai em 2.º – que poderia candidatar-se à assembleia municipal, órgão não
executivo – não pode assumir a vice-presidência, ou seja, substituir o
presidente nas faltas e impedimentos deste. Terá que ser outro vereador a
fazê-lo. E a Câmara funcionará de forma irregular. E não havia necessidade.
Esta
do sobe e desce aconteceu na Rússia e em Timor-Leste em que se alternaram em
mandatos o Presidente da República e o Primeiro-Ministro, sem grandes
vantagens.
Lembro-me
de que a Ação Católica da minha terra, que tanto bem fez, estiolou precisamente
por não renovar a direção: limitavam-se a trocar de posição funcional presidente,
secretário e tesoureiro.
Ora,
em política, não é necessário nem pode ser. Mas, se o povo assim quer, assim o
terá. Todavia, tinha razão o dominicano que, ao dizer-lhe o franciscano “Nada temos, mas tudo possuímos”,
replicava: “Para quem não tem vergonha
todo o mundo é seu”!
Não
vale, senhoras e senhores, cumprir a lei de qualquer maneira, sobretudo se de
forma vergonhosa e sem escrúpulos! Não vale, senhores/as líderes partidários/as,
brincar às leis e deixá-las navegar na eficácia, como não vale os senhores
deputados/as exercerem sem ponderar o que fazem!
2017.09.09 – Louro de Carvalho
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