sábado, 25 de dezembro de 2021

Evitar os miniciclos políticos ou querer um governo para 4 anos

Está na ordem do dia o desiderato plasmado em epígrafe e quem o trouxe para a ribalta foi o Presidente da República.

É certo que foi o líder do PSD quem aventou a hipótese de, no caso de o PS ganhar as eleições legislativas de 30 de janeiro, o seu partido estar disponível para viabilizar dois Orçamentos do Estado, o que, por suposta coerência de Rio, postula que o PS diga se também oferece a mesma disponibilidade, caso o PSD ganhe as mesmas eleições.

Parte este arrazoado discursivo da hipótese mais provável de um destes partidos vencer as eleições sem maioria absoluta, pois, havendo maioria absoluta de um deles, o entendimento e até o simples diálogo serão pontuais ou cingir-se-ão ao cumprimento formal da exigência do convívio democrático e do direito das oposições (vd CRP, art.º 114.º).

Ora, a meu ver, os pequenos ciclos políticos como regra não são consentâneos com o espírito do legislador constituinte. Antes, a Constituição (CRP) prevê como desígnio normal em democracia a regularidade dos ciclos políticos. Com efeito, o n.º 1 do seu art.º 171.º estabelece que “a legislatura tem a duração de quatro sessões legislativas” e o n.º do art.º 174.º estabelece que “a sessão legislativa tem a duração de um ano e inicia-se a 15 de setembro”, estipulando o n.º 2 deste mesmo artigo que “o período normal de funcionamento da Assembleia da República decorre de 15 de setembro a 15 de Junho, sem prejuízo das suspensões que a Assembleia deliberar por maioria de dois terços dos deputados presentes”. E, se o Governo dimana do Parlamento, embora a competência para a nomeação do Primeiro-Ministro seja do Chefe de Estado, tendo em conta os resultados eleitorais e ouvidos os partidos com assento parlamentar (cf art.º 187.º/1), é normal que o Governo dure, embora com remodelações, uma legislatura.

Em contraponto, a Constituição liberta o sistema da simultaneidade de mandatos. Tanto assim é que o mandato do Presidente da República é de 5 anos (vd art.º 128.º/1), e não de 4. Por outro lado, a Constituição prevê situações de exceção à normalidade, como se discrimina a seguir.

Na verdade, o Presidente da República pode perder o cargo (vd art.º 129.º), pode ser substituído interinamente (vd art.º 132.º), pode renunciar ao mandato (vd art.º 131.º), mas, em caso de vagatura, “o Presidente da República a eleger inicia um novo mandato(vd art.º 128.º/2).          

Também a Assembleia da República “pode funcionar por deliberação do Plenário, prorrogando o período normal de funcionamento, por iniciativa da Comissão Permanente ou, na impossibilidade desta e em caso de grave emergência, por iniciativa de mais de metade dos deputados”; “pode ainda ser convocada extraordinariamente pelo Presidente da República para se ocupar de assuntos específicos” (vd art.º 174.º/3.4.); e pode ser dissolvida pelo Presidente da República, ouvido o Conselho de Estado e os partidos com assento parlamentar (vd art.º 133.º, al e). Porém, o art.º 172.º estabelece limitações temporais a este poder presidencial sob pena de inexistência jurídica do ato; e a dissolução “não prejudica a subsistência do mandato dos deputados, nem da competência da Comissão Permanente, até à primeira reunião da Assembleia após as subsequentes eleições”. Porém, a Assembleia da República eleita na sequência de dissolução da anterior não completa legislatura anterior, mas inaugura nova legislatura, “cuja duração será inicialmente acrescida do tempo necessário para se completar o período correspondente à sessão legislativa em curso à data da eleição(vd art.º 172.º/2). Já o Governo, de si mais precário na sobrevivência, embora sem o espectro da ameaça permanente, cai por morte ou a impossibilidade física duradoura do Primeiro-Ministro, aceitação do pedido de demissão do Primeiro-Ministro pelo Presidente da República, início de legislatura, aprovação de moção de rejeição do seu programa, não aprovação de moção de confiança por si solicitada, por aprovação de moção de censura e ato de demissão da parte do Presidente da República, neste caso, “só quando tal se torne necessário para assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas, ouvido o Conselho de Estado” (vd art.º 195.º).

Assim, o legislador constituinte parece, por um lado, advogar a regularidade do sistema, mas não em absoluto, e evitar, por outro, a simultaneidade de mandatos do Parlamento e do Chefe de Estado. Portanto, em situação normal, o mandato parlamentar é de 4 anos e o presidencial é de 5, devendo o horizonte governativo, a menos que circunstâncias excecionais recomendem outra forma de proceder, ser o horizonte da legislatura.

