quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Nova tradução da Carta aos Gálatas divulgada online

 

A Comissão da Tradução da Bíblia da CEP (Conferência Episcopal Portuguesa) divulgou, neste dia 1 de dezembro, o texto provisório da Carta de São Paulo aos Gálatas, para recolher contributos dos leitores, fiel ao propósito da CEP de desfiar os leitores a contribuir para melhorar o texto.

O texto é precedido duma introdução, em que se apresenta o conteúdo do livro, integrado no “conjunto das chamadas grandes epístolas”: aos Romanos, 1.ª e 2.ª aos Coríntios e Gálatas. Por outro lado, proporciona-nos “importantes dados biográficos e o eixo do pensamento teológico de Paulo. Teve grande importância na polémica de Santo Agostinho com Pelágio (séculos IV-V) sobre “o livre arbítrio e a necessidade da graça divina para a salvação, bem como no debate com os cristãos da Reforma”. Além duma descrição do conteúdo e estrutura, a introdução aborda a datação da epístola (por volta do ano 56), os destinatários, as comunidades da zona meridional da província romana da Ásia Menor (centro da atual Turquia).

A Epístola apresenta temas e desenvolvimento semelhantes aos da Epístola aos Romanos, tendo sido provavelmente escrita alguns meses antes desta, durante a estadia de Paulo em Éfeso (At 19,8.10) ou pouco depois. Dirigindo-se às Igrejas da Galácia (1,2; cf. 3,1), o apóstolo parece referir-se às comunidades da zona meridional da Ásia Menor, evangelizadas por si e Barnabé na primeira viagem missionária (At 13,13-14,25).

O apóstolo mostra-se desagradado com a conduta dos gálatas que, tendo acolhido o evangelho por ele pregado, se deixaram perturbar pela doutrina dos judaizantes, ou seja, cristãos de origem judaica que, remetendo-se aos costumes da Igreja de Jerusalém, defendiam a necessidade da circuncisão dos cristãos vindos do paganismo e a obrigatoriedade de estes observarem a Lei e os costumes judaicos, pois só assim, segundo eles, poderiam participar da linhagem de Abraão e alcançar a vida. Paulo insurge-se contra estas ideias, que pervertem o evangelho (Gl 2,6.14), reapresentando o coração do seu anúncio: a salvação não acontece pelo cumprimento da Lei (por mérito pessoal), mas pela obra de Cristo na cruz (Gl 1,4; 6,12), através da qual Deus concedeu a todos os homens o acesso à bênção dada a Abraão (Gl 3,10-14). Assim, pela fé no Filho de Deus, o crente torna-se filho adotivo, passando da escravidão da Lei à liberdade da vida nova no Espírito (Gl 4,5-7; 6,15), o que Paulo chama de justificação.

A Epístola tem a seguinte estrutura: Exórdio: saudação e reprimenda (1,1-10); I. A origem divina do evangelho pregado por Paulo (1,11-2,21); II. A Escritura prepara a vida no Espírito (3,1-4,7); III. A vida no Espírito: da escravidão à liberdade (4,8-5,12); IV. A vida no Espírito: o amor, guia da liberdade (5,13-6,10); e Conclusão (6,11-18).

No âmbito da origem divina do evangelho pregado por Paulo, o texto evoca a revelação a Paulo, o reconhecimento em Jerusalém, o confronto com Pedro em Antioquia e as ideias nucleares do Evangelho pregado por Paulo.

No quadro da preparação da vida no Espírito por parte da Escritura, afirma-se: o Espírito veio pela fé; os filhos de Abraão nasceram da fé; a Lei não revoga a promessa a Abraão; a Lei foi válida até Cristo chegar; e os descendentes de Abraão são filhos de Deus em Cristo.

