A Comissão da Tradução da Bíblia da CEP (Conferência Episcopal Portuguesa) divulgou, neste dia 1 de dezembro, o texto provisório
da Carta de São Paulo aos Gálatas, para recolher contributos dos leitores, fiel
ao propósito da CEP de desfiar os leitores a contribuir
para melhorar o texto.
O texto é precedido duma introdução, em que se apresenta o conteúdo do
livro, integrado no “conjunto das chamadas grandes epístolas”: aos Romanos, 1.ª
e 2.ª aos Coríntios e Gálatas. Por outro lado, proporciona-nos “importantes
dados biográficos e o eixo do pensamento teológico de Paulo. Teve grande
importância na polémica de Santo Agostinho com Pelágio (séculos
IV-V) sobre “o livre arbítrio e a
necessidade da graça divina para a salvação, bem como no debate com os cristãos
da Reforma”. Além duma descrição do conteúdo e estrutura, a introdução aborda a
datação da epístola (por volta do ano 56), os destinatários, as comunidades da zona meridional da província romana
da Ásia Menor (centro da atual Turquia).
A Epístola apresenta temas e desenvolvimento
semelhantes aos da Epístola aos Romanos, tendo sido provavelmente escrita
alguns meses antes desta, durante a estadia de Paulo em Éfeso (At
19,8.10) ou pouco
depois. Dirigindo-se às Igrejas da Galácia (1,2; cf. 3,1), o apóstolo parece referir-se às
comunidades da zona meridional da Ásia Menor, evangelizadas por si e Barnabé na
primeira viagem missionária (At 13,13-14,25).
O apóstolo mostra-se desagradado com a conduta dos
gálatas que, tendo acolhido o evangelho por ele pregado, se deixaram perturbar
pela doutrina dos judaizantes, ou seja, cristãos de origem judaica que,
remetendo-se aos costumes da Igreja de Jerusalém, defendiam a necessidade da
circuncisão dos cristãos vindos do paganismo e a obrigatoriedade de estes
observarem a Lei e os costumes judaicos, pois só assim, segundo eles, poderiam
participar da linhagem de Abraão e alcançar a vida. Paulo insurge-se contra
estas ideias, que pervertem o evangelho (Gl 2,6.14), reapresentando o coração do seu
anúncio: a salvação não acontece pelo cumprimento da Lei (por
mérito pessoal), mas
pela obra de Cristo na cruz (Gl 1,4; 6,12), através da qual Deus concedeu a
todos os homens o acesso à bênção dada a Abraão (Gl 3,10-14). Assim, pela fé no Filho de
Deus, o crente torna-se filho adotivo, passando da escravidão da Lei à
liberdade da vida nova no Espírito (Gl 4,5-7; 6,15), o que Paulo chama de
justificação.
A Epístola tem a seguinte estrutura: Exórdio:
saudação e reprimenda (1,1-10); I. A origem divina do evangelho pregado por Paulo (1,11-2,21); II. A Escritura prepara a vida
no Espírito (3,1-4,7);
III. A vida no Espírito: da escravidão à liberdade (4,8-5,12); IV. A vida no Espírito: o amor,
guia da liberdade (5,13-6,10); e Conclusão (6,11-18).
No âmbito da origem divina
do evangelho pregado por Paulo, o texto
evoca a revelação a Paulo, o reconhecimento em Jerusalém, o confronto com Pedro
em Antioquia e as ideias nucleares do Evangelho pregado por Paulo.
No quadro da preparação da vida no Espírito por parte da Escritura, afirma-se:
o Espírito veio pela
fé; os filhos de Abraão nasceram da fé; a
Lei não revoga a promessa a Abraão; a Lei foi válida até Cristo chegar; e os descendentes
de Abraão são filhos de Deus em Cristo.