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Entretanto, não raro as oposições reclamam a demissão de secretários de Estado, de ministros e, mesmo, do Primeiro-Ministro, ousam rejeitar o programa do Governo, não aprovam moções de confiança, aprovam moções de censura e criam condições para o Presidente dissolver a Assembleia da República, aliás o que os Governos em funções também fazem às vezes. Assim, minimiza-se ou desvaloriza-se a regularidade dos ciclos políticos.

Neste contexto de minimização, o Presidente da República, na contagem decrescente para as eleições legislativas de janeiro, considera necessária a “previsibilidade política” e espera que “as eleições permitam um horizonte até 2026”, aduzindo que “nunca há boas ocasiões para uma não aprovação do Orçamento, muito menos nas circunstâncias que estávamos a viver”, e observando que devem ser evitados “miniciclos políticos”. E, vincando que “do ponto de vista económico e social, temos à nossa frente um período muito importante”, fala de desafio nacional e considera que “não vai ser possível continuar a enfrentar a pandemia e sobretudo pôr de pé a resposta económica e social, que é necessária, se não houver previsibilidade no sistema político”.

Em discurso ao 8.º Encontro Anual do Conselho da Diáspora Portuguesa, o Chefe de Estado identificou o problema de o sistema político não ter “capacidade para responder com previsibilidade a desafios de médio prazo, que são os 6,7,10 anos”. Porém, o atual momento, no dizer de Marcelo, “permite que as eleições de janeiro coincidam com um momento do ciclo pandémico e do ciclo económico e social em termos de gestão dos fundos que não seja um momento intercalar tardio”, tendo sido o acaso a colocar as eleições legislativas antecipadas num momento inicial e não intercalar de decisões fundamentais sobre os fundos comunitários. Assim, no seu modo de ver, “os portugueses têm agora a oportunidade, daqui até ao dia 30 de janeiro, de ponderar as escolhas, quer no que respeita ao pós-pandemia, quer no que respeita à gestão económica e social, tendo presente que o esforço que vai ser exigido é de fôlego e não pode ser um esforço traduzido em miniciclos políticos, porque isso seria perder a oportunidade quer na gestão do que resta da pandemia, quer sobretudo de reconstrução económica”. Na verdade, este sistema, segundo Marcelo, terá de ter a capacidade de “responder com previsibilidade no médio prazo, com uma capacidade institucional de médio prazo”.

O Presidente entende que “ninguém desejaria, nem deseja este tipo de desafios”, mas que “é um desafio que com serenidade permite a Portugal no final de janeiro fazer escolhas que outros países vão fazer mais tarde, em condições mais complexas”. E, em jeito de balanço da situação do mundo, da Europa e de Portugal, identificou três questões que determinarão o futuro do país: a leitura e gestão política da pandemia que “ainda pesa”, a reconstrução/recuperação económica e social e a capacidade de resposta do sistema político.

Marcelo abordou também os populismos, que se “num primeiro momento de clima pandémico” veem a sua influência reduzida, depois “começam a entrar pelas fissuras” que os “avanços e recuos” deixam abertas, “reinventam-se a cada momento”, adotando ora “uma expressão nacionalista”, ora “de recusa da diferença”. Não se pronunciou, no entanto, sobre a gestão específica da pandemia pelo Governo, mas advertiu que “estamos nessa onda, da adesão emocional e, nalguns casos, irracional”, tal como advertiu que “leituras erráticas” da pandemia acabam por criar “problemas adicionais num contexto social emotivo”

Especificamente sobre Portugal, congratulou-se com o facto de o país estar “a testar como nunca” e de o aumento de novas infeções não se traduzir em subida de mortes e internamentos como há um ano. Também a pressão sobre o sistema de saúde é “diferente” da verificada no ano passado. E deixou mais um recado para pandemias futuras:

Em democracia tem de se criar, do ponto de vista de resposta jurídica e constitucional, um quadro que permita acomodar o que é inevitável, o que vai ser inevitável.”.

Avisando que quem quer que venha a ser Governo após estas eleições sabe que “este é um desafio nacional, numa parte irreversível e noutra irrepetível”, frisou não estar com otimismo excessivo e saber que “há certas angústias que não existem, de valores e de princípios”. E vincou a existência de certas realidades definidas na cabeça da maioria dos portugueses, “uma maioria de bom senso muito ampla, muito vasta” que vive em democracia há mais de 40 anos e que não vai mudar, pois “as modas podem mudar, mas o essencial fica”.

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Face a este arrazoado, devo salientar que foi o Presidente da República a trazer para o discurso público como normal a questão dos miniciclos, quando, em 2019, dizia que era preciso garantir a estabilidade governativa até 2021, pois, com as eleições autárquicas se abriria outro ciclo político. Resta saber se previa ou queria um miniciclo de 2019 a 2021 ou de 2021 a 2023. Porém, só no contexto da pandemia é que parece ter abandonado a lógica dos miniciclos. Não obstante, na iminência da não aprovação da proposta do Governo para o Orçamento de 2022, avisou, acenando logo com a dissolução da Parlamento e marcação de eleições legislativas, apesar da convicção então expressa de que estas pouco alterariam a situação parlamentar atual.

