Criado, em
1996, por João Rendeiro, o BPP (Banco Privado Português), ao contrário das tradicionais instituições financeiras, estava
vocacionado para gerir grandes fortunas, pelo que atraiu vários investidores de
peso, até que a crise financeira 2008 lhe ditasse o fim. Porém, enquanto muitos
resgataram com alguma, ainda que pequena antecedência os seus dinheiros, alguns
não tiveram igual sorte. E, apesar da sua pequena dimensão e pouco peso no
setor, o BPP inevitavelmente teve largas repercussões mercê do potencial efeito
de contágio ao restante sistema, emergindo como um caso de má supervisão, pondo
em causa a ação do BdP (Banco
de Portugal) e a
justiça, pelas suspeitas de crimes financeiros.
O banco tinha
cerca de 3 mil clientes e o património que geria rondava os 3 milhões de euros.
Oferecia 3 áreas de negócio: investimentos com retorno absoluto (o dinheiro dos clientes era aplicado
na compra de obrigações a longo prazo colocada no mercado financeiro
internacional); investimentos
com retorno relativo (o banco
geria ativos que não lhe pertenciam e eram património autónomo dos clientes); e investimentos de risco em ‘private
equity’ (os clientes
podiam ser acionistas de sociedades anónimas criadas pelo BPP). Todo o dinheiro que a clientela
seleta lhe confiou foi aplicado até a último cêntimo.
O fim do BPP
aconteceu em abril de 2010, quando o BdP, liderado por Vítor Constâncio, lhe
retirou a autorização para o exercício da atividade bancária, justificando tal
decisão com a inviabilidade dos esforços de recapitalização e recuperação do
banco, tendo Rendeiro já batido com a porta. Em novembro 2008, o banco, a
braços com graves problemas financeiros, pediu ao Estado um auxílio de 750
milhões de euros, cuja recusa levou a sair da liderança, no fim desse mês. Nessa
altura, subsequente à gestão dita modelar e inspiradora de Rendeiro, a
contabilidade do BPP não era nada rigorosa. Por exemplo, não eram contabilizadas
as garantias dadas pelo banco. O revisor oficial de contas nada objetou, pelo
que um grupo de ex-acionistas e credores tem um processo a correr contra ele,
por negligência na certificação das contas.
A partir daí
e até abril de 2010 decorreu a intervenção do BdP no BPP com uma operação
liderada por 6 bancos (CGD,
BCP, BES, Santander Totta, BPI e Caixa Central de Crédito Agrícola Mútuo), no montante de 450 milhões de
euros, com garantia do Estado, justificada pelo Ministério das Finanças com a necessidade
de salvaguardar depósitos, mas não as aplicações da área de gestão de fortunas.
Assim, uma das principais preocupações das autoridades (BdP, Governo e CMVM) foram os clientes de retorno
absoluto, que através do BPP investiam dinheiro em sociedades. Estes clientes
foram indemnizados pelo Fundo de Garantia de Depósitos, no máximo de 100 mil
euros, e pelo Sistema de Indemnização aos Investidores (proteção gerida pela CMVM). Porém, os valores não cobriram a
totalidade do dinheiro investido, pelo que foi criado um ‘megafundo’ para gerir
os ativos financeiros e, consequentemente, se recuperarem os dinheiros.
Jaime Antunes, presidente da Associação Privado Clientes garantia que o fundo de investimento mobiliário seria liquidado em 2018 e permitiria que “a generalidade dos clientes recuperassem o capital”. Ora, quem perdeu parte do capital foi quem tinha aplicações mais elevadas (acima de 2 ou 3 milhões de euros), sendo então O BPP é o único na UE em que depositantes perderam dinheiro. Já os acionistas perderam todo o capital investido.
Os ativos
líquidos do banco quando entrou em liquidação rondavam os 700 milhões de euros,
ou seja, montante insuficiente em 900 milhões para fazer face às
responsabilidades assumidas. Mais de uma década depois, o processo de
liquidação não foi dado por terminado e a comissão liquidatária vem sendo alvo
de muitas críticas por parte da Associação Privado Clientes, que representa os lesados.
