sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Final de 2021 é momento de balanço e de exame de consciência

 

A agência Ecclesia, para balanço do ano que agora chega ao seu termo, recolheu o testemunho de 5 jornalistas, que sintetizam como factos marcantes em Portugal os impactos da pandemia, a resposta da hierarquia eclesiástica aos abusos de menores, a aposta na juventude e várias nomeações episcopais.

Assim, Damião Pereira, diretor do jornal ‘Diário do Minho’, da Arquidiocese de Braga, aponta, como “aspeto mais negativo” deste ano, do ponto de vista religioso, a pandemia de covid-19, que limitou a realização de várias manifestações da religiosidade das gentes do Minho, um povo que “tem a necessidade de encher as igrejas com a sua devoção, a sua festa”. E, como ponto positivo, realça a nomeação e a tomada de posse de Dom João Lavrador como bispo da vizinha Diocese de Viana do Castelo, sufragânea da Arquidiocese.

Olímpia Mairos, da ‘Rádio Renascença’, centra os destaques positivos e negativos na pandemia, que entende como uma oportunidade para a Igreja Católica “abrir as portas, sair e ir ao encontro daqueles que ficaram isolados”, lamentando a incapacidade de “ir ao encontro das periferias”. Com efeito, por exemplo, no território de Trás-os-Montes, “as pessoas já têm alguma idade e essas pessoas não andam nas redes sociais, nas novas tecnologias”.

A jornalista salienta ainda “a chaga dos abusos sexuais dentro da Igreja” como aspeto negativo, apesar de salientar a “capacidade de a Igreja querer saber”, nomeadamente em Portugal, com a nomeação de uma comissão dedicada a este tema.


A agência Ecclesia, para balanço do ano que agora chega ao seu termo, recolheu o testemunho de 5 jornalistas, que sintetizam como factos marcantes em Portugal os impactos da pandemia, a resposta da hierarquia eclesiástica aos abusos de menores, a aposta na juventude e várias nomeações episcopais.

Assim, Damião Pereira, diretor do jornal ‘Diário do Minho’, da Arquidiocese de Braga, aponta, como “aspeto mais negativo” deste ano, do ponto de vista religioso, a pandemia de covid-19, que limitou a realização de várias manifestações da religiosidade das gentes do Minho, um povo que “tem a necessidade de encher as igrejas com a sua devoção, a sua festa”. E, como ponto positivo, realça a nomeação e a tomada de posse de Dom João Lavrador como bispo da vizinha Diocese de Viana do Castelo, sufragânea da Arquidiocese.

Olímpia Mairos, da ‘Rádio Renascença’, centra os destaques positivos e negativos na pandemia, que entende como uma oportunidade para a Igreja Católica “abrir as portas, sair e ir ao encontro daqueles que ficaram isolados”, lamentando a incapacidade de “ir ao encontro das periferias”. Com efeito, por exemplo, no território de Trás-os-Montes, “as pessoas já têm alguma idade e essas pessoas não andam nas redes sociais, nas novas tecnologias”.

A jornalista salienta ainda “a chaga dos abusos sexuais dentro da Igreja” como aspeto negativo, apesar de salientar a “capacidade de a Igreja querer saber”, nomeadamente em Portugal, com a nomeação de uma comissão dedicada a este tema.

Por seu turno, António Gonçalves Rodrigues, diretor do jornal ‘Mensageiro de Bragança’ assinala que o relatório sobre os abusos na Igreja na França lançou “uma sombra negra sobre toda a Igreja”, revelando-se importante “a forma como a Igreja vai lidar com este tipo de situações”. Assim, considera importante “a posição da Conferência Episcopal Portuguesa”.

Destaca, no rol dos factos positivos, a nomeação do seu bispo, Dom José Cordeiro, como novo Arcebispo Metropolita de Braga e Primaz das Espanhas, porque “é importante para a Igreja ter uma voz nova”, que conhece uma realidade diferente e aproxima “a Igreja dos mais jovens”.

No âmbito da sociedade, Gonçalves Rodrigues destaca a pandemia de covid-19, pelos efeitos negativos que continua a ter na economia, na “confiança das pessoas”; e, por outro lado, pela forma como o país “se uniu para ultrapassar este problema”.

Já Cláudia Sebastião, da revista ‘Família Cristã’, esperava que a pandemia “trouxesse o melhor” das pessoas e “o melhor do mundo”. Por isso, aponta, como ponto negativo, o “extremismo”, seja nas divisões entre os seres humanos, por exemplo na vacinação e nas medidas de segurança, seja na “chegada ao poder dos Talibãs” no Afeganistão, os deslocados em Cabo Delgado, no norte de Moçambique, e o tratamento das pessoas como se fossem animais nas fronteiras da Europa, no Canal da Mancha, na América do Sul. Segundo a jornalista, o aspeto positivo a destacar é a “entreajuda” entre várias organizações e as “pessoas comuns” no contexto da covid-19, na Igreja e na sociedade, lamentando que as pessoas se tenham desabituado de “serem comunidade, de ir à Igreja, à Missa presencial”.

Na Diocese do Algarve, Samuel Mendonça, diretor do jornal diocesano ‘Folha do Domingo’, considera que a “dinâmica” conexa com a juventude, no âmbito da próxima Jornada Mundial da Juventude (JMJ), em Lisboa, como um dos fatores positivos e, como aspeto negativo. o novo adiamento do encontro diocesano de jovens, pela segunda vez, por causa da pandemia. E salienta que a presença da diocese “nas redes sociais e no ambiente digital se reforçou bastante”, neste ano de 2021.

Acompanhando estes destaques, devo referir o papel incansável das IPSS no apoio às pessoas idosas e o da Cáritas Portuguesa e de toda a rede de cáritas diocesanas nas respostas sociais a inesperadas necessidades sociais em número crescente e nos alertas de atuais e antigos dirigentes para a situação, bem como os apoios do Estado devidamente multiplicados em tempo de pandemia, embora sempre insuficientes e nem sempre atribuídos de forma equitativa, pelo que sempre sob o fogo cruzado da crítica.

É de realçar o esforço de valorização do papel evangelizador, litúrgico, social e cultural dos santuários um pouco por todo o país, com relevo para o Santuário de Fátima, a que os peregrinos regressaram de forma sustentada, embora com a compreensível timidez. Depois, é de apreciar a forma como as dioceses têm aderido ao repto do Papa Francisco no âmbito da caminhada sinodal de 2021 a 2023, bem como ao dinamismo acrescentado à preparação da próxima JMJ em Lisboa.

Em termos da gestão da pandemia, o ano de 2021 foi marcado pela 4.ª vaga e as populações foram afligidas pelas variantes delta e ómicron do SARS CoV-2 e sobre o povo se abateram sucessivas e consecutivas declarações do estado de emergência, com um novo e prolongado confinamento, no qual, por falta de ultrapassagem da suposta rigidez dos prazos constitucionais, os portugueses tiveram de participar numas eleições presidenciais em tempo de inverno, subsequentes à mais cinzenta das campanhas eleitorais em democracia.

Por falar em eleições, o mês de setembro foi momento de eleições autárquicas com os resultados esperados em termos gerais, mas com notórias surpresas em várias autarquias, sendo de destacar o município de Lisboa.  

O processo de vacinação massivo contra a covid-19 começara de forma turbulenta e sem resultados. Porém, com o novo coordenador da taskforce, o processo foi avançando com a mobilização dos serviços e a adesão da esmagadora maioria da população cuja taxa de vacinação chegou aos 88%.

Também o ano de 2021 acolheu a presidência portuguesa do Conselho Europeu no 1.º semestre, com acento na vertente social e de que resultou um mecanismo europeu que serviu de lastro aos planos de recuperação e resiliência (PRR) nacionais, tendo o português ficado marcado por forte contestação como se fora o único instrumento de resolução dos nossos problemas, não se tendo em conta um outro, mais volumoso, o “Portugal 2030”. Por outro lado, a ferrovia teima em não alinhar técnica e economicamente pelos critérios europeus.

