O tema do 2.º domingo do Advento, no Ano C, gravita em torno
da missão profética, que persiste no apelo à conversão e renovação, eliminando
os óbices à chegada do Senhor ao coração dos homens e ao mundo. É a exigência
feita a todos os batizados, chamados (neste tempo em especial) a dar testemunho da salvação/libertação que Jesus Cristo nos
veio oferecer.
O Evangelho apresenta-nos João Batista a convidar os homens à
transformação total quanto à forma de pensar e agir, quanto aos valores e às
prioridades da vida. Para que Jesus possa caminhar ao encontro de cada homem e
apresentar-lhe a proposta de salvação, importa que os corações estejam livres e
disponíveis para acolher a Boa Nova do Reino. É esta missão profética que Deus
continua, hoje, a confiar-nos.
A 1.ª leitura (Br 5,1-9) sugere que a rota de conversão é
verdadeiro êxodo da terra da escravidão para a terra da liberdade. No percurso,
somos convidados a despojar-nos das cadeias que nos impedem de acolher a
proposta libertadora de Deus. E o trecho em referência convida-nos a viver numa
serena alegria, confiantes no Deus que não desiste do seu desígnio de salvação
para todos, muito embora pesem os nossos erros e dificuldades.
O livro deuterocanónico de Baruch (tardio,
só conhecido em grego) é de autor desconhecido, embora seja tido como redigido por Baruch,
secretário de Jeremias, no exílio na Babilónia (cf Br 1,1-2). E a crítica interna revela, pelos dados pessoais que não
quadram com o que sabemos de Jeremias e pelo desenvolvimento de ideias e
perspetivas posteriores ao exílio, a impossibilidade de atribuir a obra ao
secretário de Jeremias, sendo quiçá um texto do século II a.C., na diáspora
judaica, a exortar os hierosolimitas a
celebrarem uma liturgia penitencial e a reconciliarem-se com Javé.
O trecho em referência (todo o cap. 5) está inserto na 4.ª parte do livro, integrado numa exortação
e consolação a Jerusalém – ao estilo do Deuteroisaías. Tendo exortado à
confissão dos pecados (cf
Br 1,15-3,8), o autor
vinca a certeza de que Israel, iluminado Sabedoria, voltará ao temor de Deus (cf Br 3,9-4,4) e obterá o perdão. Por isso, o
profeta exorta Jerusalém à coragem (cf Br 4,5-37) e à alegria com a atitude misericordiosa de Javé em favor do
Povo pecador (cf Br
5,1-9).
O profeta compara Jerusalém infiel à mulher de luto,
desanimada e aflita, sem razões para a esperança. Todavia, a mensagem
fundamental do texto é: o luto findou; Deus perdoou-te todas as tuas faltas e
quer devolver-te a vida e a esperança. Para concretizar a promessa do futuro
novo, evoca-se o regresso dos filhos exilados, com a linguagem do Deuteroisaías,
apresentando tal retorno como novo êxodo da terra da escravidão (do pecado…) para a Jerusalém da justiça e da piedade.
Tal ação resulta do amor de Deus, sempre disposto a perdoar o afastamento dos
filhos e a reatar com eles a história de libertação e salvação. Por isso, o
profeta canta, em esplendoroso modo, a cidade de
Jerusalém personificada como Esposa e Mãe – Esposa de Deus, vestida e adornada maravilhosamente,
e Mãe dos filhos de Deus, que regressam festivamente a Casa, vindos dos quatro
cantos do mundo, unidos e reunidos, livres e felizes, saídos de todas as
opressões, exílios e orfandades.
A 2.ª leitura (Fl 1,4-6.8-11), da Carta aos Filipenses exorta a
comunidade a preocupar-se com o anúncio profético e a mostrar, em concreto,
solidariedade total (a
solidariedade é dever, não capricho) para com todos os que fazem sua a causa do Evangelho. E
sugere que a comunidade dê verdadeiro testemunho de caridade, banindo, para
tanto, as divisões e conflitos, tornando-se digna do Senhor que vem.
Esta, a mais afetuosa das cartas de Paulo, é dirigida a uma
comunidade a que Paulo se afeiçoou, que o ama, o ajuda e se preocupa com ele.