Feitas as contas, já foi pago o total de 405 milhões de euros ao Estado, mas os
pagamentos aos credores comuns ainda não começaram. Ainda no dia 14 de dezembro,
a Associação Privado Clientes consultou o processo da Comissão Liquidatária junto
do Tribunal do Comércio e apontou que, no último relatório de 2020, “consta
como ‘custo com pessoal’ dois milhões de euros”, a que se adiciona a rubrica
‘outros gastos administrativos’, onde está inscrito o valor de 2,1 milhões de
euros, mas sem se especificar a que se referem esses custos.
O facto é que
somada ao ‘custo com pessoal’ a despesa administrativa é, no mínimo, 4,1
milhões de euros anuais, valor que representa um verdadeiro escândalo se
levarmos em conta que os credores esperam há mais de 11 anos por serem
compensados. E os lesados dizem que o processo não indica quem são os 28
trabalhadores nem o valor de remuneração de cada um deles, acrescentando que,
se for feita “uma conta rápida”, então, “em média, cada um desses 28
colaboradores custa mais de 70 mil euros anuais, pagos com o dinheiro dos
credores”.
Quanto a
valores fixos mensais, o processo apenas refere as remunerações mensais propostas
pelo BdP e que o tribunal aceitou e fixou para 2021: o presidente, Manuel
Paulo, ganha 4650 euros por mês e os vogais José Pedro Simões e José Vítor
Almeida ganham cada um 3500 euros mensais. E sabe-se que, em 2020, a Comissão
Liquidatária teve um prejuízo de 4,2 milhões.
***
A Comissão Liquidatária o BPP, constituída
por administradores liquidatários, designados pelo BdP – são todos quadros do supervisor/regulador (Luís Manuel Máximo dos Santos, que
presidia, António da Silva Ferreira e Manuel Mendes Paulo) – em maio de 2010, entrou logo em funções
para iniciar o processo de liquidação ainda decorre, mas agora sob a liderança de Manuel Mendes
Paulo.
O
então administrador do BPP, Adão da Fonseca e a sua equipa (nomeada pelo BdP em dezembro de 2008
quando o banco foi intervencionado) apenas ficaram o tempo necessário para passar os dossiês do
BPP aos administradores de insolvência. Com efeito, já antes da retirada da
licença ao BPP, Adão da Fonseca fez saber que, se fosse declarada a falência do
banco, toda a sua equipa sairia.
***
A 23 de novembro pp, a Associação Privado Clientes, que representa os
clientes lesados pelo BPP considerava, após a consulta do processo no Tribunal
de Comércio, que a comissão de liquidação do banco não cumpre a ordem imposta
pelo tribunal de indicar quanto cada credor tem a receber. Isto, depois de ter,
em setembro passado, promovido uma manifestação frente à sede da Comissão
Liquidatária do BPP, em Lisboa, contra o arrastar do processo de liquidação há
11 anos, acusando a comissão de não prestar a informação a que está obrigada e
a exigir pagamentos aos credores, ainda que parciais.
Uns dias após
a manifestação, em anúncio no “Expresso”,
a Comissão Liquidatária prestava esclarecimentos sobre o processo, dizendo ter
cumprido sempre, escrupulosamente, as funções que lhe são legalmente cometidas,
ter feito 40 relatórios trimestrais sobre o estado da liquidação (de que a grande maioria se encontrava
junta ao processo de liquidação, aguardando outros o visto da Comissão de
Credores para serem igualmente juntos) e não poder fazer pagamentos parciais aos credores comuns
enquanto não pagar toda a dívida ao Estado.