Foram ainda aprovados vários decretos do Parlamento, uns mais ou menos pacíficos, mas outros bem contestados. Menciono, só para exemplo, o que aborda um dos temas mais fraturantes na sociedade portuguesa e no mundo, a eutanásia, estando em causa a inviolabilidade da vida humana, a liberdade da pessoa, a vida com dignidade e a morte vivida de forma menos dramática e, para os crentes, a atenção a Deus como o Senhor da Vida e da Morte; o problema laboral, que não consagra com suficiente coragem o trabalho digno; as alterações legislativas atinentes ao comando superior das FA (forças armadas), com as trapalhadas que se teceram em torno delas; e diplomas aprovados no Parlamento que, mesmo não respeitando a norma-travão, foram promulgados pelo Presidente da República (PR).

Não contentes com o ambiente de supercriticismo que se abateu sobre a política portuguesa e o avanço ou estagnação da economia, bem como não atendendo à necessidade premente de atacar eficazmente a pandemia e promover a recuperação económica do país e o seu crescimento, os poderes políticos pensaram mais nos protagonismos de cada órgão do poder ou de cada quadrante partidário e mimaram o país com a reprovação da proposta governamental de Orçamento do Estado para 2022, pelo que o Parlamento sofreu a concretização da ameaça de dissolução que o PR fizera antecipadamente e o povo é chamado a eleições legislativas em tempo em que, apesar de a vacinação em termos gerais, ter corrido muito bem, estar a dotar crescentemente as pessoas com a dose de reforço, bem como a dotá-las da vacina contra a gripe sazonal, e a estender-se às pessoas dos 5 aos 11 anos, o numero de infetados aumenta assustadoramente. Infelizmente não se pensou no país, mas no umbigo dos partidos, do Governo, do Parlamento, do PR.          

Devo, por fim, prestar atenção às preocupações dos decisores políticos e do Papa em relação aos efeitos da pandemia na vida das pessoas e das famílias, nomeadamente daquelas que estão à beira da pobreza ou fundamente mergulhadas nela, bem como às economias dos países, sobretudo os mais pobres, à custa de quem alguns enriquecem de forma obscena; em relação às consequências das alterações climáticas, problema não atacado com a devida sabedoria e energia, devido a poderosos interesses instalados; e em relação aos conflitos que pululam e teimam em fazer os seus enormes estragos.

Em termos eclesiais, é de realçar o empenho do vaticano para com os pobres e os sem-abrigo, e toda a atividade do Papa Francisco, com as viagens internacionais que empreendeu, os alertas que lança e, sobretudo, o lançamento do dinamismo sinodal em Roma e em todas as dioceses.

Por maiores e mais carregadas sombras que pairem sobre o mundo em 2022, é preciso ouvir os profetas da esperança em termos religiosos, políticos, económicos, sociais e, mesmo, no âmbito da pandemia.

Face a tudo isto, cada um, cada comunidade deve fazer ou seu exame de consciência/revisão de vida sobre as responsabilidades que tem na causa da verdade, da vida, dos pobres, da saúde, seja por ação malédica, malévola ou maléfica, seja por omissão premeditada ou supina.  

Neste sentido, para todos e para todas os mais ardentes votos de um grande Ano de 2022 abençoado, próspero e repleto de esperança e bem-estar!

2021.12.31 – Louro de Carvalho

quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

Taizé: de novo adiado o 44.º Encontro Europeu de Jovens em Turim

Deveria ter ocorrido o ano passado, em Turim, Itália, no fim do ano, o 44.º Encontro Europeu de Jovens promovido pela Comunidade Ecuménica de Taizé. Com efeito, foi anunciado isto mesmo em Wroclaw, pelo Irmão Alois, em dezembro de 2019, aquando do 42.º Encontro Europeu animado pela Comunidade de Taizé, que reuniu 15.000 jovens de todo o continente, sendo a primeira vez que um Encontro Europeu iria ter lugar nesta cidade, mas a sétima vez em Itália, depois de Roma (1980, 1982, 1987 e 2012) e Milão (1998 e 2005).

E o Arcebispo Cesare Nosiglia, que foi especialmente a Wroclaw, para estar presente aquando do anúncio, declarou:

O anúncio feito pelo irmão Alois de que Turim será a próxima etapa da ‘Peregrinação de Confiança através da Terra’ enche-nos os corações de alegria e de emoção. Manifesto a minha sincera gratidão ao irmão Alois e à Comunidade de Taizé, em nome de toda a Arquidiocese de Turim e de todas as Confissões Cristãs presentes na nossa região. É para nós um anúncio importante, que representa a confirmação de um vínculo forte, mas também, ao mesmo tempo, resultado de um longo caminho de amizade com a Comunidade de Taizé.”.

Porém, por força das restrições impostas devido à pandemia de covid-19 em todo o mundo, esta etapa da Peregrinação de Confiança teve de ser adiada para o final de dezembro deste ano de 2021. Não obstante, com a continuidade da situação pandémica que acusa um grande recrudescimento na Europa, apesar das vacinas e da observância das restantes normas sanitárias, o evento teve de encontrar uma dupla modalidade. Como explicaram, no início do mês de dezembro (mais exatamente no dia 4), os responsáveis da organização, o tradicional encontro de final de ano será realizado em duas fases: online no final de 2021; e presencial em julho de 2022, em Turim, na região do Piemonte, norte de Itália.

Na verdade, em comunicado, a Comunidade de Taizé informou que “não será possível viver o Encontro Europeu de Turim como o havíamos imaginado” devido à pandemia, lamentando não poder acolher, neste final do ano, aqueles que já haviam organizado a sua viagem e agradecendo às Igrejas, bem como aos habitantes de Turim, “todo o esforço realizado nos últimos meses”.

Para remediar, foi decidido realizar o encontro em duas fases sucessivas: entre 28 de dezembro de 2021 e 1.º de janeiro de 2022, na modalidade online, sendo as transmissões feitas a partir de Turim, com alguns irmãos e com a participação de jovens da região, de forma que “quem quiser participar poderá fazê-lo via internet”; e, de 7 a 10 de julho de 2022, na modalidade presencial em Turim, abrindo as Igrejas de Turim a suas portas aos jovens europeus que “ficarão alojados em famílias e paróquias da região” e se encontrarão para orações, momentos de intercâmbio e oficinas, incluindo a oportunidade de rezar em frente ao Santo Sudário.

Por ocasião do encontro presencial em Turim, “os jovens que o desejarem poderão passar alguns dias em Taizé a caminho de Turim ou depois do encontro, ao retornarem”.

Assim, a primeira parte do evento já está em andamento desde o dia 28 de dezembro e prosseguirá até ao próximo sábado, 1.º de janeiro, conduzida a partir de Turim, por alguns irmãos de Taizé e com a participação de jovens da região.

A todos aqueles que, através da Internet, experimentam este momento de fraternidade, o Papa Francisco assegura a sua proximidade “no pensamento e na oração” e envia as “suas mais calorosas saudações”.

Na mensagem assinada pelo Secretário de Estado da Santa Sé, Cardeal Pietro Parolin, afloram as muitas interrogações do presente que denotam inúmeras inquietações. Com efeito, muitos interrogam-se se o nosso planeta tem futuro, que responsabilidades temos de assumir para lhe assegurar a salvaguarda e tornar a terra habitável. A questão para os jovens é enfatizada com a evocação do premente tema escolhido para esta iniciativa, que é: “Como podemos hoje nos tornar artesãos da unidade?”.

