O Primeiro-Ministro aceitou o pedido de demissão
do contestado Ministro da Administração Interna e encarregou de lhe suceder até
à posse do futuro Governo saído das próximas eleições legislativas a Ministra
da Justiça, que passa a acumular as duas pastas.
É óbvio que a substituição de membros do Governo
– e até do próprio Governo – em democracia é fenómeno mais que normal. No caso
de ministros, basta que a confiança do Primeiro-Ministro neles fique seriamente
abalada e/ou que o desempenho se mostre de todo inconveniente. De igual modo,
sucede com os secretários de Estado em relação ao respetivo ministro. E o
Governo cai pela rejeição parlamentar do seu programa, com novas eleições, com
a aprovação parlamentar de uma moção de censura, pela não aprovação parlamentar
de uma moção de confiança e por demissão do Governo por parte do Presidente da
República estando em causa o regular funcionamento das instituições
democráticas.
No caso vertente, não se trata de incompetência stricto sensu do titular do cargo, mas
na má gestão dos incidentes que foram assolando o seu departamento ministerial
e, consequentemente, nas atabalhoadas explicações públicas. Aliás, se a
incompetência stricto sensu se
verificasse, teria de cair o ministro e toda a sua equipa. Com efeito, nos
termos constitucionais, a demissão ou a exoneração do Governo implica a
cessação de funções dos ministros e secretários de Estado, como a
demissão/exoneração do ministro implica a cessação de funções dos respetivos secretários
de Estado. Não obstante, não raro, cai o ministro e um secretário de Estado
passa a ministro e, algumas vezes, os secretários de Estado ou são reconduzidos
ou transitam de pasta.
Efetivamente, como se diz recorrentemente, se o desempenho
do titular da pasta tivesse sido mesmo impróprio, deveria ter-se exigido a
demissão de toda a equipa.
Cabrita sucedeu à anterior titular da pasta, que
foi crucificada na praça pública e pelo próprio Presidente da República mercê
do trágico espetáculo dos incêndios florestais de 2017. E o caso dos incêndios
teve na sua origem uma série de dados e responsabilidades que têm vindo a ser
enunciados, mas com os quais pouco se tem aprendido. Na dupla tragédia daquele
ano, acentuou-se a falta de coordenação, a má e enviesada aplicação de meios e
a má gestão da recuperação de espaços destruídos. E, se os políticos stricto sensu não souberam emendar a mão
até agora – e as situações não se têm replicado porque o acaso nos tem
favorecido –, a justiça ainda não julgou, punindo ou absolvendo, os
responsáveis apontados e terá deixado de fora muitos outros. É certo que não
têm morrido pessoas, mas tem continuado a haver muitos danos patrimoniais
significativos. E os pecados por ação e por omissão persistem. Desde a
continuidade da promoção desordenada da floresta, passando por causas naturais
e atos de crime e loucura, até à persistente manutenção e crescimento do
negócio com os incêndios por parte de quem fornece os meios de combate, tudo
continua como dantes, quartel-general em Abrantes.
O ex-ministro era apontado por considerável
atraso na preparação de textos de propostas de lei do Governo a apresentar à
Assembleia da República (AR) e
de projetos de decretos-lei do Governo para cobrir as necessidades decorrentes
das conclusões a que chegaram os peritos que analisaram os incêndios, como o
acusavam de falhas técnico-jurídicas nos textos de proposta de lei apresentadas
à AR nos últimos tempos. Por outro lado, as polícias tuteladas pelo Ministério
da Administração Interna, como os bombeiros, não têm feito poucas críticas ao
ministro, quer a nível da legislação, quer a nível administrativo.
O até agora responsável pela pasta da
Administração Interna deparou-se com situações graves, de que não teve culpas
materiais, mas de que tardou a assumir responsabilidades políticas. Estão neste
caso a questão das golas inflamáveis e o jogo negocial em torno delas da parte
de pessoas alegadamente afetas ao então secretário de Estado da Proteção Civil (factos nunca inteiramente esclarecidos pela
política nem pela justiça); a famigerada morte do cidadão ucraniano nas
instalações do SEF do
Aeroporto de Lisboa às mãos de três inspetores daquele serviço, que o tribunal
parece classificar, não de homicídio qualificado, mas de agressão física de que
resultou a morte e mesmo agressão de que resultou doença perigosa e permanente;
o jogo do protagonismo sobre a modificação do SEF sob proposta do Governo ou da
PSP, de que resultou no Parlamento uma lei que, pela iminência da dissolução da
AR fica adiada por 6 meses; a situação dos migrantes em Odemira infetados e mal
alojados; os festejos do Sporting em tempo de contenção pela covid-19; e o caso
do veículo ministerial que atropelou mortalmente um trabalhador na AE6.
Em relação ao homicídio/agressão no Aeroporto, o
Ministro falou tardíssimo e levou tempo a motivar e/ou decidir a exoneração de
responsáveis pelos serviços em causa, havendo mesmo contradições em horas e
dias referidos. A Provedora de Justiça calculou a indemnização pela morte do
cidadão ucraniano em 800 000 euros, montante que alguns consideram em
excesso comparativamente com o calculado para cidadãos portugueses.
