Está
na ordem do dia o desiderato plasmado em epígrafe e quem o trouxe para a
ribalta foi o Presidente da República.
É
certo que foi o líder do PSD quem aventou a hipótese de, no caso de o PS ganhar
as eleições legislativas de 30 de janeiro, o seu partido estar disponível para
viabilizar dois Orçamentos do Estado, o que, por suposta coerência de Rio,
postula que o PS diga se também oferece a mesma disponibilidade, caso o PSD
ganhe as mesmas eleições.
Parte
este arrazoado discursivo da hipótese mais provável de um destes partidos
vencer as eleições sem maioria absoluta, pois, havendo maioria absoluta de um
deles, o entendimento e até o simples diálogo serão pontuais ou cingir-se-ão ao
cumprimento formal da exigência do convívio democrático e do direito das
oposições (vd CRP, art.º 114.º).
Ora,
a meu ver, os pequenos ciclos políticos como regra não são consentâneos com o
espírito do legislador constituinte. Antes, a Constituição (CRP)
prevê como desígnio
normal em democracia a regularidade dos ciclos políticos. Com efeito, o n.º 1
do seu art.º 171.º estabelece que “a
legislatura tem a duração de quatro sessões legislativas” e o n.º do art.º
174.º estabelece que “a sessão
legislativa tem a duração de um ano e inicia-se a 15 de setembro”, estipulando
o n.º 2 deste mesmo artigo que “o período
normal de funcionamento da Assembleia da República decorre de 15 de setembro a
15 de Junho, sem prejuízo das suspensões que a Assembleia deliberar por maioria
de dois terços dos deputados presentes”. E, se o Governo dimana do
Parlamento, embora a competência para a nomeação do Primeiro-Ministro seja do
Chefe de Estado, tendo em conta os resultados eleitorais e ouvidos os partidos
com assento parlamentar (cf art.º 187.º/1), é normal que o Governo dure,
embora com remodelações, uma legislatura.
Em
contraponto, a Constituição liberta o sistema da simultaneidade de mandatos.
Tanto assim é que o mandato do Presidente da República é de 5 anos (vd
art.º 128.º/1), e
não de 4. Por outro lado, a Constituição prevê situações de exceção à
normalidade, como se discrimina a seguir.
Na
verdade, o Presidente da República pode perder o cargo (vd
art.º 129.º), pode
ser substituído interinamente (vd art.º 132.º), pode renunciar ao mandato (vd
art.º 131.º), mas,
em caso de vagatura, “o Presidente da
República a eleger inicia um novo mandato” (vd art.º
128.º/2).
Também a Assembleia da República
“pode funcionar por deliberação do Plenário, prorrogando o período normal de
funcionamento, por iniciativa da Comissão Permanente ou, na impossibilidade
desta e em caso de grave emergência, por iniciativa de mais de metade dos deputados”;
“pode ainda ser convocada extraordinariamente pelo Presidente da República para
se ocupar de assuntos específicos” (vd art.º 174.º/3.4.); e pode ser dissolvida pelo
Presidente da República, ouvido o Conselho de Estado e os partidos com assento
parlamentar (vd art.º 133.º, al e). Porém,
o art.º 172.º estabelece limitações temporais a este poder presidencial sob
pena de inexistência jurídica do ato; e a dissolução “não
prejudica a subsistência do mandato dos deputados, nem da competência da
Comissão Permanente, até à primeira reunião da Assembleia após as subsequentes
eleições”. Porém, a Assembleia da República eleita na sequência de dissolução
da anterior não completa legislatura anterior, mas inaugura nova legislatura, “cuja duração será inicialmente
acrescida do tempo necessário para se completar o período correspondente à
sessão legislativa em curso à data da eleição” (vd art.º 172.º/2). Já o Governo, de si mais
precário na sobrevivência, embora sem o espectro da ameaça permanente, cai por
morte ou a impossibilidade física duradoura do Primeiro-Ministro, aceitação do
pedido de demissão do Primeiro-Ministro pelo Presidente da República, início de
legislatura, aprovação de moção de rejeição do seu programa, não aprovação de
moção de confiança por si solicitada, por aprovação de moção de censura e ato
de demissão da parte do Presidente da República, neste caso, “só quando tal se
torne necessário para assegurar o regular funcionamento das instituições
democráticas, ouvido o Conselho de Estado” (vd art.º 195.º).
Assim, o legislador constituinte
parece, por um lado, advogar a regularidade do sistema, mas não em absoluto, e
evitar, por outro, a simultaneidade de mandatos do Parlamento e do Chefe de
Estado. Portanto, em situação normal, o mandato parlamentar é de 4 anos e o
presidencial é de 5, devendo o horizonte governativo, a menos que
circunstâncias excecionais recomendem outra forma de proceder, ser o horizonte
da legislatura.