O Papa reconhece que os jovens, ao invés de “cederem ao pessimismo”, decidiram enfrentar corajosamente estas questões e buscar respostas juntos na escuta da Palavra de Deus, pois “é quando estamos juntos que o Espírito de Deus sopra de modo especial”, como se vê no percurso sinodal empreendido pela Igreja (2021-2023) ao procurar “tornar-se mais disponível à obra do Espírito”, na consciência de quanto os discípulos de Cristo “precisam uns dos outros”.

Porfiando que os jovens são parte das soluções que o mundo procura, Francisco salienta a escolha que fizeram de não desviar os olhos do sofrimento humano e das evidentes urgências do momento, mas de “olhar para estas realidades na confiança” que lhes é dada na participação nas soluções. Tudo isto decorre do facto de, a par dos motivos de angústia que emergem neste mundo dos homens, sobressair o dom do Espírito de Deus que “não cessa de operar e de despertar criadores de fraternidade, de solidariedade e de unidade”.

Por consequência, o Cardeal Parolin assegura que o Papa Francisco “pede ao Espírito Santo” que abençoe os “jovens católicos, ortodoxos e protestantes que se unem ao Encontro europeu”, confiando-os “à proteção da Virgem Maria”, para que “possam continuar sendo peregrinos da confiança” para onde quer que o Senhor os mande”.

***

Além do Papa Francisco, enviaram mensagens para este 44.º encontro europeu dos jovens: o Patriarca Ecuménico Bartolomeu, o Patriarcado de Moscovo, o Secretário-Geral Interino do Conselho Mundial de Igrejas, Padre Ioan Sauca, o Secretário do Fórum Mundial Cristão, Rev. Casely Essamuah, o Pastor Christian Krieger, Presidente da Conferência das Igrejas Europeias, a Dra. Rosalee Velloso Ewell, Diretora das Relações com as Igrejas da Aliança Bíblica Universal, o Secretário-Geral das Nações Unidas, Eng. António Guterres, e a Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen.

A Comunidade de Taizé reúne uma centena de irmãos, católicos e de diversas origens evangélicas, vindos de quase 30 países diferentes. Através da sua própria existência, é uma ‘parábola de comunidade’: um sinal concreto de reconciliação entre cristãos divididos e entre povos separados.

Os irmãos da Comunidade ganham a sua vida pelo próprio trabalho. Não aceitam qualquer donativo. E, se um irmão recebe uma herança familiar, a Comunidade oferece-a aos mais pobres. Alguns irmãos vivem em pequenas fraternidades, em zonas desfavorecidas do mundo, em bairros degradados na Ásia, na África, na América latina, para serem aí testemunhas de paz perto daqueles que sofrem; procuram partilhar as condições de vida dos que os rodeiam, esforçando-se por serem uma presença de amor junto dos mais pobres, dos meninos de rua, dos prisioneiros, dos moribundos, dos que estão interiormente feridos por ruturas afetivas ou pelo abandono.

Ao longo dos anos, jovens em número cada vez maior chegam a Taizé, vindos de todos os continentes, para viver semanas de encontros. E irmãs de Santo André, uma comunidade católica internacional fundada há mais de sete séculos, irmãs Ursulinas polacas e irmãs de São Vicente de Paulo assumem uma parte das tarefas ligadas ao acolhimento dos jovens.

Pessoas responsáveis na Igreja também vêm a Taizé. Assim, a comunidade acolheu o Papa São João Paulo II, o Patriarca Ecuménico Bartolomeu de Constantinopla, Metropolitas e Bispos de várias Igrejas Ortodoxas, quatro Arcebispos de Cantuária, os catorze Bispos Luteranos da Suécia e numerosos pastores do mundo inteiro.

A partir de 1962, irmãos e jovens, enviados por Taizé, não cessaram de ir, na maior discrição, aos países da Europa de Leste, para estarem próximos dos que estavam presos dentro das suas próprias fronteiras.

O irmão Roger, o fundador da comunidade, faleceu no dia 16 de Agosto de 2005, com 90 anos, morto durante a oração da noite. E o irmão Alois, que o irmão Roger tinha escolhido há muitos anos para seu sucessor, é agora o prior da Comunidade.

Tudo começou em 1940, quando o irmão Roger, com 25 anos de idade, deixou o seu país de origem, a Suíça, para ir viver em França, país da sua mãe. Quando era mais novo, tinha estado imobilizado durante vários anos devido a uma tuberculose pulmonar. Durante esta longa doença, tinha amadurecido em si o chamamento para criar uma comunidade. No momento em que começou a II Guerra mundial, teve a certeza de que, tal como a sua avó tinha feito durante a I Guerra mundial, deveria vir imediatamente em ajuda daqueles que atravessavam a dura provação da guerra.”.

Taizé, onde se fixou, ficava perto da linha de demarcação que cortava a França em duas partes, portanto, bem situada para acolher refugiados da guerra. Amigos de Lyon ficaram reconhecidos por poderem indicar esta aldeia a quem necessitava de refúgio. Ali, Roger, graças a módico empréstimo, comprara uma casa, abandonada há muitos anos, com as suas dependências. Pediu a Geneviève, uma das suas irmãs, para vir ajudar no acolhimento. Entre os refugiados que abrigaram, havia judeus. Os meios materiais eram pobres (sem água corrente, iam buscar água potável ao poço da aldeia). A comida era modesta, baseada sobretudo em sopas de farinha de trigo comprada num moinho vizinho a baixo preço. Por respeito para com aqueles que acolhiam, Roger rezava sozinho. Frequentemente ia cantar para longe de casa, no bosque. E, para que alguns dos refugiados, judeus ou agnósticos, não ficassem constrangidos, Geneviève explicava a todos que era melhor que, quem quisesse, rezasse sozinho no seu quarto.

Os pais, sabendo que o filho e a irmã se estavam a expor, pediram a um amigo, um oficial francês reformado, para olhar por eles, o que fez com diligência. No outono de 1942, avisou-os de que foram descobertos e que deveriam partir sem demora. Até ao final da guerra, foi em Genebra que Roger viveu e começou vida comunitárias com os primeiros irmãos.

Puderam regressar a Taizé em 1944. E, em 1945, um jovem da região fundou uma associação para cuidar das crianças que a guerra deixara sem família e propôs aos irmãos acolherem alguns em Taizé. Porém, como uma comunidade de homens não podia receber crianças, Roger pediu a Geneviève para voltar a Taizé para as acolher e tornar-se sua mãe. Aos domingos, os irmãos acolhiam os prisioneiros de guerra alemães, internados num campo próximo. Aos poucos, alguns jovens vieram juntar-se aos primeiros irmãos, e, no dia de Páscoa de 1949, foram 7 a comprometer-se para toda a vida no celibato e numa vida comunitária de grande simplicidade.

No silêncio dum longo retiro, no inverno de 1952-1953, o fundador escreveu a Regra de Taizé, que expressava aos seus irmãos o “essencial que torna a vida comunitária possível”.

Agora, em Taizé, todos participam na vida comunitária e no programa proposto. 

Vir a Taizé significa ser convidado a uma procura de comunhão com Deus através de orações comunitárias, de cânticos, do silêncio, da meditação pessoal e da partilha. Uma vinda a Taizé pode efetivamente ajudar a olhar a vida quotidiana de outra forma, a encontrar uma grande diversidade de pessoas e a refletir sobre empenhos na Igreja e na sociedade.

O irmão Roger insistiu frequentemente na importância da oração comunitária,  da música e do canto na vida da comunidade desde as suas origens.

Dizia o Irmão Alois, durante um encontro na Igreja da Reconciliação: “Ver tantos jovens na colina, juntos numa grande diversidade, é algo de muito festivo; dá-nos a grande esperança de que é possível uma humanidade em paz”.