***
Quanto ao susodito acidente mortal na A6, a acusação
do MP (Ministério Público) por homicídio negligente deixa cair a imputação de
condução perigosa, por alegadamente não ser previsível presença de peões na
autoestrada, mas não se investiga a razão dessa efetiva presença, referindo a
peritagem que as lesões descritas na vítima não parecem compatíveis com a
descrição do acidente feita pelo MP. Neste âmbito, é elucidativo o texto de
Fernanda Câncio no DN, de que se
tomam as linhas gerais.
Ao Km 77,6
da AE6, pelas 13,08 horas, Nuno Miguel Pausinho dos Santos estava no separador
central e iniciou a travessia da faixa de rodagem em direção à berma da direita
no sentido Caia/Marateca. Para o MP e segundo a acusação de homicídio por
negligência, não há dúvida de que o trabalhador que a 18 de junho foi colhido
mortalmente na AE6 pela viatura oficial do então Ministro da Administração
estava a atravessar a autoestrada quando foi atropelado. Tal facto leva a que,
não obstante imputar ao motorista Marco Pontes, homicídio negligente por
circular acima do limite de velocidade e na faixa da esquerda, o MP não o acuse
pelo crime de condução perigosa. Isto porque, segundo o MP, “não existe
hipótese de condenação”.
Diz com
segurança o MP que Marco Pontes conduziu a viatura na faixa da esquerda da AE6
e em velocidade excessiva (cerca de 163 Km/h), violando assim as regras de circulação rodoviária. Contudo, o
preenchimento desses pressupostos não é suficiente, só por si, para concluir da
prática do crime de condução perigosa. O que está em causa, para a verificação
de tal crime, não é simplesmente a violação de regras de trânsito, nem que dela
resulte perigo concreto, mas da previsibilidade do perigo atentas as
circunstâncias. Assim, em concreto, não é possível extrair, ainda que indiciariamente,
a previsibilidade do perigo que originou o acidente, por ser do conhecimento
geral a proibição de circular apeado nas autoestradas, pelo que nada poderia
fazer prever a opção de Nuno Santos. – diz o MP.
Porém, o MP entra
em contradição quando afirma, na justificação da acusação de homicídio por
negligência, que o acidente de viação e as suas consequências ficaram a
dever-se à circunstância de Pontes conduzir com manifesta falta de cuidado e de
respeito pelas obrigação legalmente impostas, não prevendo, como podia e devia,
a possibilidade de embate da viatura por si conduzida em Nuno Santos. E, por
isso, a interrogação que fica a pairar é se, afinal, podia e devia prever o
perigo de embate da viatura num peão na autoestrada, ou não
Apesar de
considerar haver indícios suficientes de que a vítima estava a atravessar a autoestrada
aquando do embate, de que os trabalhos, a cargo da empresa Arquijardim (subcontratada
pela concessionária Brisa), a decorrer
naquele dia na A6 estavam delimitados ao lado direito da via, e que era na
berma do lado direito que estava estacionada a carrinha a sinalizar esses
trabalhos – carrinha que se encontrava a cerca de 100/150 metros do local de
realização dos trabalhos, ostentando, no taipal de trás, um sinal de “trabalhos
na estrada” e como complemento dispunha do sinal de obrigação de contornar
obstáculos à esquerda e duas luzes rotativas – o MP não parece ter considerado
relevante para a descoberta da verdade material investigar o motivo pelo qual o
malogrado trabalhador estava no local do atropelamento.
Visto que é
expressamente proibido pelo Código da Estrada a peões atravessarem a
autoestrada, seria expectável que a acusação se debruçasse sobre esse facto,
até porque este pode implicar o concurso de responsabilidades, isto é, a
divisão de responsabilidade, por violação dos deveres de cuidado por vários
intervenientes, entre o motorista e a vítima do atropelamento, ou de quem possa
mais ter responsabilidade nessa conduta.
Ora, para um
perito em segurança rodoviária, que preferiu o anonimato, as lesões sofridas
por Nuno Santos e referidas na acusação não parecem compatíveis com a descrição
que esta faz do acidente e que resulta do relato das únicas testemunhas – os
passageiros da viatura oficial do MAI – e do arguido. Isto porque, segundo o
perito, analisando as lesões, elas não indiciam contacto com as pernas, como
seria expectável em alguém colhido na posição ereta. Seriam de esperar fraturas
ao nível do fémur e da tíbia, que não existem na descrição acusatória. O que
está descrito são grandes fraturas ao nível da bacia, o que indicia que a
vítima poderia estar agachada na via, por exemplo a apanhar algum objeto.
Por outro
lado, a acusação não esclarece como foi calculada a velocidade do BMW do MAI, assumindo
tratar-se duma estimativa. Ora, na perícia efetuada pelos peritos da
Universidade do Minho, destinada a apurar a velocidade instantânea e a dinâmica
do acidente, foi possível aferir que a velocidade instantânea se situou entre
os 155 km/h e os 171km/h, apresentando-se a velocidade de 163 km/h como a mais
provável.
