segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

Convite à transformação total quanto aos valores e prioridades da vida

 

O tema do 2.º domingo do Advento, no Ano C, gravita em torno da missão profética, que persiste no apelo à conversão e renovação, eliminando os óbices à chegada do Senhor ao coração dos homens e ao mundo. É a exigência feita a todos os batizados, chamados (neste tempo em especial) a dar testemunho da salvação/libertação que Jesus Cristo nos veio oferecer.

O Evangelho apresenta-nos João Batista a convidar os homens à transformação total quanto à forma de pensar e agir, quanto aos valores e às prioridades da vida. Para que Jesus possa caminhar ao encontro de cada homem e apresentar-lhe a proposta de salvação, importa que os corações estejam livres e disponíveis para acolher a Boa Nova do Reino. É esta missão profética que Deus continua, hoje, a confiar-nos.

A 1.ª leitura (Br 5,1-9) sugere que a rota de conversão é verdadeiro êxodo da terra da escravidão para a terra da liberdade. No percurso, somos convidados a despojar-nos das cadeias que nos impedem de acolher a proposta libertadora de Deus. E o trecho em referência convida-nos a viver numa serena alegria, confiantes no Deus que não desiste do seu desígnio de salvação para todos, muito embora pesem os nossos erros e dificuldades.

O livro deuterocanónico de Baruch (tardio, só conhecido em grego) é de autor desconhecido, embora seja tido como redigido por Baruch, secretário de Jeremias, no exílio na Babilónia (cf Br 1,1-2). E a crítica interna revela, pelos dados pessoais que não quadram com o que sabemos de Jeremias e pelo desenvolvimento de ideias e perspetivas posteriores ao exílio, a impossibilidade de atribuir a obra ao secretário de Jeremias, sendo quiçá um texto do século II a.C., na diáspora judaica, a exortar os hierosolimitas a celebrarem uma liturgia penitencial e a reconciliarem-se com Javé.

O trecho em referência (todo o cap. 5) está inserto na 4.ª parte do livro, integrado numa exortação e consolação a Jerusalém – ao estilo do Deuteroisaías. Tendo exortado à confissão dos pecados (cf Br 1,15-3,8), o autor vinca a certeza de que Israel, iluminado Sabedoria, voltará ao temor de Deus (cf Br 3,9-4,4) e obterá o perdão. Por isso, o profeta exorta Jerusalém à coragem (cf Br 4,5-37) e à alegria com a atitude misericordiosa de Javé em favor do Povo pecador (cf Br 5,1-9).

O profeta compara Jerusalém infiel à mulher de luto, desanimada e aflita, sem razões para a esperança. Todavia, a mensagem fundamental do texto é: o luto findou; Deus perdoou-te todas as tuas faltas e quer devolver-te a vida e a esperança. Para concretizar a promessa do futuro novo, evoca-se o regresso dos filhos exilados, com a linguagem do Deuteroisaías, apresentando tal retorno como novo êxodo da terra da escravidão (do pecado…) para a Jerusalém da justiça e da piedade. Tal ação resulta do amor de Deus, sempre disposto a perdoar o afastamento dos filhos e a reatar com eles a história de libertação e salvação. Por isso, o profeta canta, em esplendoroso modo, a cidade de Jerusalém personificada como Esposa e Mãe – Esposa de Deus, vestida e adornada maravilhosamente, e Mãe dos filhos de Deus, que regressam festivamente a Casa, vindos dos quatro cantos do mundo, unidos e reunidos, livres e felizes, saídos de todas as opressões, exílios e orfandades.   

A 2.ª leitura (Fl 1,4-6.8-11), da Carta aos Filipenses exorta a comunidade a preocupar-se com o anúncio profético e a mostrar, em concreto, solidariedade total (a solidariedade é dever, não capricho) para com todos os que fazem sua a causa do Evangelho. E sugere que a comunidade dê verdadeiro testemunho de caridade, banindo, para tanto, as divisões e conflitos, tornando-se digna do Senhor que vem.