2021.12.30 – Louro de Carvalho 

quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Inacreditável atropelo à dignidade humana

 

Após buscas da PJ (Polícia Judiciária) e do DCIAP (Departamento Central de Investigação e Ação Penal), a 3 de novembro, na casa de Maria de Jesus Rendeiro, mulher de João Rendeiro, de Florêncio Almeida, ex-motorista do ex-presidente do BPP, e de seu pai, presidente da ANTRAL, Florêncio Plácido de Almeida, a mulher do ex-banqueiro, então foragido à justiça em parte incerta, foi detida no âmbito de um mandato de detenção do MP (Ministério Público) e, tendo passado a noite na cadeia de Tires, foi presente a juíza de instrução criminal para interrogatório e definição da medida de coação a que ficaria sujeita. Em causa estavam: falsificação e desaparecimento de obras de artes arrestadas pela Justiça, branqueamento de capitais e a aquisição de um imóvel a Rendeiro, abaixo do preço do mercado, em 2015.

Entretanto, soube-se que Maria de Jesus fora condenada em processo judicial, não processo-crime, “pela sua atuação excecionalmente grave e desconforme aos deveres a que ficou adstrita” (de fiel depositária dos objetos apreendidos a 11.11.2010), “no pagamento de multa processual em montante equivalente ao máximo legal de 10 unidades de conta. Além disso, o tribunal atribuiu-lhe o encargo das custas judiciais, “sendo a taxa de justiça no valor de 5 unidades de conta” (o atual valor da unidade de conta é de 102 euros).

Esta decisão do tribunal não dá seguimento ao pedido de arresto de bens por não se vislumbrar que possa ser atendido antes do trânsito em julgado do acórdão condenatório de maio de 2021, em que João Rendeiro foi condenado a 10 anos de prisão efetiva. Neste processo, a esposa de Rendeiro não é arguida, nem se trata de processo-crime. Contudo, foi extraída certidão para o MP com vista a eventual inquérito-crime.

De acordo com o DCIAP, “por se ter considerado existir um forte perigo de fuga, para a aquisição e conservação da prova e para a descoberta da verdade, contra uma suspeita foram emitidos e cumpridos mandados de detenção para ser apresentada, no prazo de 48 horas, a primeiro interrogatório judicial com vista à aplicação de medidas de coação adequadas”.

Dezenas de inspetores da UNCC (Unidade Nacional de Combate à Corrupção) da PJ e procuradores do DCIAP realizaram buscas na Quinta Patiño, em Cascais, na casa de Maria de Jesus Rendeiro, e nas habitações de Florêncio de Almeida, presidente da ANTRAL, a principal associação de taxistas, e do seu filho, com o mesmo nome, que foi motorista de Rendeiro durante alguns anos.

No total foram 9 mandados de busca domiciliária e de 8 mandados de busca não domiciliária. De acordo com a PJ, a ação desenvolveu-se em Lisboa, Oeiras, Estoril e Alcáçovas, contando com a participação de cerca de 50 inspetores e peritos da PJ.

As autoridades suspeitam que esteja em causa o crime de branqueamento de capitais e de descaminho, relacionados com fundos que se suspeita terem sido retirados do BPP (Banco Privado Português), bem como com as obras de arte apreendidas a Rendeiro no âmbito de processo no qual se encontra condenado, pelo que, segundo o DCIAP, a operação desencadeada “D’Arte Asas” visava “a recolha da prova dos factos e a recuperação de produto do crime”.

Segundo a TVI,  está em causa o facto de as autoridades suspeitarem que o ex-motorista de Rendeiro comprou um apartamento na Quinta Patino, em Cascais, junto à mansão do patrão, por 1,1 milhões de euros, a pronto pagamento, cedendo depois o seu usufruto à mulher de Rendeiro. Esta compra, que terá sido feita com o dinheiro de João Rendeiro, ocorreu apenas 7 dias depois de o mesmo motorista ter vendido uma outra casa em Lisboa, que também era de Rendeiro.

Assim, após interrogatório no TIC (Tribunal de Instrução Criminal), a 4 de novembro, Maria de Jesus ficou em prisão domiciliária com vigilância eletrónica, medida de privativa da liberdade por o TIC considerar existir perigo de fuga, perigo de perturbação do inquérito-investigação e perigo de continuação da atividade criminosa. Além disso, a suspeita viu ser-lhe aplicada como medida de coação a proibição de contactar com o presidente da Antral, Florêncio Plácido de Almeida e com o filho deste. Tudo isto, porque o tribunal confirma que a arguida é suspeita dos crimes de descaminho, desobediência branqueamento de capitais e falsificação de documento.

Sabe-se que Maria Rendeiro só não ficou em prisão preventiva porque no interrogatório colaborou com as autoridades ao revelar que o marido estava na África do Sul, o que parece abstruso, pois o diretor nacional da PJ, aquando da detenção de Rendeiro em Durban, disse Urbi et Orbi que a polícia já sabia, antes de a esposa o ter revelado, do paradeiro do foragido.

Não me parece que o referido processo de detenção da arguida e subsequente definição da medida de coação a que está sujeita tenha infirmado de irregularidades. Aliás, a verificarem-se, ter-se-iam as vozes quer do MP quer da defesa, pelas vias da reclamação e/ou do recurso.

Porém, o que sucedeu mais recentemente é deveras lamentável.

Como qualquer cidadão, a arguida tem direito à saúde e, no quadro da pandemia que perpassa o país, à vacinação contra a covid-19. Por isso, independentemente de quem foi a iniciativa – seja contacto do centro de vacinação respetivo, da ARS, da Saúde 24 ou da competente unidade local de saúde, seja autoagendamento ou casa aberta – Maria Rendeiro deslocou-se ao seu centro de vacinação, obviamente sob escuta policial, como requerido. Ao mesmo tempo, os serviços policiais encarregados da vigilância da arguida sujeita a prisão domiciliária controlada por pulseira eletrónica deram conhecimento à competente juíza de instrução criminal (JIC). Tudo em plena normalidade, pensava-se.

Todavia, a referida juíza, mal teve conhecimento do “desmando” (chamemos-lhe assim), proferiu douto despacho a censurar a deslocação da arguida para fora da sua residência e a mandar o ralhete à polícia cujo papel era supostamente vigiar o cumprimento da medida de coação e, se eventualmente o alarme disparasse por deslocação da arguida do raio de ação permitido pela pulseira, deveria atuar de imediato.

A meritíssima faz questão de assegurar que o seu poder se sobrepõe a tudo e a todos. Trata-se, a meu ver, dum absolutismo desadequado e desnecessário. Mais parece a saga televisiva de há tempos “Eu é que sou o presidente da junta”, a afirmação dos diretores de serviço que lembram a cada passo aos dirigidos “Eu é que sou o diretor” ou a postura de Marcelo ao dizer “A última palavra é a do Presidente”.  

O facto de a Constituição estipular que as decisões dos tribunais “prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades” (CRP, art.º 205.º) não dá aos juízes poder absoluto e inquestionável.

Com efeito, todo o ser humano, mesmo que recluso por via de sentença condenatória, é uma pessoa, pelo que não pode deixar de lhe ser reconhecida e respeitada a dignidade de pessoa humana, bem como de se lhe prover ao mínimo de bem estar-físico e psicológico. Já lhe basta a privação da liberdade. E, no caso vertente, não se trata de um condenado por crime, nem sequer duma acusação formalizada; trata-se apenas de uma arguida sujeita a medida de coação cuja proporcionalidade pode ser discutida, cujos motivos podem não corresponder à realidade dos factos ou das intenções e cujos móbeis de inquérito podem carecer de prova. Impedir ou censurar a ida da arguida à vacinação, significa desrespeito pela dignidade e saúde duma pessoa, desvalorização da segurança oferecida pela polícia ou capricho porque tal não decorreu de despacho prévio da JIC.