Dá a impressão de que as sondagens lhe permitem mudar o discurso, agora contra os miniciclos, em certa medida recuperando a ideia da estabilidade governativa, provavelmente através do apoio maioritário constante no Parlamento e talvez abandonando a dinâmica dos pactos de regime que ultrapassem o âmbito da legislatura, por exemplo, justiça, educação, saúde…

E qual a causa da mudança de discurso? Será uma suposta transfiguração do Governo de Costa, que terá recentemente descoberto a fórmula da eficácia governativa, com equipa mais diminuta e mais coesa face ao dito colosso dos fundos comunitários? Terá o principal partido da oposição feito algum retiro espiritual clandestino a seguir às eleições internas diretas de que terá resultado a escolha de deputados e governantes honestos, capazes e imunes ao erro e à perversão?

É óbvio que os ciclos políticos devem ser de 4 anos: se há maioria parlamentar, com a sua força e no respeito pelas minorias, com quem deve ter a abertura que leve à aprendizagem e correção; se não há maioria, através da negociação com quem possa encontrar solução aqui e agora ou em matérias essenciais à governação. Só em circunstâncias muito excecionais é que a legislatura deveria ser interrompida e devolvida a palavra ao eleitorado; e do Parlamento, após eventual queda do Governo, havia de resultar nova solução governativa igual à anterior ou diferente dela.

O caso da pandemia é paradigmático do que não devia estar a acontecer. Já passámos por umas eleições presidenciais em tempo de pandemia sem campanha eleitoral decente, tendo valido que o incumbente era o candidato que tinha toda a hipóteses de ganhar, como efetivamente sucedeu. Porém, os eleitores foram às assembleias de voto de máscara no rosto e credo na boca. Não era possível melhor. E para todos os erros do sistema tínhamos o Cabrita como bode expiatório. Agora, que a pandemia está a recrudescer e as restrições estão a retornar, pergunto-me que tipo de campanha eleitoral se vislumbra e quais as circunstâncias existenciais em que a votação decorrerá ou se os eleitores se refugiarão na abstenção.

E a culpa é um pouco de todos os responsáveis: o Governo deveria ter previsto o “não” do PCP e do BE na questão do orçamento (havia sinais claros) e fazer a aproximação possível às posições desses partidos ou tentar negociar com o PSD; os partidos que viabilizaram seis orçamentos deveriam ter percebido que talvez o Primeiro-Ministro até quisesse eleições, lembrado do miniciclo badalado por Marcelo em 2019, pelo que deveriam ter acautelado esta situação; e o principal partido da oposição, a menos que estivesse convicto de que as eleições estavam ganhas, devia ter forçado a negociação, mas preferiu confiar em Deus; e o Presidente não deveria ter acenado com a dissolução do Parlamento, bastando-lhe deixar o Governo agir sob o regime de duodécimos e dissolver o Parlamento depois de passar a nova vaga de pandemia, para que tudo se encaminhava (não estiveram atentos aos especialistas neste tempo de incerteza, confiando em demasia nas vacinas). Insistir em eleições no inverno sem espantar a pandemia é mau conselho.

Quanto aos partidos, em vez de andarem a prometer ou não a viabilização de um, dois ou três orçamentos e exigirem dos adversários igual postura, penso que o melhor será mostrar de forma clara ao eleitorado toas as suas propostas de governação e as necessárias reformas estruturais e de superfície (também estas são importantes). Todavia, parece que temos de nos resignar a que o PS prometa realizar o que ainda não conseguiu nestes seis anos e que as propostas do PSD (creio que as há), em vez da devida publicitação e explicação fiquem a marinar no papel. Até parece que os maiores partidos ou não têm agenda ou que a têm largamente esgotada. Pelo menos, não percam tempo em banalidades e ataques de caráter; façam fundamentado apelo ao voto; e o MAI expurgue dos cadernos eleitorais os eleitores fictícios que ainda haja.

De resto, a governabilidade em concreto discute-se face aos resultados eleitorais em concreto, a não ser que haja partidos que pretendem concorrer coligados; e as eleições devem perspetivar-se para o horizonte da legislatura, não para frações da mesma. Depois, há projetos que não se esgotam numa legislatura, pelo que prudentemente devem ter seguimento na seguinte, seja qual for o Governo que resultar das eleições.

Não é lícito querer um governo para 4 anos só com mira nos fundos comunitários. Onde é que eu já vi isso? Creio que em meados de 1985…

Enfim, requer-se mais sentido de Estado, menos partidarite e menos protagonismo pessoal. Porém, vamos votar!

2021.12.24 – Louro de Carvalho

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