A vida no Espírito tem um duplo balizamento: da escravidão à liberdade; e o amor como guia da liberdade. No atinente ao primeiro, sobressaem: o perigo de regresso à escravidão; a exigência do regresso à fidelidade; a diferença entre as duas alianças, representadas em Agar e Sara; e a invalidação da obra de Cristo pela circuncisão. Já o segundo define a verdadeira liberdade, a que formos chamados; identifica as obras da carne, que nos impedem de herdar o reino de Deus; enuncia os frutos do Espírito, que nos levam a viver e a caminhar no Espírito; e releva a exigência do amor fraterno.

Na Conclusão, Paulo afirma que escreveu pela própria mão; denuncia os que querem fazer boa figura na carne e obrigam os outros à circuncisão, “só para não serem perseguidos por causa da cruz de Cristo”; adverte que “nem os próprios circuncidados observam a Lei, mas querem que vos circuncideis para que se possam gloriar na vossa carne”; assegura que não se gloria, a não ser na cruz do nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual o mundo está crucificado para si e ele para o mundo; garante que nem a circuncisão é coisa alguma, nem a incircuncisão, mas a nova criação; e revela que arca em seu corpo com as marcas de Jesus.

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O Papa Francisco encerrou, a 10 de novembro, um ciclo de 15 reflexões dedicadas à Epístola aos Gálatas, esconjurando o cansaço, afirmando que o Cristianismo deve ser “livre” e inspirado pelo Espírito, inferindo que “a palavra de Deus é uma fonte inesgotável” e referenciando Paulo evangelizador, teólogo e pastor. E, no termo daquele exigente mas fascinante percurso, recordou as palavras escritas por Santo Inácio de Antioquia, Bispo:

Um só é o mestre que disse e foi feito; mas também é digno do Pai o que Ele fez em silêncio. O que possui a palavra de Jesus é capaz de perceber também o seu silêncio” (Ad Ephesios 15, 1-2).  

Considerou que, “de Paulo, podemos afirmar que foi capaz de dar voz a este silêncio”. O seu encontro com Cristo Ressuscitado no caminho de Damasco conquistou-o e transformou a sua vida, que havia de gastar ao serviço do Evangelho. As suas intuições mais originais ajudam-nos a descobrir a novidade que se encerra na revelação de Jesus Cristo; os seus ensinamentos geram entusiasmo, impelindo-nos a embocar decididamente na rota da liberdade, a caminhar segundo o Espírito Santo. Não obstante, “embatemos nas nossas próprias limitações, que nos impedem de ser dóceis às inspirações divinas, e sobrevém o cansaço que gela o nosso entusiasmo”.

Entretanto, Paulo exorta a que “não nos cansemos de fazer o bem”. Para tal, devemos fazer como os discípulos de Jesus, quando na barca se viram perdidos na tempestade, acordando “o Senhor que parece dormir no nosso coração em sobressalto”, para que Ele “nos fale, porque vê para lá da tempestade”. Com efeito, “através daquele seu olhar sereno, podemos ver algo que, sozinhos, não conseguíamos sequer vislumbrar: o Espírito Santo vem sempre em ajuda da nossa fraqueza, dando-nos o apoio de que precisamos”.

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A nova versão está disponível na página da internet da Conferência Episcopal Portuguesa, podendo os comentários ser enviados para o endereço eletrónico biblia.cep@gmail.com.

Em março de 2019, a CEP apresentou o 1.º volume da nova tradução da Bíblia em português por 34 investigadores a partir das línguas originais, com a publicação da edição de ‘Os Quatro Evangelhos e os Salmos’. E, desde agosto de 2021, vem sendo disponibilizado mensalmente em formato digital, também através dos canais da Ecclesia, um novo livro da Bíblia.

Assim, o volume disponibilizado on-line em agosto foi a 1.ª Epístola de Paulo aos Coríntios, cujo capítulo 13 encerra um belo hino ao Amor. Então, o Padre Mário de Sousa, coordenador da Comissão de Tradução da Bíblia para a CEP, sucedendo no cargo ao falecido Bispo de Viana do Castelo, Dom Anacleto Oliveira, explicava que estavam a ser revistos 35 livros, “prontos para serem apresentados” e “compreendidos” da melhor forma possível pelo público.