Originariamente, o papel da fase de instrução e, ao que parece, nos dias atuais, está atrelado ao exercício facultativo de controlo judicial da decisão tomada pelo MP de acusação ou arquivamento. Segundo o n.º 1 do art.º 286.º do CPP, “a instrução visa à comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”. A fase de instrução é precedida pela investigação criminal dirigida pelo MP, que se manifesta acerca da existência do crime e da correspondente responsabilidade do investigado. Estas tarefas, da competência do MP, devem ser exercidas orientadas pelo princípio da legalidade, consoante o disposto nos n.os 1 e 2 do art.º 219.º e em observância a critérios de estrita objetividade, conforme o n.º 1 do art.º 53.º do CPP.

Ao juiz de instrução compete “proceder à instrução, decidir quanto à pronúncia e exercer todas as funções jurisdicionais até à remessa do processo para julgamento (cf CPP, art.º 17.º). Ora, o conceito de funções jurisdicionais abrange; o rigor processual na fase de investigação, promovendo a legalidade dos meios e circunstâncias, nomeadamente a discrição, garantindo a legitimidade da correta investigação (buscas, escutas, apreensão e análise de materiais…) e moderando, quer a inércia na investigação, quer a tendência do excesso investigatório; a justeza do inquérito, contra deficiências e excessos, desvios de interrogatório, junção de elementos que prejudiquem a prova, não junção de elementos que favoreçam a mesma; a fiabilidade da instrução pela rigorosa análise da acusação com vista à não pronúncia; e a defesa dos direitos dos arguidos e dos lesados.

Para tanto, há que evitar ao máximo a detenção e prisão para investigar. E, se uma medida de coação menos gravosa for suficiente para acautelar a investigação e o inquérito, não deve aplicar uma medida mais gravosa. Por outro, lado a prestação duma caução muito elevada pode constituir um ultraje a quem, não tendo dinheiro, pode ter de ficar em prisão preventiva, quando quem o tem pode continuar a fazer vida folgada.

Nunca, jamais, em tempo algum cabe ao JIC uma decisão absolutória ou condenatória. E nunca deveria permitir a justiça-espetáculo que induza a condenação na praça pública de quem quer que seja. Deverá, antes, zelar pela preparação da boa justiça e esperar que, a seu tempo, ela funcione com celeridade, imparcialidade e eficácia. Enfim, não lhe cabe julgar, não lhe cabe apenas apor o carimbo notarial aos pedidos do MP, não lhe cabe desautorizar o MP. Cabe-lhe, sim, um papel fiscalizador e moderador visando as legítimas garantias de arguidos e lesados.

Não pode o JIC deixar-se arrastar pelo capricho funcional que leve à discricionariedade de despacho. Deve ser o zeloso guardião da justiça e do direito “até à remessa do processo para julgamento”, incluindo a salvaguarda do segredo de justiça, sempre que este seja aplicável, para o que deve mandar investigar a origem das fugas de informação com vista à punição dos responsáveis.

Em suma, precisamos duma justiça com rosto e de olhos bem abertos.

2021.12.29 – Louro de Carvalho

terça-feira, 28 de dezembro de 2021

Natal realiza-se na humildade e espantando o “deveriaquismo”

 

Em discurso à Cúria Romana no encontro para as felicitações de Natal, no passado dia 23, Francisco qualifica este ato como expressão da fraternidade e ensejo para “reflexão e exame de consciência”, para a luz do Verbo encarnado mostrar “quem somos e qual é a nossa missão”.

Considerando o Natal o mistério de Deus que vem ao mundo pela via da humildade (a encarnação é a grande synkatábasis), lamentou que esta época tenha esquecido a humildade ou a tenha limitado a uma forma de moralismo, esvaziando-a da sua força incisiva.

Segundo o Pontífice, “todo o mistério do Natal” se pode resumir na “humildade. De facto, o Evangelho apresenta “um cenário pobre, sóbrio, impróprio para acolher uma mulher que está para dar à luz”. Contudo, o Rei dos reis vem ao mundo, sem dar nas vistas, mas suscitando uma atração misteriosa nos corações de quantos sentem a presença da novidade prestes a mudar a história. Assim pode dizer-se que “a humildade foi a sua porta de entrada e convida-nos, a todos nós, a atravessá-la”, pois, como ensina Santo Inácio, não se pode avançar sem ela.

E, para realçar que a humildade “resulta duma mudança que o próprio Espírito realiza em nós através da história que vivemos”, menciona o caso do general sírio Naaman, famoso no tempo de Eliseu, que asilava, sob a capa do valor e das honras, o terrível drama da lepra, que o revestia interiormente de “uma humanidade frágil, ferida, doente”.

Naaman compreende que “não se pode passar a vida escondendo-se atrás duma armadura, duma função, duma consideração social”, vindo a chegar o momento em que se deseja não viver sob a capa da glória deste mundo, mas na plenitude duma vida sincera, sem armaduras e sem máscaras. Por isso, a partir da sugestão duma escrava, judia prisioneira de guerra, que fala do Deus capaz de curar tais contradições, sai à procura de quem o possa ajudar. E, munido de prata e ouro, chega assim à porta do profeta Eliseu, que lhe pede “o gesto simples de se despir e banhar sete vezes no rio Jordão”, pois, como vinca o Papa só a graça é que salva.

A Naaman tal pedido parece banal, mas as palavras dos servos levam-no mudar de opinião:

Mesmo que o profeta te tivesse mandado uma coisa difícil, não a deverias fazer? Quanto mais agora, ao dizer-te: ‘Lava-te e ficarás curado?’.” (2 Rs 5,13).

E Naaman, com um gesto de humildade, tira a armadura, mergulha nas águas do Jordão “e a sua carne tornou-se como a de uma criança e ficou limpo” (2 Rs 5,14). Sobressai a lição de que “a humildade de expor a própria humanidade, segundo a palavra do Senhor”, obtém a cura.

A história de Naaman sugere que o Natal é tempo da coragem de tirar a própria armadura da importância do cargo, da consideração social, do brilho da glória deste mundo, para assumirmos a nossa humildade. E o exemplo convincente e de maior autoridade é “o do Filho de Deus, que não Se recusa à humildade de ‘descer’ à história fazendo-Se homem”, o menino, frágil, envolto em panos e deitado numa manjedoura” (cf Lc 2,7). De facto, como afirma o Papa, “todos nós, somos leprosos que precisam de ser curados”, sendo o Natal “a memória viva desta certeza”.

Esquecer a nossa humanidade, viver das honras constitui “a tentação perigosa” do “mundanismo espiritual”, “difícil de desmascarar”, porque está encoberta por tudo o que nos tranquiliza: a função, a liturgia, a doutrina, a religiosidade. Jesus vinca a verdade incómoda e desafiadora: “Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se perder a sua vida?” (Mc 8, 36). E o Santo Padre reitera o que escreveu na “Evangelii gaudium”:

Alimenta-se a vanglória de quantos se contentam com ter algum poder e preferem ser generais de exércitos derrotados a simples soldados dum batalhão que continua a lutar. Quantas vezes sonhamos planos apostólicos expansionistas, meticulosos e bem traçados, típicos de generais derrotados! Assim negamos a nossa história de Igreja, que é gloriosa por ser história de sacrifícios, de esperança, de luta diária, de vida gasta no serviço, de constância no trabalho fadigoso, porque todo o trabalho é ‘suor do nosso rosto’. Em vez disso, entretemo-nos vaidosos a falar sobre ‘o que se deveria fazer’ – o pecado do ‘deveriaquismo’ – como mestres espirituais e peritos de pastoral que dão instruções ficando de fora. Cultivamos a nossa imaginação sem limites e perdemos o contacto com a dolorosa realidade do nosso povo fiel.” (n.º 96).