Aquando da sua escrita, Paulo está na prisão (quiçá em Éfeso). De Filipos (a primeira comunidade cristã fundada por
Paulo em solo europeu, pelo ano 49 ou 50), recebeu dinheiro e Epafrodito, um membro da
comunidade, encarregado de ajudar Paulo no que fosse necessário. Enviando-o de
volta, Paulo agradece, dá notícias, informa a comunidade da sua sorte e exorta-a
à fidelidade ao Evangelho.
O trecho em apreço integra a ação de graças com que o
apóstolo dá início à missiva: agradece a Deus a fidelidade dos Filipenses e o
empenho na difusão do Evangelho. Assim, Paulo começa por evidenciar a sua
comoção pelo empenho dos Filipenses na difusão do Evangelho e na ajuda aos que
se empenham no seu anúncio (e, em especial, a Paulo, prisioneiro por causa do seu testemunho). Paulo sente grande ternura pela
comunidade atenta às necessidades dos evangelizadores e solidária com todos os
que dão a sua vida à causa da Boa Nova. Depois, roga a Deus que aumente a
caridade dos Filipenses (apesar
de ser comunidade modelo, nem tudo era perfeito: Paulo tem que pedir a duas
senhoras que façam as pazes e não dividam a comunidade – cf Fl 4,2-3). A vivência da caridade é essencial para
os Filipenses poderem aguardar, irrepreensíveis e puros, a vinda de Cristo.
O trecho do Evangelho (Lc 3,1-6) desta liturgia dominical vem logo a
seguir ao “evangelho da infância”, na versão lucana. Aqui tem início oficial o
Evangelho, isto é, o anúncio da Boa Nova de Jesus. Antes de começar a descrever
a ação libertadora de Jesus no meio dos homens, Lucas apresenta João Batista, o
profeta que veio preparar a chegada do Messias de Deus.
Lucas, que “tudo investigou cuidadosamente desde a origem” (“parêcolouthêkóti
ánôthen pâsin akribôs”: Lc 1,3), situa o quadro do Batista no seu
enquadramento histórico (pelos
anos 28-29 ou, pelo cálculo siríaco, ao ano
27-28). Nomeia 7
personagens (do imperador
Tibério ao sumo sacerdote Caifás), para situar no tempo os acontecimentos da salvação. Sugere,
assim, que a aventura do Deus que vem ao encontro dos homens para lhes revelar
um projeto de salvação não é lenda perdida na bruma do tempo e da memória dos
homens, mas história concreta, com acontecimentos concretos, que podem ser
ligados a um determinado momento histórico e a uma terra.
Depois, apresenta a figura de João Batista: “uma voz que
grita no deserto” (“phônê Boôntos en têi erêmoi”) e convida a preparar os caminhos do coração para Jesus, o Messias de
Deus, poder vir ao encontro de cada homem. O evangelista sugere que a missão
profética de João lhe é confiada por Deus. Assim, o chamamento de João é
referido com as mesmas palavras do chamamento de Jeremias (cf Jr 1,1, no texto grego), para assinalar a índole profética
do seu anúncio. E Lucas situa a atividade profética de João num espaço
geográfico: prega em toda a zona do rio Jordão (Mt e Mc, situam-no no deserto), região bastante povoada, sobretudo
após as construções de Herodes e de Arquelau. Com efeito, o anúncio profético
de João destina-se aos homens, convidados a acolher o Messias que está para
fazer a sua aparição no mundo. Finalmente, concretiza-se o âmbito da missão:
João proclama um batismo de conversão (“báptisma metanoías”), para a remissão dos pecados (“eis
áphesin amartiôn”). (A palavra metanoia sugere uma revolução total da mentalidade que leva à transformação
total da forma de pensar e de agir). Para acolher o Messias que está para chegar, é necessário
um processo de conversão que leve a repensar a vida, as prioridades, os
valores, porque só nos corações totalmente transformados, o Messias encontrará
lugar.
O trecho evangélico em causa conclui-se com uma citação do
Deuteroisaías (cf Is
40,3-5), que serve para
anunciar aos exilados na Babilónia a libertação e o regresso a casa em novo êxodo.
Deste modo, Lucas sugere que está a chegar a libertação. Porém, urge que os destinatários
do projeto libertador aceitem esse caminho, se deixem transformar e acolham a
salvação de Deus.