A vida no Espírito tem um duplo balizamento: da
escravidão à liberdade; e o amor como guia da liberdade. No atinente ao
primeiro, sobressaem: o perigo de regresso à escravidão; a exigência do
regresso à fidelidade; a diferença entre as duas alianças, representadas em
Agar e Sara; e a invalidação da
obra de Cristo pela circuncisão. Já
o segundo define a verdadeira liberdade, a que formos chamados; identifica as
obras da carne, que nos impedem de herdar o reino de Deus; enuncia os frutos do
Espírito, que nos levam a viver e a caminhar no Espírito; e releva a exigência
do amor fraterno.
Na Conclusão, Paulo afirma que escreveu pela própria
mão; denuncia os que querem fazer boa figura na carne e obrigam os outros à
circuncisão, “só para não serem perseguidos por causa da cruz de Cristo”;
adverte que “nem os próprios circuncidados observam a Lei, mas querem que vos
circuncideis para que se possam gloriar na vossa carne”; assegura que não se
gloria, a não ser na cruz do nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual o mundo está
crucificado para si e ele para o mundo; garante que nem a circuncisão é coisa
alguma, nem a incircuncisão, mas a nova criação; e revela que arca em seu corpo
com as marcas de Jesus.
***
O Papa Francisco encerrou, a 10 de novembro, um ciclo de 15 reflexões
dedicadas à Epístola aos Gálatas, esconjurando o cansaço, afirmando que o
Cristianismo deve ser “livre” e inspirado pelo Espírito, inferindo que “a palavra de Deus
é uma fonte inesgotável” e
referenciando Paulo evangelizador, teólogo e pastor. E, no termo daquele exigente
mas fascinante percurso, recordou as palavras escritas por Santo Inácio de
Antioquia, Bispo:
“Um só é o mestre que disse
e foi feito; mas também é digno do Pai o que Ele fez em silêncio. O que
possui a palavra de Jesus é capaz de perceber também o seu silêncio” (Ad
Ephesios 15, 1-2).
Considerou que, “de Paulo, podemos
afirmar que foi capaz de dar voz a este silêncio”. O seu encontro com Cristo
Ressuscitado no caminho de Damasco conquistou-o e transformou a sua vida, que
havia de gastar ao serviço do Evangelho. As suas intuições mais originais
ajudam-nos a descobrir a novidade que se encerra na revelação de Jesus Cristo;
os seus ensinamentos geram entusiasmo, impelindo-nos a embocar decididamente na
rota da liberdade, a caminhar segundo o Espírito Santo. Não obstante, “embatemos
nas nossas próprias limitações, que nos impedem de ser dóceis às inspirações
divinas, e sobrevém o cansaço que gela o nosso entusiasmo”.
Entretanto, Paulo exorta a que “não
nos cansemos de fazer o bem”. Para tal, devemos fazer como os discípulos de
Jesus, quando na barca se viram perdidos na tempestade, acordando “o Senhor que
parece dormir no nosso coração em sobressalto”, para que Ele “nos fale, porque
vê para lá da tempestade”. Com efeito, “através daquele seu olhar sereno, podemos
ver algo que, sozinhos, não conseguíamos sequer vislumbrar: o Espírito Santo
vem sempre em ajuda da nossa fraqueza, dando-nos o apoio de que precisamos”.
***
A nova versão está disponível na página da internet da Conferência
Episcopal Portuguesa, podendo os comentários ser enviados para o endereço
eletrónico biblia.cep@gmail.com.
Em março de 2019, a CEP apresentou o 1.º volume da nova tradução da Bíblia
em português por 34 investigadores a partir das línguas originais, com a
publicação da edição de ‘Os Quatro
Evangelhos e os Salmos’. E, desde agosto de 2021, vem sendo disponibilizado
mensalmente em formato digital, também através dos canais da Ecclesia, um novo livro da Bíblia.
Assim, o volume disponibilizado on-line em agosto
foi a
1.ª Epístola de Paulo aos Coríntios, cujo capítulo 13 encerra um belo hino ao
Amor. Então, o Padre Mário de Sousa, coordenador da Comissão de Tradução da
Bíblia para a CEP, sucedendo no cargo ao falecido Bispo de Viana do Castelo,
Dom Anacleto Oliveira, explicava que estavam a ser revistos 35 livros, “prontos
para serem apresentados” e “compreendidos” da melhor forma possível pelo
público.