Esta, a mais afetuosa das cartas de Paulo, é dirigida a uma comunidade a que Paulo se afeiçoou, que o ama, o ajuda e se preocupa com ele. Aquando da sua escrita, Paulo está na prisão (quiçá em Éfeso). De Filipos (a primeira comunidade cristã fundada por Paulo em solo europeu, pelo ano 49 ou 50), recebeu dinheiro e Epafrodito, um membro da comunidade, encarregado de ajudar Paulo no que fosse necessário. Enviando-o de volta, Paulo agradece, dá notícias, informa a comunidade da sua sorte e exorta-a à fidelidade ao Evangelho.

O trecho em apreço integra a ação de graças com que o apóstolo dá início à missiva: agradece a Deus a fidelidade dos Filipenses e o empenho na difusão do Evangelho. Assim, Paulo começa por evidenciar a sua comoção pelo empenho dos Filipenses na difusão do Evangelho e na ajuda aos que se empenham no seu anúncio (e, em especial, a Paulo, prisioneiro por causa do seu testemunho). Paulo sente grande ternura pela comunidade atenta às necessidades dos evangelizadores e solidária com todos os que dão a sua vida à causa da Boa Nova. Depois, roga a Deus que aumente a caridade dos Filipenses (apesar de ser comunidade modelo, nem tudo era perfeito: Paulo tem que pedir a duas senhoras que façam as pazes e não dividam a comunidade – cf Fl 4,2-3). A vivência da caridade é essencial para os Filipenses poderem aguardar, irrepreensíveis e puros, a vinda de Cristo.

O trecho do Evangelho (Lc 3,1-6) desta liturgia dominical vem logo a seguir ao “evangelho da infância”, na versão lucana. Aqui tem início oficial o Evangelho, isto é, o anúncio da Boa Nova de Jesus. Antes de começar a descrever a ação libertadora de Jesus no meio dos homens, Lucas apresenta João Batista, o profeta que veio preparar a chegada do Messias de Deus.

Lucas, que “tudo investigou cuidadosamente desde a origem” (“parêcolouthêkóti ánôthen pâsin akribôs”: Lc 1,3), situa o quadro do Batista no seu enquadramento histórico (pelos anos 28-29 ou, pelo cálculo siríaco, ao ano 27-28). Nomeia 7 personagens (do imperador Tibério ao sumo sacerdote Caifás), para situar no tempo os acontecimentos da salvação. Sugere, assim, que a aventura do Deus que vem ao encontro dos homens para lhes revelar um projeto de salvação não é lenda perdida na bruma do tempo e da memória dos homens, mas história concreta, com acontecimentos concretos, que podem ser ligados a um determinado momento histórico e a uma terra.

Depois, apresenta a figura de João Batista: “uma voz que grita no deserto” (“phônê Boôntos en têi erêmoi”) e convida a preparar os caminhos do coração para Jesus, o Messias de Deus, poder vir ao encontro de cada homem. O evangelista sugere que a missão profética de João lhe é confiada por Deus. Assim, o chamamento de João é referido com as mesmas palavras do chamamento de Jeremias (cf Jr 1,1, no texto grego), para assinalar a índole profética do seu anúncio. E Lucas situa a atividade profética de João num espaço geográfico: prega em toda a zona do rio Jordão (Mt e Mc, situam-no no deserto), região bastante povoada, sobretudo após as construções de Herodes e de Arquelau. Com efeito, o anúncio profético de João destina-se aos homens, convidados a acolher o Messias que está para fazer a sua aparição no mundo. Finalmente, concretiza-se o âmbito da missão: João proclama um batismo de conversão (“báptisma metanoías”), para a remissão dos pecados (“eis áphesin amartiôn”). (A palavra metanoia sugere uma revolução total da mentalidade que leva à transformação total da forma de pensar e de agir). Para acolher o Messias que está para chegar, é necessário um processo de conversão que leve a repensar a vida, as prioridades, os valores, porque só nos corações totalmente transformados, o Messias encontrará lugar.

O trecho evangélico em causa conclui-se com uma citação do Deuteroisaías (cf Is 40,3-5), que serve para anunciar aos exilados na Babilónia a libertação e o regresso a casa em novo êxodo. Deste modo, Lucas sugere que está a chegar a libertação. Porém, urge que os destinatários do projeto libertador aceitem esse caminho, se deixem transformar e acolham a salvação de Deus.