Para Dom António Couto, se o narrador só quisesse
situar João e Jesus no centro da história de então, bastava referir Tibério.
Mas acrescenta 4 nomes, conexos com a divisão do reino de Herodes o Grande (37-4 a. C.): Pilatos, governador romano da Judeia
(26-36 d.C.), que levará Jesus à cruz (Lc 23,24); Herodes Antipas, responsável pela
prisão e decapitação de João (Lc 3,20; 9,9) e,
como tetrarca da Galileia (4 a.C-39 d.C.), com
jurisdição sobre Jesus (Lc
13,31), pelo que Pilatos
lho enviará (Lc 23,6-12). Estas figuras estão diretamente
ligadas à morte violenta de Jesus e de João. E mencionar Filipe, tetrarca da
Itureia e Traconítide, regiões que se estendiam a norte e oriente do Mar da
Galileia, e Lisânias, tetrarca de Abilene, mostra que a história de Jesus e a
salvação que Ele traz têm a ver, não só com os hebreus, mas com todos os povos
e mesmo com as periferias (o
acento da universalidade da salvação por Lucas). Anás e Caifás (sumos-sacerdotes de 5 a.C. a 15 d.C. e de 18 a 36 d.C.,
respetivamente) trazem à
cena o poder religioso que se escandalizou com as atitudes de Jesus e solicitou
a sua morte. Ora, este mapa do mundo civil e religioso, rachado de forma
impiedosa pela Palavra de Deus (“rhêma Theoû”),
veio como acontecimento (“egéneto”) sobre João, no deserto (Lc 3,2). Assim, o elenco dos nomes dos grandes do mundo de
então não traduz tanto a pretensão de fazer história, mas a inoculação da ideia
de que a Palavra de Deus passa ao lado dos senhores deste mundo, o mundo rico e
saciado, poderoso e religioso, impiedoso e insensível, para cair sobre um
pobre, João Batista, que não habita em palácios, mas no deserto.
De facto, no deserto nada é obra das mãos do homem,
nada é idolátrico; tudo é obra de Deus. Lá irrompe a criação pela voz de Deus,
“voz que nunca se ouviu, silêncio que nunca se calou”.
***
No seu
discurso homilético em Atenas, Francisco aponta a figura do Batista e vinca dois
aspetos: o lugar onde se encontra, o deserto; e o conteúdo da mensagem, a
conversão. E frisa que o Evangelho desta liturgia insiste nisto com uma
insistência tal que nos faz compreender que estas palavras nos dizem respeito
diretamente, pelo que as devemos acolher as ambas.
Ao falar do deserto, diz o Papa que o evangelista apresenta este lugar de forma peculiar.
Com efeito, refere circunstâncias solenes e grandes personagens da época: o
15.º ano do império (“hegemonías”) de Tibério César, o governador Pôncio Pilatos, o rei Herodes
e outros líderes políticos. Depois, menciona os chefes religiosos, Anás e
Caifás, do Templo de Jerusalém (cf Lc 3,1-2). E declara: “a palavra de Deus foi
dirigida a João, filho de Zacarias, no deserto” (Lc 3,2). Parecia normal que a Palavra de
Deus se dirigisse a um dos grandes citados. Porém, nas linhas do Evangelho
emerge subtil ironia: dos nobres palácios dos detentores do poder passa-se de súbito
para o deserto, para um homem desconhecido e solitário. Quer isto dizer que Deus
e as suas opções nos surpreendem: “o Senhor prefere a pequenez e a humildade” e
“a redenção não começa em Jerusalém, Atenas ou Roma, mas no deserto”. Esta
estratégia ensina que ter autoridade ou ser culto e famoso não constituem
garantia para agradar a Deus; ao invés, podem levar-nos ao orgulho e
rejeitá-Lo. Assim, ajuda-nos a ser pobres intimamente, como o deserto.