Na introdução, explicita-se que provavelmente esta não é a 1.ª epístola de Paulo aos cristãos de Corinto, apesar do título. O autor dá a entender que, antes desta, lhes enviara outra: “Escrevi-vos na carta que não vos misturásseis com promíscuos(1Cor 5,9). A epístola, tendo-se perdido, poderá ter sido integrada nas atuais 1Cor ou 2Cor. A breve referência mostra que já antes ocorreram situações na comunidade que obrigaram o apóstolo a intervir. Quer a 1Cor, quer todas as cartas do NT são escritos de circunstância a responder a questões comunitárias, o que deve ser tido em conta para uma correta interpretação.

Em setembro, a CEP divulgava online a nova edição do Livro de Isaías, do Antigo Testamento; e, em outubro, a 2.ª Epístola de Paulo aos Coríntios.

Isaías é o primeiro dos profetas maiores (Is, Jr, Ez, Dn). O seu livro, o mais extenso e mais citado no NT (sobretudo nos Evangelhos), influenciou a interpretação da mensagem cristã. Lendo o cântico do Servo de Javé (52,13-53,12) Filipe anunciou Jesus ao eunuco da rainha de Candace (At 8,26-40).

Em Isaías transparece a história do povo de Deus com as infidelidades e ameaças de castigo e com expressões de esperança e salvação. Muitos textos denunciam o estado em que Israel e Judá se encontravam na 2.ª metade do século VIII a.C.. Os anúncios de julgamento contra Jerusalém, Israel e Judá e contra outros povos ocupam boa parte do livro. Dos anúncios de castigo e promessas de salvação, o que prevalece são as promessas.

Há em Isaías grande diferenças de contexto histórico, literário e teológico. Tradicionalmente atribuía-se o livro só ao profeta do século VIII a.C.. de facto, os cc. 1-39 enquadram-se bem na história e na geografia daquele período, mas, nos cc. 40-55e 55-66, o cenário geográfico e histórico é já bastante diferente. Deste modo reconhecem-se em Isaías três partes (1-39; 40-55: 56-66), diferentes no estilo e no pensamento. Nos cc. 1-39 há um estilo solene, com formas breves e concisas. O estilo dos cc. 40-55 é mais retórico e entusiasta, com repetições, enumerações e uso frequente de sinónimos. Os cc. 56-66 estão na continuidade dos anteriores, mas sem o seu nível poético. A nível do pensamento, a ideia de Deus criador e redentor, tão presente em 40-55, não tem paralelo na 1.ª parte; a imagem do salvador nos textos da 1.ª parte não é igual à do Servo do Senhor na 2.ª. E, entre 40-55 e 56-66, também há diferenças significativas. Assim, veem-se no livro 3 partes, de diferentes épocas históricas, autores, estilo e preocupações teológicas: 1-39, Protoisaías; 40-55, Deuteroisaías; e 56-66, Tritoisaías – divisão que não põe em causa a unidade do livro nem a existência de muitos elementos de contacto que fizeram do livro um todo.

Porém, o texto encontrado em Qumran sugere a divisão em duas partes: 1-33 e 34-66; e outros dividiriam as duas partes em 1-39 e 40-66.

No entendimento de vários autores, a 2Cor é compilação de diversas cartas. Se, por exemplo, nos caps. 8-9, Paulo fala com amabilidade e simpatia da coleta para Jerusalém, nos caps. 10-13 apresenta tom duro e irónico, que deixa perceber um clima de tensão com a comunidade. Assim, a 2Cor corresponderia a 3 cartas diferentes, escritas no contexto da polémica iniciada com a chegada a Corinto de cristãos que se consideravam apóstolos (11,5.13; 12,11), mas que tinham uma visão do evangelho de Cristo (11,4) e do apostolado (10,12) diferente da de Paulo, a quem negavam a legitimidade apostólica.