***
Entretanto, não raro as oposições
reclamam a demissão de secretários de Estado, de ministros e, mesmo, do
Primeiro-Ministro, ousam rejeitar o programa do Governo, não aprovam moções de
confiança, aprovam moções de censura e criam condições para o Presidente
dissolver a Assembleia da República, aliás o que os Governos em funções também
fazem às vezes. Assim, minimiza-se ou desvaloriza-se a regularidade dos ciclos
políticos.
Neste contexto de minimização, o Presidente da
República, na contagem
decrescente para as eleições legislativas de janeiro, considera necessária a
“previsibilidade política” e espera que “as eleições permitam um horizonte até
2026”, aduzindo que “nunca há boas ocasiões para uma
não aprovação do Orçamento, muito menos nas circunstâncias que estávamos a viver”,
e observando que devem ser evitados “miniciclos políticos”. E, vincando que “do
ponto de vista económico e social, temos à nossa frente um período muito
importante”, fala de desafio nacional e considera que “não vai ser possível
continuar a enfrentar a pandemia e sobretudo pôr de pé a resposta económica e
social, que é necessária, se não houver previsibilidade no sistema político”.
Em discurso
ao 8.º Encontro Anual do Conselho
da Diáspora Portuguesa, o Chefe de
Estado identificou o problema de o sistema político não ter “capacidade para
responder com previsibilidade a desafios de médio prazo, que são os 6,7,10
anos”. Porém, o atual momento, no dizer de Marcelo, “permite que as eleições de
janeiro coincidam com um momento do ciclo pandémico e do ciclo económico e
social em termos de gestão dos fundos que não seja um momento intercalar
tardio”, tendo sido o acaso a colocar as eleições legislativas antecipadas num momento inicial e
não intercalar de decisões fundamentais sobre os fundos comunitários. Assim, no seu modo de ver, “os portugueses têm agora
a oportunidade, daqui até ao dia 30 de janeiro, de ponderar as escolhas, quer
no que respeita ao pós-pandemia, quer no que respeita à gestão económica e
social, tendo presente que o esforço que vai ser exigido é de fôlego e não pode
ser um esforço traduzido em miniciclos políticos, porque isso seria perder a oportunidade quer na gestão do que resta da pandemia, quer
sobretudo de reconstrução económica”. Na verdade, este
sistema, segundo Marcelo, terá de ter a capacidade de “responder com
previsibilidade no médio prazo, com uma capacidade institucional de médio
prazo”.
O Presidente
entende que “ninguém desejaria, nem deseja este tipo de desafios”, mas que “é
um desafio que com serenidade permite a Portugal no final de janeiro fazer
escolhas que outros países vão fazer mais tarde, em condições mais complexas”.
E, em jeito de balanço da situação do mundo, da Europa e de Portugal, identificou
três questões que determinarão o futuro do país: a leitura e gestão política da
pandemia que “ainda pesa”, a reconstrução/recuperação económica e social e a
capacidade de resposta do sistema político.
Marcelo
abordou também os populismos, que se “num primeiro momento de clima pandémico”
veem a sua influência reduzida, depois “começam a entrar pelas fissuras” que os
“avanços e recuos” deixam abertas, “reinventam-se a cada momento”, adotando ora
“uma expressão nacionalista”, ora “de recusa da diferença”. Não se pronunciou,
no entanto, sobre a gestão específica da pandemia pelo Governo, mas advertiu
que “estamos nessa onda, da adesão emocional e, nalguns casos, irracional”, tal
como advertiu que “leituras erráticas”
da pandemia acabam por criar “problemas adicionais num contexto social emotivo”
Especificamente sobre Portugal, congratulou-se com o facto de o
país estar “a testar como nunca” e de o aumento de novas infeções não se
traduzir em subida de mortes e internamentos como há um ano. Também a pressão sobre o sistema
de saúde é “diferente” da verificada no ano passado. E deixou mais um recado
para pandemias futuras:
“Em democracia tem de se criar, do ponto de vista de resposta jurídica e
constitucional, um quadro que permita acomodar o que é inevitável, o que vai
ser inevitável.”.
Avisando que
quem quer que venha a ser Governo após estas eleições sabe que “este é um
desafio nacional, numa parte irreversível e noutra irrepetível”, frisou não
estar com otimismo excessivo e saber que “há certas angústias que não existem,
de valores e de princípios”. E vincou a existência de certas realidades
definidas na cabeça da maioria dos portugueses, “uma maioria de bom senso muito
ampla, muito vasta” que vive em democracia há mais de 40 anos e que não vai
mudar, pois “as modas podem mudar, mas o essencial fica”.
***
Face a este
arrazoado, devo salientar que foi o Presidente da República a trazer para o
discurso público como normal a questão dos miniciclos, quando, em 2019, dizia
que era preciso garantir a estabilidade governativa até 2021, pois, com as
eleições autárquicas se abriria outro ciclo político. Resta saber se previa ou
queria um miniciclo de 2019 a 2021 ou de 2021 a 2023. Porém, só no contexto da
pandemia é que parece ter abandonado a lógica dos miniciclos. Não obstante, na
iminência da não aprovação da proposta do Governo para o Orçamento de 2022,
avisou, acenando logo com a dissolução da Parlamento e marcação de eleições
legislativas, apesar da convicção então expressa de que estas pouco alterariam
a situação parlamentar atual.