Para Dom António Couto, se o narrador só quisesse situar João e Jesus no centro da história de então, bastava referir Tibério. Mas acrescenta 4 nomes, conexos com a divisão do reino de Herodes o Grande (37-4 a. C.): Pilatos, governador romano da Judeia (26-36 d.C.), que levará Jesus à cruz (Lc 23,24); Herodes Antipas, responsável pela prisão e decapitação de João (Lc 3,20; 9,9) e, como tetrarca da Galileia (4 a.C-39 d.C.), com jurisdição sobre Jesus (Lc 13,31), pelo que Pilatos lho enviará (Lc 23,6-12). Estas figuras estão diretamente ligadas à morte violenta de Jesus e de João. E mencionar Filipe, tetrarca da Itureia e Traconítide, regiões que se estendiam a norte e oriente do Mar da Galileia, e Lisânias, tetrarca de Abilene, mostra que a história de Jesus e a salvação que Ele traz têm a ver, não só com os hebreus, mas com todos os povos e mesmo com as periferias (o acento da universalidade da salvação por Lucas). Anás e Caifás (sumos-sacerdotes de 5 a.C. a 15 d.C. e de 18 a 36 d.C., respetivamente) trazem à cena o poder religioso que se escandalizou com as atitudes de Jesus e solicitou a sua morte. Ora, este mapa do mundo civil e religioso, rachado de forma impiedosa pela Palavra de Deus (“rhêma Theoû), veio como acontecimento (“egéneto) sobre João, no deserto (Lc 3,2). Assim, o elenco dos nomes dos grandes do mundo de então não traduz tanto a pretensão de fazer história, mas a inoculação da ideia de que a Palavra de Deus passa ao lado dos senhores deste mundo, o mundo rico e saciado, poderoso e religioso, impiedoso e insensível, para cair sobre um pobre, João Batista, que não habita em palácios, mas no deserto.

De facto, no deserto nada é obra das mãos do homem, nada é idolátrico; tudo é obra de Deus. Lá irrompe a criação pela voz de Deus, “voz que nunca se ouviu, silêncio que nunca se calou”.

***

No seu discurso homilético em Atenas, Francisco aponta a figura do Batista e vinca dois aspetos: o lugar onde se encontra, o deserto; e o conteúdo da mensagem, a conversão. E frisa que o Evangelho desta liturgia insiste nisto com uma insistência tal que nos faz compreender que estas palavras nos dizem respeito diretamente, pelo que as devemos acolher as ambas.

Ao falar do deserto, diz o Papa que o evangelista apresenta este lugar de forma peculiar. Com efeito, refere circunstâncias solenes e grandes personagens da época: o 15.º ano do império (“hegemonías) de Tibério César, o governador Pôncio Pilatos, o rei Herodes e outros líderes políticos. Depois, menciona os chefes religiosos, Anás e Caifás, do Templo de Jerusalém (cf Lc 3,1-2). E declara: “a palavra de Deus foi dirigida a João, filho de Zacarias, no deserto” (Lc 3,2). Parecia normal que a Palavra de Deus se dirigisse a um dos grandes citados. Porém, nas linhas do Evangelho emerge subtil ironia: dos nobres palácios dos detentores do poder passa-se de súbito para o deserto, para um homem desconhecido e solitário. Quer isto dizer que Deus e as suas opções nos surpreendem: “o Senhor prefere a pequenez e a humildade” e “a redenção não começa em Jerusalém, Atenas ou Roma, mas no deserto”. Esta estratégia ensina que ter autoridade ou ser culto e famoso não constituem garantia para agradar a Deus; ao invés, podem levar-nos ao orgulho e rejeitá-Lo. Assim, ajuda-nos a ser pobres intimamente, como o deserto.