Se houvesse
rastos de travagem, seria possível calcular a velocidade, mas se, como já
afirmou publicamente o advogado da família da vítima, não havia rastos de
travagem, a velocidade ou foi lida da centralina do carro e, nesse caso, a gama
de velocidade na acusação não faria sentido, ou não se compreende como se
obteve tal velocidade. Pode ter sido obtida considerando a distância de
visibilidade do condutor, mas então o cálculo seria meramente especulativo.
Faltam dados do processo que poderiam perceber melhor como foi determinada a
velocidade.
***
Eduardo
Cabrita, que andou a ziguezaguear a informação pública remetendo a apuração dos
factos para a GNR, nomeadamente a velocidade a que circulava a viatura, e
confiando no inquérito instaurado pelo MP. Porém, além de se ter antecipado
indevidamente a declarar a apropriação da viatura pelo Estado, terá afirmado
que não havia sinais de obras na zona em causa da AE6. Enfim, habituou a
opinião pública à infelicidade das suas declarações, repletas de dados omissos,
contradições, imprecisões e até inverdades. No discurso da sua demissão, no dia
3 de dezembro, optou por, primeiro, fazer o autoelogio e a propaganda.
Enalteceu os feitos do seu mandato como Ministro da Administração Interna e deu
o exemplo da gestão dos incêndios este ano. Depois, fez-se de vítima, chegando
a dizer, talvez por lapso, que o carro foi vítima. Esqueceu-se dos episódios
que lhe correram mal no desempenho da importante função de governante, como o
caso das golas inflamáveis, a morte de Ihor Homeniuk às mãos do SEF, o caso dos
emigrantes de Odemira e os festejos do Sporting.
Ainda no dia
da de missão, Cabrita apresentou-se apenas como passageiro face ao acidente que
envolveu o automóvel em que circulava e provocou um morto. Se fosse o seu
camarada socialista Jorge Coelho, falecido, ter-se-ia demitido de imediato.
Cabrita, porém, precisou de toda o dia para pensar. As suas palavras foram
fatais ao desresponsabilizar-se do acidente, revelando falta de ética política
e deixando a culpa e a pena nas costas do motorista. Só que o senso da
sociedade não lhe absorveu a sensação de impunidade que pretendia transmitir.
O motorista
da viatura que conduzia Eduardo Cabrita é acusado de homicídio por negligência
e são-lhe ainda imputadas duas contraordenações: violação das regras de
velocidade e circulação previstas no Código da Estrada; e inobservância das
precauções exigidas pela prudência e cuidados impostos por tais regras de
condução. Cabrita não podia refugiar-se no chavão de que “é o Estado de direito
a funcionar”. Com efeito, o motorista cumpre ordens, estando preparado para se
deixar levar pelo temor reverencial, e um governante dá ordens; e não se
tratava de um ministro qualquer, mas da autoridade máxima de segurança no país.
Costa
resistiu a demitir o amigo ministro e a remodelar o governo. Mas, desta feita,
não tinha outra hipótese. Não podia partir para a campanha eleitoral a rebocar
esta tralha. E Cabrita já não tinha condições para integrar as listas de
deputados nem para voltar a integrar um governo, pois iria penalizar o
Primeiro-Ministro e o seu partido. Ao final da tarde, a demissão foi aceite por
Costa, que não poderia mais manter um elemento tóxico na sua recandidatura.
Saiu a dois meses das eleições e antes que a oposição usasse essa carga como
munição de arma de arremesso político em plena campanha eleitoral.
***
Cá está. Os
que são políticos ex professo não
tomam decisões declaratórias, demissórias ou remodelatórias atempadamente, mas
os operadores judiciais – lentos, omissos, excessivos e contraditórios no
cumprimento do seu tempo de justiça – forçam os políticos a tomar decisões.
Conhecida a acusação – saiba-se porque só agora ou já agora – o governante entra
em pânico, pois, só por acaso ou por ser governante é que não terá sido acusado
de cumplicidade. E não tem outra saída que não cumprir forçadamente o tempo
político.
Os políticos
ex professo não cumprem tempo
político e alegadamente não têm tempo da justiça, mas a justiça, que não devia
ter tempo político e devia ter tempo de justiça, não tem tempo eficaz de
justiça e, sem assumir, força o tempo da política.
Cai a área
da Administração Interna na titular da pasta da Justiça. Porém, a sobraçante da
pasta da Justiça não está – com razão ou sem ela (de certo modo refém das corporações
das magistraturas) – imune à
crítica. É certo que não regista tantos anticorpos como Cabrita, mas a área que
tutela tem sido agente e passivo de críticas bem contundentes, sobretudo da
parte do MP.
Levará ela a
carta Canossa sem percalço neste pouco mais de dois meses de governação?
2021.12.04 – Louro de Carvalho
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