Em vez de impormos aos outros o que entendemos o que eles devem fazer (ficando nós de fora)  “deveriaquismo” – temos de cultivar a humildade como capacidade de sabermos habitar, com realismo, alegria e esperança, “a nossa humanidade, amada e abençoada pelo Senhor, compreendendo que “não devemos envergonhar-nos da nossa fragilidade”. Em contraste com a humildade vem a soberba. A este respeito, o Papa julga oportuno atentar no que escreveu o profeta Malaquias, que nos ajuda, por contraste, a compreender a diferença “entre o caminho da humildade e o da soberba:

Todos os soberbos e todos os que cometem a iniquidade serão como a palha; este dia que vai chegar queimá-los-á – diz o Senhor do universo – e nada ficará deles: nem raiz, nem ramos” (Ml 3,19).

E o profeta, diz o Pontífice, “acerca da pessoa que se deixa levar pela soberba afirma que se encontra privada do que temos de mais importante: as raízes e os ramos”: aquelas sugerem a ligação vital com o passado, donde recebemos a seiva para vivermos no presente; os ramos são o presente que não morre, mas se torna amanhã e futuro. Presente sem raízes e sem ramos “significa viver o fim” e viver “com o sabor amargo da tristeza estéril que se apodera do coração como “o mais precioso elixir do demónio”. Ao invés, como assegura o Papa Bergoglio, “o humilde deixa-se guiar constantemente por dois verbos: ‘recordar as raízes; e ‘gerar fruto das raízes e dos ramos, vivendo assim a jubilosa abertura da fecundidade”.

E o Papa lembra que “recordar é, etimologicamente, “trazer de novo ao coração” a memória viva da Tradição, das raízes, isto é, “gesto interior por meio do qual trazemos constantemente ao coração o que nos precedeu, que atravessou a nossa história, que nos fez chegar até aqui”. Não é repetir, mas “arrecadar, reavivar e, agradecidos, deixar que a força do Espírito Santo nos faça, como aos primeiros discípulos, arder o coração” (cf Lc 24,32). Porém, para não nos tornarmos cativos do passado, precisamos do verbo “gerar. É o que visa o humilde, que tem a peito o futuro, porque sabe olhar para diante e contemplar os ramos com a memória repleta de gratidão. Por isso, “aceita ser posto em questão, abre-se ao novo”, porque se sente forte com o que o precede, as suas raízes, a sua filiação. Assim, como preconiza o Santo Padre, “todos nós somos chamados à humildade, porque somos chamados a recordar e a gerar”, reencontrado “a justa relação com as raízes e com os ramos”. E Jesus, vindo ao mundo pela via da humildade, “desbrava-nos o caminho, indica-nos um estilo de vida, mostra-nos uma meta”, que passa pela humildade de procurar e encontrar “o próximo, o irmão e a irmã que vivem ao nosso lado”.

***

A seguir, Francisco evocou o percurso sinodal, iniciado a 17 de outubro e que ocupará a Igreja nos próximos dois anos, para observar que “só a humildade é capaz de nos colocar na justa condição para nos podermos encontrar e ouvir, para dialogar e discernir, para rezar juntos”. Com efeito, se cada um permanece fechado nas próprias convicções e na própria experiência, dificilmente dá espaço à experiência do Espírito que – segundo o Apóstolo – está ligada à convicção de sermos filhos de “um só Deus e Pai de todos, que reina sobre todos, age por todos e permanece em todos(Ef 4,6).

E, sob o quantificador universal “todos”, o Papa escalpeliza a perversa tentação do clericalismo, que se nos insinua a fazer pensar num Deus que fala só a alguns, devendo os outros apenas escutar e cumprir. É o grande inimigo da caminhada sinodal, a qual “procura ser a experiência de nos sentirmos, todos, membros dum conjunto maior, o Santo Povo fiel de Deus”, enfim “discípulos que escutam” e, escutando, compreendem a vontade de Deus, que Se manifesta de forma imprevisível. E Francisco frisa que “a sinodalidade é  estilo a que os primeiros a converter-se” devem ser os que vivem “a experiência do serviço à Igreja universal através do trabalho na Cúria Romana”, avisando que a Cúria “não é apenas um instrumento logístico e burocrático para as necessidades da Igreja universal, mas é o primeiro organismo chamado a dar testemunho”, pelo que, assumindo os desafios da conversão sinodal, faz crescer “a sua credibilidade e eficácia”, pois a organização a implementar é evangélica, não empresarial.

Ora, se a Palavra de Deus recorda ao mundo o valor da pobreza e da justiça, os membros da Cúria devem ser os primeiros a comprometer-se na conversão à sobriedade e a procurar viver com transparência, sem favoritismos nem partidarismos; e, se a Igreja palmilha a via sinodal, a Cúria deve converter-se a um estilo diferente de trabalho, colaboração, comunhão, o que “só é possível pelo caminho da humildade”.

Recordando as três palavras-chave – participação, comunhão e missão – que usou na abertura da assembleia sinodal, nascendo todas dum coração humilde, pois, “sem humildade não se pode efetuar participação, nem comunhão, nem missão”, o Papa apresenta-as como exigências de estilo de humildade a atingir na Cúria.

participação deve expressar-se pelo estilo de corresponsabilidade, embora na diversidade de funções e ministérios, com responsabilidades diferentes, mas postulando o envolvimento de cada um, “corresponsável no trabalho sem se limitar a viver a experiência despersonalizante da execução dum programa estabelecido por outrem”. Ao invés, a criatividade, não raro, manifesta-se “sobretudo onde há e se encontra espaço para todos”, mesmo para quem parece ocupar um lugar marginal. Assim, a autoridade torna-se serviço, quando compartilha e ajuda a crescer.

comunhão não se expressa com maiorias ou minorias, mas nasce da relação com Cristo, pelo que não temos estilo evangélico, se não colocamos Cristo no centro. Muitos trabalham juntos, “mas o que fortalece a comunhão é poderem também rezar juntos, escutar juntos a Palavra, construir relações que vão além do simples trabalho e reforçar os laços bons – os laços bons entre nós –, ajudando-nos uns aos outros” – diz o Pontífice. Sem isto, somos estranhos, concorrentes e até pessoas que fazem assentar as relações na cumplicidade ditada por interesses pessoais, esquecendo-se da causa comum que nos mantém unidos e criando divisões e fações. Já a colaboração “exige a grandeza de se aceitar como parcela e se abrir ao trabalho em grupo, mesmo com quem não pensa como nós”, nunca esquecendo as nossas raízes, o rosto concreto dos que foram os nossos primeiros mestres na fé. A ótica da comunhão implica reconhecer “a diversidade que nos habita como dom do Espírito Santo”, o espírito e a atitude e de serviço e a magnanimidade e generosidade para “viver com alegria a multiforme riqueza do Povo de Deus”.

E a missão salva-nos do fechamento em nós mesmos, que faz olhar de cima e de longe, rejeitando a profecia dos irmãos e fazendo ressaltar “os erros alheios” e viver obcecado pela aparência. Quem se fecha, no dizer do Papa “circunscreveu os pontos de referência do coração ao horizonte fechado da sua imanência e dos seus interesses”, pelo que “não aprende com os seus pecados nem está verdadeiramente aberto ao perdão” (os dois sinais da pessoa fechada). A missão, correspondente à chamada de Deus, inclui sempre a paixão pelos pobres, pelos carentes em termos materiais, espirituais, afetivos, morais. E a Igreja é convidada a ir ao encontro de todas as pobrezas, porque é chamada a pregar o Evangelho a todos e porque se sente carecida dos pobres. Por outro lado, a missão torna-nos vulneráveis, o que nos faz recordar a nossa condição de discípulos e nos permite descobrir sempre de novo a alegria do Evangelho.