Na introdução, explicita-se que provavelmente esta
não é a 1.ª epístola de Paulo aos cristãos de Corinto, apesar do título. O
autor dá a entender que, antes desta, lhes enviara outra: “Escrevi-vos na carta que não vos misturásseis com promíscuos” (1Cor
5,9). A epístola,
tendo-se perdido, poderá ter sido integrada nas atuais 1Cor ou 2Cor. A breve
referência mostra que já antes ocorreram situações na comunidade que obrigaram
o apóstolo a intervir. Quer a 1Cor, quer todas as cartas do NT são escritos de
circunstância a responder a questões comunitárias, o que deve ser tido em conta
para uma correta interpretação.
Em setembro, a CEP divulgava online
a nova edição do Livro de Isaías, do Antigo Testamento; e, em outubro,
a 2.ª Epístola de Paulo aos Coríntios.
Isaías é o primeiro dos profetas maiores (Is, Jr, Ez, Dn). O seu livro, o mais extenso e mais
citado no NT (sobretudo
nos Evangelhos),
influenciou a interpretação da mensagem cristã. Lendo o cântico do Servo de
Javé (52,13-53,12) Filipe anunciou Jesus ao eunuco da
rainha de Candace (At
8,26-40).
Em Isaías transparece a história do povo de Deus com as
infidelidades e ameaças de castigo e com expressões de esperança e salvação.
Muitos textos denunciam o estado em que Israel e Judá se encontravam na 2.ª
metade do século VIII a.C.. Os anúncios de julgamento contra Jerusalém, Israel
e Judá e contra outros povos ocupam boa parte do livro. Dos anúncios de castigo
e promessas de salvação, o que prevalece são as promessas.
Há em Isaías grande diferenças de contexto histórico,
literário e teológico. Tradicionalmente atribuía-se o livro só ao profeta do
século VIII a.C.. de facto, os cc. 1-39 enquadram-se bem na história e na
geografia daquele período, mas, nos cc. 40-55e 55-66, o cenário geográfico e
histórico é já bastante diferente. Deste modo reconhecem-se em Isaías três
partes (1-39; 40-55:
56-66), diferentes no
estilo e no pensamento. Nos cc. 1-39 há um estilo solene, com formas breves e
concisas. O estilo dos cc. 40-55 é mais retórico e entusiasta, com repetições,
enumerações e uso frequente de sinónimos. Os cc. 56-66 estão na continuidade
dos anteriores, mas sem o seu nível poético. A nível do pensamento, a ideia de
Deus criador e redentor, tão presente em 40-55, não tem paralelo na 1.ª parte;
a imagem do salvador nos textos da 1.ª parte não é igual à do Servo do Senhor
na 2.ª. E, entre 40-55 e 56-66, também há diferenças significativas. Assim,
veem-se no livro 3 partes, de diferentes épocas históricas, autores, estilo e
preocupações teológicas: 1-39, Protoisaías; 40-55, Deuteroisaías; e 56-66,
Tritoisaías – divisão que não põe em causa a unidade do livro nem a existência
de muitos elementos de contacto que fizeram do livro um todo.
Porém, o texto encontrado em Qumran sugere a divisão em duas
partes: 1-33 e 34-66; e outros dividiriam as duas partes em 1-39 e 40-66.
No entendimento de vários autores, a 2Cor é compilação de
diversas cartas. Se, por exemplo, nos caps. 8-9, Paulo fala com amabilidade e
simpatia da coleta para Jerusalém, nos caps. 10-13 apresenta tom duro e
irónico, que deixa perceber um clima de tensão com a comunidade. Assim, a 2Cor
corresponderia a 3 cartas diferentes, escritas no contexto da polémica iniciada
com a chegada a Corinto de cristãos que se consideravam apóstolos (11,5.13; 12,11), mas que tinham uma visão do
evangelho de Cristo (11,4) e do apostolado (10,12) diferente da de Paulo, a quem negavam a legitimidade
apostólica.