Então, o Precursor prepara a vinda de Cristo no deserto, lugar impérvio e inospitaleiro, cheio de perigos. E nesse lugar da aridez, espaço vazio que se estende a perder de vista e onde quase nem há vida, se revela a glória do Senhor, que – segundo as Escrituras (cf Is 40,3-4) – transforma o deserto em lago, a terra árida em nascentes de água (cf Is 41,18). Ou seja, “Deus volta o seu olhar para onde dominam tristeza e a solidão”, as situações difíceis, os nossos vazios, os nossos desertos existenciais, onde Lhe damos espaço. É aí que nos visita, não entre aplausos e dita. E Francisco, observando que, na vida duma pessoa ou dum povo, não há falta de momentos de deserto, considera que “é precisamente aí que Se faz presente o Senhor, que muitas vezes não é acolhido por quem se sente bem-sucedido, mas pela pessoa que se sente incapaz de vencer”. E as suas palavras são “de proximidade, compaixão e ternura”: Não temas, porque Eu estou contigo; não te angusties, porque Eu sou o teu Deus. Eu fortaleço-te e auxilio-te.” (Is 41,10).

Pregando no deserto, João assegura que o Senhor vem para nos libertar e de novo nos dar vida nas situações que parecem irresgatáveis: é aqui que Ele vem. E não há lugar que Deus não queira visitar. Por isso, não devemos temer a pequenez, pois a questão não é sermos pequenos e poucos, mas abrirmo-nos a Deus e aos outros; e não devemos temer a aridez, pois não a teme Deus que nela nos visita.

A conversão, temática incómoda, o Batista pregava-a sem parar e de forma veemente (cf Lc 3,7). Tal como o deserto não é o lugar aonde gostaríamos de ir, também o convite à conversão não é a primeira proposta que gostamos de ouvir. Pode gerar tristeza, parecendo difícil conciliá-la com o Evangelho da alegria, o que se verificará se a conversão se reduzir a um esforço moral, como se fosse fruto só do nosso empenho, ou seja, se basearmos tudo sobre as nossas forças. Aqui se escondem a tristeza espiritual e a frustração: queremos converter-nos, ser melhores, superar os defeitos, mas sentimos que não somos plenamente capazes e, apesar da boa vontade, recaímos. Temos a mesma experiência de Paulo que, a partir da Grécia, escrevia: “Querer está ao meu alcance, mas realizar o bem, isso não. É que não é o bem que eu quero que faço, mas o mal que eu não quero, isso é que pratico(Rm 7,18-19). Ora, se não temos a capacidade de, sozinhos, fazermos o bem que queremos, devemos converter-nos.

E o Papa entende que nisto a língua grega pode ajudar com a etimologia do verbo “metanoéin, converter (da preposição meta, a significar além, e do verbo noéin, a querer dizer pensar). Converter-se é pensar além, isto é, ir além do modo habitual de pensar, dos nossos esquemas mentais. De facto, os nossos esquemas reduzem tudo ao nosso ‘eu’, à nossa autossuficiência; ou à rigidez e ao medo que paralisam, pela tentação do “sempre se fez assim”, pela ideia de que os desertos da vida são lugares de morte e não da presença de Deus.

Exortando à conversão, o Batista convida-nos a ir além, além do que os nossos instintos nos sugerem e os nossos pensamentos fotografam, porque a realidade é maior. Na verdade, “Deus é maior. E converter-se significa não escutar o que enterra a esperança, recusar-se a acreditar que estamos destinados a afundar nas areias movediças da mediocridade; é não ceder aos fantasmas que surgem sobretudo nos momentos de provação para nos desanimar, dizendo que não vamos conseguir ou que ser santo não é para nós. Ao invés, é preciso confiar em Deus, porque é Ele o nosso além, a nossa força. Tudo muda, se se deixar a Ele o primeiro lugar. Ao Senhor basta a nossa porta aberta para Ele entrar e fazer maravilhas, tal como Lhe bastaram o deserto e as palavras de João para vir ao mundo. Este é o dinamismo da conversão e é o que nos leva a pedir e a acalentar a graça da esperança “que reanima a fé e reacende a caridade”.

E o Pontífice exorta a que “peçamos à nossa Mãe, a Toda Santa, que nos ajude a ser, como Ela, testemunhas de esperança – pois a esperança nunca dececiona – e semeadores de alegria.

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O Senhor que vem manda erguer a cabeça e transformar totalmente as vidas sob novos critérios.

2021.12.05 – Louro de Carvalho

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