Para expressar que participação, missão e comunhão são os traços duma Igreja humilde, que se põe à escuta do Espírito, o Papa cita Henri de Lubac, em “Meditações sobre a Igreja, 352”:

Aos olhos do mundo a Igreja, à semelhança do seu Senhor, tem sempre o aspeto da escrava. Aqui na terra existe sob a forma de serva. (...) Não é uma academia de cientistas, nem um cenáculo de espirituais refinados, nem uma assembleia de super-homens. (...) Aglomeram-se os aleijados, os deformados, os miseráveis de toda a espécie; sobrepõem-se os medíocres (...); ao homem natural, enquanto não acontecer nele uma transformação radical, é difícil, ou melhor impossível, reconhecer neste facto o cumprimento da kenose salvífica, o traço adorável da humildade de Deus.”.

O Papa desejou a todos, incluindo-se a si próprio, a graça de se deixarem evangelizar pela humildade do Natal, do presépio, da pobreza, essencialidade em que o Filho de Deus entrou no mundo. E sublinha que até os Magos, vindos duma condição mais abastada que a de Maria e José ou dos pastores de Belém, ao encontrarem-se ante o Menino, prostram-se (cf Mt 2,11) em adoração e humildade. Põem-se à altura de Deus, prostrando-se. E esta extraordinária kénôsis (esvaziamento)synkatábasis (descida) é a que Jesus efetuará na última noite da sua vida terrena, ao levantar-se da mesa, tirar o manto, tomar a toalha e atá-la à cintura, para deitar água na bacia e lavar os pés aos discípulos e a enxugá-los com a toalha” (cf Jo 13,4-5). Tal gesto provoca a perplexidade e a reação de Pedro, mas Jesus dá aos discípulos a chave de justa interpretação:

Vós chamais-Me ‘o Mestre’ e ‘o Senhor’, e dizeis bem, porque o sou. Ora, se Eu, o Senhor e o Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns aos outros. Na verdade, dei-vos exemplo, para que, assim como Eu fiz, vós façais também.” (Jo 13,13-15).

Por fim, exortou a que, lembrados da nossa lepra, evitando as lógicas do mundanismo que nos privam de raízes e ramos, nos deixemos evangelizar pela humildade do Menino Jesus, pois, só concebendo o trabalho como serviço, podemos ser verdadeiramente úteis a todos. E explicitou:

Estamos aqui – a começar por mim – para aprender a ajoelhar e adorar o Senhor na sua humildade, e não outros senhores na sua vã opulência. Sejamos como os pastores, sejamos como os Magos, sejamos como Jesus. Eis a lição do Natal: a humildade é a grande condição da fé, da vida espiritual, da santidade. Que o Senhor no-la conceda em dom a partir da primordial manifestação do Espírito em nós: o desejo. O que não temos, podemos ao menos começar a desejá-lo. Peçamos ao Senhor a graça de conseguir desejar, de nos tornarmos homens e mulheres de grandes desejos. E o desejo é já o Espírito a trabalhar dentro de cada um de nós.”.

***

Como lembrança de Natal, o Papa ofereceu alguns livros, mas para se lerem: “Converter Peter Pan”, sobre o destino da fé nesta sociedade da eterna juventude, livro provocatório de Mons. Armando Matteo, Subsecretário da Doutrina da Fé, grande teólogo, desconhecido porque muito humilde, que se debruça um pouco sobre um fenómeno social e como provoca a ação pastoral; “A pedra descartada, com o subtítulo “Quando os esquecidos se salvam”, do Padre Luigi Maria Epicoco, sobre personagens secundárias ou esquecidas da Bíblia, servindo para a meditação e oração; e um livro do Núncio Apostólico Mons. Fortunatus Nwachukwu, que reflete sobre a coscuvilhice, a qual faz com que se derreta ou dissolva a identidade.

***

É o Natal da humildade, da conversão, da sinodalidade!

2021.12.28 – Louro de Carvalho

A artificiosa polémica da nomeação do novo CEMA

Cumpria eu o serviço militar no Regimento de Infantaria de Viseu e, numa determinada manhã, um tenente e eu quisemos ir a Fuentes de Oñoro e Ciudad Rodrigo, Espanha.

Na parte portuguesa da fronteira, em Vilar Formoso, o pessoal do controlo, conhecendo o tenente, fez-lhe uma grande mostra de simpatia e alegria. Eu, que fazia de condutor do veículo, mostrei o meu bilhete de identidade civil e passámos. Porém, no controlo espanhol, mostrei eu naturalmente o bilhete de identidade, o que permitia a autorização para seguir; já o tenente, que só tinha o bilhete de identificação militar (de militares do quadro permanente válido em Portugal para efeitos civis), não poderia seguir. Porfiámos que não havia problema, que só íamos a Fuentes. Em reação, o guarda retorquiu: “Não há problema, mas nós criamo-lo”. Não houve outra hipótese a não ser eu me responsabilizar pelo regresso do predito oficial, o que fiz de boa vontade.  

Vem isto a propósito da tomada de posse do ora almirante Henrique Eduardo Passaláqua de Gouveia e Melo como Chefe de Estado-Maior da Armada (CEMA), que ocorreu na tarde deste dia 27 de dezembro, no Palácio de Belém em cerimónia de dois minutos, com assinatura do termo e declaração do compromisso de honra, mas sem discursos, sem o usual aperto de mão, sem a presença do Primeiro-Ministro por motivo de quarentena e sem o antecessor, CEMA desde 2018, que, pelos vistos, saiu antes do fim do mandato, mas não por vontade própria. 

A posse foi conferida pelo Presidente da República (PR), que, para o efeito promoveu o até agora vice-almirante ao posto de almirante e que, no final da cerimónia, lhe dirigiu algumas palavras, não audíveis, a que se seguiu Eduardo Ferro Rodrigues, Presidente da Assembleia da República, que esticando o punho para um cumprimento ao novo CEMA.

A representar o Governo, nesta que foi a 4.ª vez que Marcelo deu posse a um CEMA desde que é Chefe de Estado, esteve João Gomes Cravinho, Ministro da Defesa Nacional, o centro do folhetim da sucessão do CEMA, já que, há tempos, Marcelo veio a público desautorizar o ministro, travando a saída de Mendes Calado e a nomeação de Gouveia e Melo. Em Belém, estiveram ainda o almirante Silva Ribeiro, Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas (CEMGFA), que previamente condecorara Gouveia e Melo, com a medalha de serviços distintos grau ouro, e representantes dos três ramos: pelo Exército, em representação do CEME, general José Nunes da Fonseca, o Comandante das Forças Terrestres, tenente-general Martins Pereira; pela Armada, o Vice-CEMA, vice-almirante Jorge Novo Palma; e, pela Força Aérea, o CEMFA, general Joaquim Nunes Borrego. E estiveram presentes a mulher e os filhos do novo CEMA.

A situação pandémica no país foi a justificação dada para que a tomada de posse fosse curta e restrita a poucos convidados.

***

Ascender a CEMA era sonho antigo, não escondido, de Gouveia e Melo, que o lembrou na entrevista ao “Expresso” na edição do passado fim de semana, em que declarou:

Confirmo que é um objetivo importante para mim, caso seja esse o entendimento superior”.

E vincou o objetivo de que “a Marinha seja um dos catalisadores de um novo posicionamento de Portugal para o mar no século XXI”. Já, quanto à polémica da substituição de Calado, conteve-se, apenas referindo que “o processo de exoneração exige um conjunto de passos” em que o PR, que é comandante supremo das Forças Armadas, não tem de ser o primeiro a saber. Porém, admitiu que, “em termos políticos, naturalmente, as coisas não são assim”. Com efeito, apesar da unanimidade dos aplausos a Gouveia e Melo após ter liderado a task-force de vacinação de 3 de fevereiro a 28 de setembro, o momento da chegada a CEMA não é pacífico, situação para a qual contribuíram as palavras do antecessor. Em vídeo do Facebook oficial da Marinha, o ex-CEMA lembrou a “honra” de ter exercido o cargo, mas frisou a saída forçada:

Deixo a Marinha não por vontade própria, pois os que me conhecem não entenderiam que abandonasse o leme da nossa Marinha depois de tanto resistir ao temporal que nos assolou nos últimos tempos”.