Paulo escreve, então, à comunidade uma 1.ª carta (que constituiria o grosso da 2Cor tal
como a temos hoje) a
defender-se das acusações que esses forasteiros faziam em relação ao seu
apostolado e pregação. Percebe-se, no entanto, pelo tom afetuoso (6,11-13; 7,2-4), que mantém boas relações com a
comunidade e espera que esta não se deixe influenciar pelas acusações que lhe
fazem. Todavia, a carta não surtiu o efeito desejado, o que levou Paulo a
viajar até Corinto.
A visita acabou num conflito tão grave que o apóstolo foi
ofendido por um dos membros da comunidade (2,5; 7,12). Regressado a Éfeso, Paulo, em tom polémico e duro, escreve uma 2.ª
carta, que corresponderia aos caps. 10-13 (a Carta das Lágrimas), em que manifesta o seu desgosto por a comunidade ter acreditado
nas afirmações dos forasteiros e apela à ordem (13,9.11), sob ameaça de intervir duramente na sua próxima visita (10,2ss; 13,2ss).
O portador da carta é Tito, que traz, no regresso, a boa
notícia da reconciliação da comunidade com Paulo; e este, feliz, escreve uma
3.ª carta, que corresponderia a 1,1-2,13 e 7,5-16.
Já em novembro, a CEP divulgou o livro do Êxodo. O texto é
acompanhado duma introdução, que apresenta o conteúdo do livro, cujos primeiros
15 capítulos relatam “a saída dos filhos de Israel do Egito”. E refere a
Comissão da CEP:
“O título de Êxodo ganhou uma definição
ainda mais pertinente com a importância que o tema e a hermenêutica foram
acumulando ao longo da Bíblia e da história. Aplicando-se especificamente às
memórias e à leitura da história e da teologia segundo a experiência dos
israelitas, os temas do Êxodo não deixam de ser significativos também para
outros povos, para os quais a libertação da opressão foi igualmente
significativa.”.
Além do conteúdo, a introdução aborda a história literária e
autoria do segundo livro bíblico, “um entrançado sobretudo de peças narrativas
e conjuntos de mandamentos”, bem como o “sentido teológico” do livro, a partir
do “tema da libertação da escravatura”.
***
Enfim, é de aplaudir o gesto humilde da Comissão da Tradução
da Bíblia da CEP em solicitar ao público interessado o contributo para a
melhoria da redação, de modo que os textos na versão em português correspondam
ao sentido original e se adeqúem à linguagem que as pessoas melhor compreendam
e assimilem. Obviamente o apelo é lançado aos entendidos em hebraico, grego e
latim. Porém, o cidadão comum, sobretudo se for crente, mesmo que não saiba
dessas línguas poderá contribuir, com o conhecimento que tem da capacidade de
compreensão e assimilação por parte do povo, para o encontro do melhor
vocabulário e fraseado.
É óbvio que, do meu ponto de vista, não se ganha com o
pretenso refontismo expresso, por exemplo, na substituição da expressão “em
verdade, em verdade vos digo”, por “ámen,
ámen vos digo” (vg:
Jo 1,51) e na
substituição de “não há homem e mulher” por “não há macho e fêmea” (Gl 3,28), ou com o preciosismo contemporâneo
da substituição de “Verbo” por “Palavra” referente ao Filho de Deus, a Cristo (vd Jo 1,1.14). Não são de abandonar expressões
consagradas pelo uso e recorrentemente proferidas pelas pessoas de várias
proveniências sociais. E talvez fosse ocasião para introduzir na Liturgia as
orações bíblicas e outras com o tratamento por “tu” a Deus, à Virgem Maria, aos
anjos e santos, bem como ao celebrante e demais ministros. Não se justifica a
perpetuação do tratamento por “vós”.
Em todo o caso, é meritório o esforço de ajustamento a que a
CEP está a proceder.
2021.12.01 – Louro de Carvalho
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