Dá a
impressão de que as sondagens lhe permitem mudar o discurso, agora contra os
miniciclos, em certa medida recuperando a ideia da estabilidade governativa,
provavelmente através do apoio maioritário constante no Parlamento e talvez
abandonando a dinâmica dos pactos de regime que ultrapassem o âmbito da
legislatura, por exemplo, justiça, educação, saúde…
E qual a
causa da mudança de discurso? Será uma suposta transfiguração do Governo de
Costa, que terá recentemente descoberto a fórmula da eficácia governativa, com
equipa mais diminuta e mais coesa face ao dito colosso dos fundos comunitários?
Terá o principal partido da oposição feito algum retiro espiritual clandestino
a seguir às eleições internas diretas de que terá resultado a escolha de
deputados e governantes honestos, capazes e imunes ao erro e à perversão?
É óbvio que
os ciclos políticos devem ser de 4 anos: se há maioria parlamentar, com a sua
força e no respeito pelas minorias, com quem deve ter a abertura que leve à
aprendizagem e correção; se não há maioria, através da negociação com quem
possa encontrar solução aqui e agora ou em matérias essenciais à governação. Só
em circunstâncias muito excecionais é que a legislatura deveria ser
interrompida e devolvida a palavra ao eleitorado; e do Parlamento, após
eventual queda do Governo, havia de resultar nova solução governativa igual à
anterior ou diferente dela.
O caso da
pandemia é paradigmático do que não devia estar a acontecer. Já passámos por
umas eleições presidenciais em tempo de pandemia sem campanha eleitoral
decente, tendo valido que o incumbente era o candidato que tinha toda a
hipóteses de ganhar, como efetivamente sucedeu. Porém, os eleitores foram às
assembleias de voto de máscara no rosto e credo na boca. Não era possível
melhor. E para todos os erros do sistema tínhamos o Cabrita como bode
expiatório. Agora, que a pandemia está a recrudescer e as restrições estão a
retornar, pergunto-me que tipo de campanha eleitoral se vislumbra e quais as
circunstâncias existenciais em que a votação decorrerá ou se os eleitores se
refugiarão na abstenção.
E a culpa é
um pouco de todos os responsáveis: o Governo deveria ter previsto o “não” do
PCP e do BE na questão do orçamento (havia sinais claros) e fazer a aproximação possível às posições desses partidos
ou tentar negociar com o PSD; os partidos que viabilizaram seis orçamentos
deveriam ter percebido que talvez o Primeiro-Ministro até quisesse eleições,
lembrado do miniciclo badalado por Marcelo em 2019, pelo que deveriam ter
acautelado esta situação; e o principal partido da oposição, a menos que
estivesse convicto de que as eleições estavam ganhas, devia ter forçado a
negociação, mas preferiu confiar em Deus; e o Presidente não deveria ter
acenado com a dissolução do Parlamento, bastando-lhe deixar o Governo agir sob
o regime de duodécimos e dissolver o Parlamento depois de passar a nova vaga de
pandemia, para que tudo se encaminhava (não estiveram atentos aos especialistas neste tempo de
incerteza, confiando em demasia nas vacinas). Insistir em eleições no inverno sem espantar a pandemia é
mau conselho.
Quanto aos
partidos, em vez de andarem a prometer ou não a viabilização de um, dois ou
três orçamentos e exigirem dos adversários igual postura, penso que o melhor
será mostrar de forma clara ao eleitorado toas as suas propostas de governação
e as necessárias reformas estruturais e de superfície (também estas são importantes). Todavia, parece que temos de nos
resignar a que o PS prometa realizar o que ainda não conseguiu nestes seis anos
e que as propostas do PSD (creio
que as há), em vez da
devida publicitação e explicação fiquem a marinar no papel. Até parece que os
maiores partidos ou não têm agenda ou que a têm largamente esgotada. Pelo
menos, não percam tempo em banalidades e ataques de caráter; façam fundamentado
apelo ao voto; e o MAI expurgue dos cadernos eleitorais os eleitores fictícios
que ainda haja.
De resto, a
governabilidade em concreto discute-se face aos resultados eleitorais em
concreto, a não ser que haja partidos que pretendem concorrer coligados; e as
eleições devem perspetivar-se para o horizonte da legislatura, não para frações
da mesma. Depois, há projetos que não se esgotam numa legislatura, pelo que
prudentemente devem ter seguimento na seguinte, seja qual for o Governo que
resultar das eleições.
Não é lícito
querer um governo para 4 anos só com mira nos fundos comunitários. Onde é que
eu já vi isso? Creio que em meados de 1985…
Enfim,
requer-se mais sentido de Estado, menos partidarite e menos protagonismo
pessoal. Porém, vamos votar!
2021.12.24 – Louro de Carvalho
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