Então, o
Precursor prepara a vinda de Cristo no deserto, lugar impérvio e inospitaleiro,
cheio de perigos. E nesse lugar da aridez, espaço vazio que se estende a perder
de vista e onde quase nem há vida, se revela a glória do Senhor, que – segundo
as Escrituras (cf Is 40,3-4) – transforma o deserto em lago, a
terra árida em nascentes de água (cf Is 41,18). Ou seja, “Deus volta o seu olhar
para onde dominam tristeza e a solidão”, as situações difíceis, os nossos
vazios, os nossos desertos existenciais, onde Lhe damos espaço. É aí que nos
visita, não entre aplausos e dita. E Francisco, observando que, na vida duma
pessoa ou dum povo, não há falta de momentos de deserto, considera que “é
precisamente aí que Se faz presente o Senhor, que muitas vezes não é acolhido
por quem se sente bem-sucedido, mas pela pessoa que se sente incapaz de vencer”.
E as suas palavras são “de proximidade, compaixão e ternura”: Não temas, porque Eu estou contigo; não te
angusties, porque Eu sou o teu Deus. Eu fortaleço-te e auxilio-te.” (Is 41,10).
Pregando no
deserto, João assegura que o Senhor vem para nos libertar e de novo nos dar
vida nas situações que parecem irresgatáveis: é aqui que Ele vem. E não há
lugar que Deus não queira visitar. Por isso, não devemos temer a pequenez, pois
a questão não é sermos pequenos e poucos, mas abrirmo-nos a Deus e aos outros; e
não devemos temer a aridez, pois não a teme Deus que nela nos visita.
A conversão, temática incómoda, o Batista pregava-a sem parar e de forma veemente (cf Lc 3,7). Tal como o deserto não é o lugar aonde gostaríamos de ir, também o
convite à conversão não é a primeira proposta que gostamos de ouvir. Pode gerar
tristeza, parecendo difícil conciliá-la com o Evangelho da alegria, o que se
verificará se a conversão se reduzir a um esforço moral, como se fosse fruto só
do nosso empenho, ou seja, se basearmos
tudo sobre as nossas forças. Aqui se escondem a tristeza espiritual
e a frustração: queremos converter-nos, ser melhores, superar os defeitos, mas
sentimos que não somos plenamente capazes e, apesar da boa vontade, recaímos.
Temos a mesma experiência de Paulo que, a partir da Grécia, escrevia: “Querer está ao meu alcance, mas realizar o
bem, isso não. É que não é o bem que eu quero que faço, mas o mal que eu não
quero, isso é que pratico” (Rm 7,18-19). Ora, se não temos a capacidade de,
sozinhos, fazermos o bem que queremos, devemos converter-nos.
E o Papa
entende que nisto a língua grega pode ajudar com a etimologia do verbo “metanoéin, converter (da preposição meta, a
significar além, e do verbo noéin, a querer dizer pensar). Converter-se é pensar além, isto é, ir além do
modo habitual de pensar, dos nossos esquemas mentais. De facto, os nossos
esquemas reduzem tudo ao nosso ‘eu’, à nossa autossuficiência; ou à rigidez e ao
medo que paralisam, pela tentação do “sempre se fez assim”, pela ideia de que
os desertos da vida são lugares de morte e não da presença de Deus.
Exortando à
conversão, o Batista convida-nos a ir além, além do que os nossos instintos nos
sugerem e os nossos pensamentos fotografam, porque a realidade é maior. Na
verdade, “Deus é maior”.
E converter-se significa não escutar o que enterra a esperança, recusar-se a
acreditar que estamos destinados a afundar nas areias movediças da
mediocridade; é não ceder aos fantasmas que surgem sobretudo nos momentos de
provação para nos desanimar, dizendo que não vamos conseguir ou que ser santo
não é para nós. Ao invés, é preciso confiar em Deus, porque é Ele o
nosso além, a nossa força. Tudo muda, se se deixar a Ele o primeiro lugar. Ao
Senhor basta a nossa porta aberta para Ele entrar e fazer maravilhas, tal como
Lhe bastaram o deserto e as palavras de João para vir ao mundo. Este é o dinamismo
da conversão e é o que nos leva a pedir e a acalentar a graça da esperança “que
reanima a fé e reacende a caridade”.
E o Pontífice
exorta a que “peçamos à nossa Mãe, a Toda Santa, que nos ajude a ser, como
Ela, testemunhas de esperança”
– pois a esperança nunca dececiona – e semeadores de alegria.
***
O Senhor que
vem manda erguer a cabeça e transformar totalmente as vidas sob novos
critérios.
2021.12.05 – Louro de Carvalho
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