Após esta informação, a predita associação pediu a consulta
do processo no Tribunal do Comércio e referiu, em documentação enviada à Lusa, que “não se verificam os tais ‘40
relatórios trimestrais’ no processo principal” e que só em setembro, 5 dias de
pois da publicação do comunicado no “Expresso”
foram “assinados e juntos” ao processo mais 8 relatórios. E frisou que, “antes que
a Comissão Liquidatária tente justificar a sua inércia – ou a falta de
transparência –, afirmando que os tais relatórios foram apresentados em outro
processo (apenso)”, o tribunal determinou em maio que “tais
informações sejam prestadas no processo principal”.
A associação observa
que, da consulta do processo, “fica por responder onde está o mapa de rateio”, exigido
pelo tribunal e que tem a distribuição dos montantes a receber pelos credores.
No predito anúncio do “Expresso”,
a Comissão Liquidatária dizia haver 6.000 credores que têm a receber quase 1,600
milhões, dos quais 450 milhões são créditos garantidos (do Estado), 950 milhões de créditos comuns e
200 milhões de créditos subordinados. Em contraponto, como ficou dito, os
ativos líquidos, aquando da liquidação do banco, valiam 700 milhões de euros,
pelo que o BPP tinha uma situação líquida negativa de 900 milhões de euros, “o
que resulta, desde logo, na impossibilidade de satisfação integral de todos os
créditos comuns reconhecidos”, como avisou a Comissão Liquidatária.
Sobre
pagamentos, a Comissão Liquidatária disse que, dos 450 milhões de euros
devidos, pagou ao Estado 305 milhões de euros diretamente, a que se somam 100
milhões de euros resultantes da afetação de outros ativos do BPP e de terceiros,
bem como ao Fundo de Garantia de Depósitos e ao Sistema de Indemnização aos
Investidores. E, quanto a outros pagamentos, frisou que “não se encontram
reunidos os requisitos legais para a execução dos rateios parciais”, pois enquanto
o “principal credor garantido [o Estado] não for
integralmente pago, não pode dar início ao pagamento a credores comuns”, o que estará
sempre sujeito a autorização do tribunal.
Por sua vez,
a Associação Privado Clientes sustenta que a Comissão Liquidatária, com tal
atuação, não está a cumprir a ordem do tribunal pois, em dezembro de 2020, o
mesmo, segundo o processo, ordenou o mapa do rateio parcial das quantias
depositadas e a sua publicação. E defende que, em março de 2021, a Comissão
Liquidatária “ousou divergir do Tribunal”, ao dizer que não estavam reunidos os
pressupostos para proceder à elaboração de mapa de rateio, aduzindo que
pagamentos a credores comuns só poderão vir depois de pago o Estado na
totalidade, o que ainda demorará. Contudo, diz a Privado Clientes que o
tribunal não aceitou esta justificação em despacho de maio.
Já em 6 de
outubro, segundo a associação, a Comissão Liquidatária em resposta ao tribunal
recusou novamente essa obrigação, alegando que o despacho do tribunal não
determinava essa obrigação e pedindo ao tribunal que peça ao Estado a indicação
dos valores recebidos para apuramento da dívida ainda remanescente. Assim, esta
atuação da Comissão Liquidatária “serve apenas para que o BPP em liquidação
continue a se desenvencilhar da obrigação que há muito lhe foi imposta pelo
Tribunal: apresentar o mapa de rateio das quantias à sua disposição”. E verifica-se,
da consulta ao processo principal, que a Comissão Liquidatária continua a
descumprir as suas obrigações e os despachos do Tribunal, parecendo querer perpetuar-se
no cargo às custas dos credores, que permanecem à espera de informações”.
Ainda da
consulta do processo, diz a associação que continua sem perceber em que “foram
gastos cerca de 45 milhões de euros” pela Comissão Liquidatária em custos de
gestão. E refere que, ao ler o processo, ficou a saber que, em 2016, a Comissão
liquidatária pediu autorização para fazer aumentos salariais, mas que, para
sorte dos credores, o BdP refutou os argumentos da Comissão e negou a
necessidade de qualquer aumento na remuneração. A associação cita a resposta do
BdP, segundo a qual a remuneração fora revista em 2011, que o nível de trabalho
efetivo é menor que no início do processo de liquidação e que “a finalidade de
qualquer processo de liquidação é o pagamento aos credores das instituições em
liquidação, pelo que a alteração das regras de remuneração da comissão
liquidatária sempre prejudicaria (ainda que de forma diminuta) os direitos daqueles”.