Paulo escreve, então, à comunidade uma 1.ª carta (que constituiria o grosso da 2Cor tal como a temos hoje) a defender-se das acusações que esses forasteiros faziam em relação ao seu apostolado e pregação. Percebe-se, no entanto, pelo tom afetuoso (6,11-13; 7,2-4), que mantém boas relações com a comunidade e espera que esta não se deixe influenciar pelas acusações que lhe fazem. Todavia, a carta não surtiu o efeito desejado, o que levou Paulo a viajar até Corinto.

A visita acabou num conflito tão grave que o apóstolo foi ofendido por um dos membros da comunidade (2,5; 7,12). Regressado a Éfeso, Paulo, em tom polémico e duro, escreve uma 2.ª carta, que corresponderia aos caps. 10-13 (a Carta das Lágrimas), em que manifesta o seu desgosto por a comunidade ter acreditado nas afirmações dos forasteiros e apela à ordem (13,9.11), sob ameaça de intervir duramente na sua próxima visita (10,2ss; 13,2ss).

O portador da carta é Tito, que traz, no regresso, a boa notícia da reconciliação da comunidade com Paulo; e este, feliz, escreve uma 3.ª carta, que corresponderia a 1,1-2,13 e 7,5-16.

Já em novembro, a CEP divulgou o livro do Êxodo. O texto é acompanhado duma introdução, que apresenta o conteúdo do livro, cujos primeiros 15 capítulos relatam “a saída dos filhos de Israel do Egito”. E refere a Comissão da CEP:

O título de Êxodo ganhou uma definição ainda mais pertinente com a importância que o tema e a hermenêutica foram acumulando ao longo da Bíblia e da história. Aplicando-se especificamente às memórias e à leitura da história e da teologia segundo a experiência dos israelitas, os temas do Êxodo não deixam de ser significativos também para outros povos, para os quais a libertação da opressão foi igualmente significativa.”.

Além do conteúdo, a introdução aborda a história literária e autoria do segundo livro bíblico, “um entrançado sobretudo de peças narrativas e conjuntos de mandamentos”, bem como o “sentido teológico” do livro, a partir do “tema da libertação da escravatura”.

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Enfim, é de aplaudir o gesto humilde da Comissão da Tradução da Bíblia da CEP em solicitar ao público interessado o contributo para a melhoria da redação, de modo que os textos na versão em português correspondam ao sentido original e se adeqúem à linguagem que as pessoas melhor compreendam e assimilem. Obviamente o apelo é lançado aos entendidos em hebraico, grego e latim. Porém, o cidadão comum, sobretudo se for crente, mesmo que não saiba dessas línguas poderá contribuir, com o conhecimento que tem da capacidade de compreensão e assimilação por parte do povo, para o encontro do melhor vocabulário e fraseado. 

É óbvio que, do meu ponto de vista, não se ganha com o pretenso refontismo expresso, por exemplo, na substituição da expressão “em verdade, em verdade vos digo”, por “ámen, ámen vos digo (vg: Jo 1,51) e na substituição de “não há homem e mulher” por “não há macho e fêmea” (Gl 3,28), ou com o preciosismo contemporâneo da substituição de “Verbo” por “Palavra” referente ao Filho de Deus, a Cristo (vd Jo 1,1.14). Não são de abandonar expressões consagradas pelo uso e recorrentemente proferidas pelas pessoas de várias proveniências sociais. E talvez fosse ocasião para introduzir na Liturgia as orações bíblicas e outras com o tratamento por “tu” a Deus, à Virgem Maria, aos anjos e santos, bem como ao celebrante e demais ministros. Não se justifica a perpetuação do tratamento por “vós”.

Em todo o caso, é meritório o esforço de ajustamento a que a CEP está a proceder.

2021.12.01 – Louro de Carvalho

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