Calado, considerando “uma honra e um privilégio ter liderado e aprendido tanto” com todos os que com ele se cruzaram durante os 47 anos de serviço à Marinha, disse:

Procurei sempre liderar pelo exemplo, de plena dedicação e grande entusiasmo, com a nobre missão de servir Portugal e os portugueses”.

Na hora da saída, assegurou a “confiança numa Marinha resiliente, capaz de ultrapassar todos os desafios, focada no horizonte, espreitando o futuro e ajudando a construí-lo com inovação para continuarmos a cumprir Portugal com brio e orgulho, continuando a valorizar as pessoas e a condição militar”. E pediu:

Exorto-vos a que continueis como sempre: coesos, disciplinados, corajosos e sempre a honrar a nossa divisa ‘Talant de bien faire’ [vontade de bem fazer]. A pátria honrai que a pátria vos contempla e a pátria é o nosso grande desígnio.”.

E, esperando “bons ventos e mares de feição e que a estrela da sorte guie sempre as missões da Marinha e proteja todos os seus homens e mulheres”, disse o “até sempre, levo-vos no coração”.

Em setembro, uma minicrise entre o Governo e a Presidência da República, foi resolvida com reunião de urgência, em Belém, entre o Primeiro-Ministro, o Ministro da Defesa e o PR.

Nos termos da lei orgânica das Forças Armadas, os chefes dos ramos são nomeados e exonerados pelo PR, sob proposta do Governo, precedida da audição, através do Ministro da Defesa Nacional, do CEMGFA.

Marques Mendes engrossou o tom das críticas da oposição no comentário de domingo na SIC, qualificando de “lamentável” a atitude do Governo, que “é uma iniciativa péssima”, pois, na sua opinião, Calado foi “quase foi atirado pela janela fora”, por ter discordado das novas leis das Forças Armadas. E afirmou que a popularidade de Gouveia e Melo, trazida pela projeção mediática da vacinação, pode estar a ser “aproveitada” pelo Governo, em vésperas de eleições”. Em contraponto, o Primeiro-Ministro desdramatizou, em declaração à CNN Portugal, a saída de Calado a um mês das eleições, garantindo que “havia um entendimento de uma saída antes do termo do mandato”. Assim, no momento em que há novas leis orgânicas a entrar em vigor pareceu ao Governo, e o PR concordou, que era altura de proceder a esta alteração.

Na verdade, segundo a nota do Palácio de Belém, Marcelo, depois de receber o almirante CEMA e considerando que haverá, em breve, legislação orgânica sobre o Estado-Maior-General e os três ramos das Forças Armadas, significando um novo ciclo político e funcional, “entendeu ser chegado o tempo de proceder à referida exoneração”. Desta forma, segundo a mesma nota, antecipa-se “alguns meses o termo do segundo mandato”, o que vai ocorrer “de acordo com disponibilidade manifestada” por Mendes Calado. Ao mesmo tempo, o PR anunciava a condecoração de Calado com a Grã-Cruz da Ordem de Cristo e agradeceu o seu empenho enquanto CEMA, no dia em que aceitou a proposta do Governo para o exonerar.

***

O novo almirante nasceu em Quelimane, Moçambique, em 21 novembro 1960. Ingressou na Escola Naval em 7 setembro de 1979. Passou 22 anos da sua carreira nos submarinos onde exerceu diversas funções operacionais, tendo comandado os submarinos Delfim e Barracuda. Recentemente coordenou a equipa responsável pelo plano de vacinação nacional contra a covid-19 de 3 de fevereiro a 28 de setembro. E, a 23 de dezembro, o Conselho de Ministros aprovou a proposta da nomeação do então Vice-almirante para CEMA, sucedendo ao almirante António Mendes Calado, e que teve o parecer favorável do CEMGFA, após audição do Conselho do Almirantado, como posição desfavorável, embora não vinculativa. No mesmo dia, o PR indicou que iria “nomear Chefe do Estado-Maior da Armada o vice-almirante Henrique de Gouveia e Melo e promovê-lo ao posto de almirante”.

***

A artificialidade da polémica resulta do facto de Mendes Calado ter anuído à recondução no cargo com a condição de não cumprir o tempo de 2 anos em que podia permanecer como CEMA. Se a aceitou, não sendo obrigado, não lhe ficou bem voltar atrás e, em setembro, ter levado o almirantado a emitir parecer desfavorável à nomeação de Melo em reunião a que presidiu. Ficou logo a saber-se que não saía de vontade, mas louvam-se os apelos que deixou.

Marcelo é contraditório e tem opiniões criticáveis, mas não mente em relação a factos. E disse que o almirante concordara com as condições em que fora reconduzido. O que se passara em setembro é que o seu chefe da Casa Militar, também interessado no cargo, fez sair para fora a notícia por antecipação (ninguém desmentiu esta informação do semanário “Nascer do Sol”) e Marcelo, vendo-se ultrapassado pela comunicação social, vetou a iniciativa de Cravinho.

Pelos vistos, a promoção e ascensão de Melo a CEMA só não aconteceu aquando da recondução de Calado, nos termos em que o foi, porque Melo não devia sair da taskforce da vacinação. Em setembro, a saída de Melo já não era problemática porque estava com vacinação completa 88% da população elegível e ainda não havia decisão da DGS sobre a 3.ª dose e sobre a vacina das crianças dos 5 aos 11 anos. Saiu sem que, a meu ver, a sua liderança, eficaz durante o seu exercício, tenha persistido na equipa sucessora, meio eclipsada pela DGS.

A protelação da ascensão de Melo pelo artificialismo presidencial de que ainda não tinha chegado o tempo oportuno e que agora chegara pelo advento das novas leis orgânicas só fez aumentar as deslocações de Melo país e multiplicar as mostras de apreço e popularidade, bem como as suas contradições e ambições e as intromissões abusivas sobre o seu percurso militar, como insinua em artigo no DN Joana Amaral Dias, esquecendo que nunca o vice-almirante fora condenado nem em processo disciplinar nem em processo judicial.

Portanto, não é o Governo que se está a aproveitar da popularidade de Melo nem é por ia das eleições, pois já o queria promover em março passado e sobretudo em setembro. Também não se pode acusar o Governo ou o PR de vindicta pelo facto de Calado ter discordado da nova LOBOFA, pois o CEME também discordou e foi reconduzido e o CEMFA (Chefe do Estado Maior da Força Aérea), que também discordou, mantém-se no cargo.

Segundo a LOBOFA, se o PR rejeitar o nome proposto pelo Governo, compete a este encontrar outro nome, pelo que, não tendo o PR rejeitado o nome de Melo, mas apenas o tempo em que foi proposto, o Governo, embora o pudesse ter feito, não tinha que manter a situação presente nem que procurar outo nome. Assim, o que faltou ao Governo foi explicar estas coisas tintim por tintim e britar todo este imbróglio artificial. De resto, se Calado foi a Belém ou não pouco interessa. Nem é nisto que este Governo, como os demais desde início da década de 90, têm desrespeitado e desvalorizado as Forças Armadas, sabendo-se que a missão de um militar, pelo empenho e esforço que exige, tem de ter sempre curta duração em nome da eficácia.

Cinco anos como CEMGFA ou como chefe de ramo é tempo a mais.

2021.12.27 – Louro de Carvalho