Apesar da
intervenção estatal (450
milhões de euros de garantia), o BPP não deverá significar custos para o erário público, pois o Estado
tem o estatuto de credor privilegiado. Porém, continuam outros credores à
espera de ser ressarcidos. Entre esses estão os clientes de ‘retorno absoluto’,
que através do BPP investiam dinheiro em sociedades, prometendo o banco capital
garantido e remuneração (como
se fossem depósitos).
Tais clientes recuperaram partes dos investimentos após terem criado um ‘megafundo’
para gerir os seus ativos financeiros e cuja liquidação permitiu devolver-lhes
parte do dinheiro. Contudo, dos 3.000 clientes de retorno absoluto, cerca de
300 ainda não receberam todo o valor investido, esperando a sua parte da massa
falida. E há outros credores com dinheiro a haver, caso de depositantes acima
100 mil euros, bem como clientes que investiram em fundos de investimento e ‘hedge
funds’.
***
Segundo a
edição do “Tal & Qual” desta
semana, o presidente da Comissão Liquidatária do BPP e os 2 vogais, mais 2
quadros do BdP, dois advogados e pessoal administrativo podiam ir, pelo menos assinar
o ponto, mas ficam em casa e o vencimento cai-lhes a tempo e horas em cada mês
na conta pessoal. Aliás remetem-se a discrição quase inédita, sem telefone
privativo, telefax, e-mail, com exceção do velho telefone do BPP, que é
atendido por um segurança, que de nada pode saber, a não ser que por ali passam,
de vez em quando, apenas elementos do secretariado. O suposto trabalho dos três
comissários custa 154 mil euros por ano só em salários, indo ao fim de quase 11
anos já em 1,7 milhões. Porém, da lista de pagamentos, que inclui gabinetes de
advogados contratados avulso, constam 28 beneficiários, perfazendo um total de
4 milhões de euros por ano, tendo sido já gastos 40 milhões só em salários e honorários.
E é tudo dinheiro saído da massa falida e que pertence aos credores, que ainda
reclamam o dinheiro que entregaram confiadamente ao seu banco – tarefa sem fim
à vista.
Diariamente antigos
clientes batem, em vão, à porta a ver se há informação sobre o dinheiro a haver.
A Comissão Liquidatária não presta contas a ninguém, nem sequer ao Tribunal do
Comércio, que a intimou a enviar relatórios em falta. Passivos estão, perante o
que está a acontecer os órgãos de fiscalização: o BdP e a comissão de credores,
coordenada pela Diretora-Geral do Tesouro, em representação do Estado, que têm
o dever de fiscalizar o trabalho dos liquidatários. Há, de facto, um bolo de 700
milhões (estando em dívida
1,6 milhões) a
distribuir em fatias desiguais, o que tarda a suceder, temendo-se que boa parte
desapareça, visto que a Comissão Liquidatária já perdeu pelo menos 3 milhões em
aplicações financeiras, como pode vir alguém a receber duas ou mais vezes. Tal é
a desordem da lista dos credores. Por exemplo, os clientes de retorno absoluto
já receberam o dinheiro, mas ainda constam da lista.
E ainda vêm
comentadores da nossa praça elogiar a Comissão Liquidatária do primeiro banco
privado do país (como
tema alegadamente ofuscado pela detenção de Rendeiro em Durban), que apenas ressarciu o totalmente o
Estado dos 450 milhões que este abonara aos sucessores de Rendeiro, quando
muitos dos outros têm ficado a ver navios. Entretanto, nababos governam-se!
2021.12.22 – Louro de Carvalho
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