sábado, 4 de dezembro de 2021

A justiça força a política convencional a cumprir o tempo

 

O Primeiro-Ministro aceitou o pedido de demissão do contestado Ministro da Administração Interna e encarregou de lhe suceder até à posse do futuro Governo saído das próximas eleições legislativas a Ministra da Justiça, que passa a acumular as duas pastas.

É óbvio que a substituição de membros do Governo – e até do próprio Governo – em democracia é fenómeno mais que normal. No caso de ministros, basta que a confiança do Primeiro-Ministro neles fique seriamente abalada e/ou que o desempenho se mostre de todo inconveniente. De igual modo, sucede com os secretários de Estado em relação ao respetivo ministro. E o Governo cai pela rejeição parlamentar do seu programa, com novas eleições, com a aprovação parlamentar de uma moção de censura, pela não aprovação parlamentar de uma moção de confiança e por demissão do Governo por parte do Presidente da República estando em causa o regular funcionamento das instituições democráticas.   

No caso vertente, não se trata de incompetência stricto sensu do titular do cargo, mas na má gestão dos incidentes que foram assolando o seu departamento ministerial e, consequentemente, nas atabalhoadas explicações públicas. Aliás, se a incompetência stricto sensu se verificasse, teria de cair o ministro e toda a sua equipa. Com efeito, nos termos constitucionais, a demissão ou a exoneração do Governo implica a cessação de funções dos ministros e secretários de Estado, como a demissão/exoneração do ministro implica a cessação de funções dos respetivos secretários de Estado. Não obstante, não raro, cai o ministro e um secretário de Estado passa a ministro e, algumas vezes, os secretários de Estado ou são reconduzidos ou transitam de pasta.

Efetivamente, como se diz recorrentemente, se o desempenho do titular da pasta tivesse sido mesmo impróprio, deveria ter-se exigido a demissão de toda a equipa.

Cabrita sucedeu à anterior titular da pasta, que foi crucificada na praça pública e pelo próprio Presidente da República mercê do trágico espetáculo dos incêndios florestais de 2017. E o caso dos incêndios teve na sua origem uma série de dados e responsabilidades que têm vindo a ser enunciados, mas com os quais pouco se tem aprendido. Na dupla tragédia daquele ano, acentuou-se a falta de coordenação, a má e enviesada aplicação de meios e a má gestão da recuperação de espaços destruídos. E, se os políticos stricto sensu não souberam emendar a mão até agora – e as situações não se têm replicado porque o acaso nos tem favorecido –, a justiça ainda não julgou, punindo ou absolvendo, os responsáveis apontados e terá deixado de fora muitos outros. É certo que não têm morrido pessoas, mas tem continuado a haver muitos danos patrimoniais significativos. E os pecados por ação e por omissão persistem. Desde a continuidade da promoção desordenada da floresta, passando por causas naturais e atos de crime e loucura, até à persistente manutenção e crescimento do negócio com os incêndios por parte de quem fornece os meios de combate, tudo continua como dantes, quartel-general em Abrantes.            

O ex-ministro era apontado por considerável atraso na preparação de textos de propostas de lei do Governo a apresentar à Assembleia da República (AR) e de projetos de decretos-lei do Governo para cobrir as necessidades decorrentes das conclusões a que chegaram os peritos que analisaram os incêndios, como o acusavam de falhas técnico-jurídicas nos textos de proposta de lei apresentadas à AR nos últimos tempos. Por outro lado, as polícias tuteladas pelo Ministério da Administração Interna, como os bombeiros, não têm feito poucas críticas ao ministro, quer a nível da legislação, quer a nível administrativo.

O até agora responsável pela pasta da Administração Interna deparou-se com situações graves, de que não teve culpas materiais, mas de que tardou a assumir responsabilidades políticas. Estão neste caso a questão das golas inflamáveis e o jogo negocial em torno delas da parte de pessoas alegadamente afetas ao então secretário de Estado da Proteção Civil (factos nunca inteiramente esclarecidos pela política nem pela justiça); a famigerada morte do cidadão ucraniano nas instalações do SEF do Aeroporto de Lisboa às mãos de três inspetores daquele serviço, que o tribunal parece classificar, não de homicídio qualificado, mas de agressão física de que resultou a morte e mesmo agressão de que resultou doença perigosa e permanente; o jogo do protagonismo sobre a modificação do SEF sob proposta do Governo ou da PSP, de que resultou no Parlamento uma lei que, pela iminência da dissolução da AR fica adiada por 6 meses; a situação dos migrantes em Odemira infetados e mal alojados; os festejos do Sporting em tempo de contenção pela covid-19; e o caso do veículo ministerial que atropelou mortalmente um trabalhador na AE6.

Em relação ao homicídio/agressão no Aeroporto, o Ministro falou tardíssimo e levou tempo a motivar e/ou decidir a exoneração de responsáveis pelos serviços em causa, havendo mesmo contradições em horas e dias referidos. A Provedora de Justiça calculou a indemnização pela morte do cidadão ucraniano em 800 000 euros, montante que alguns consideram em excesso comparativamente com o calculado para cidadãos portugueses. 

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Quanto ao susodito acidente mortal na A6, a acusação do MP (Ministério Público) por homicídio negligente deixa cair a imputação de condução perigosa, por alegadamente não ser previsível presença de peões na autoestrada, mas não se investiga a razão dessa efetiva presença, referindo a peritagem que as lesões descritas na vítima não parecem compatíveis com a descrição do acidente feita pelo MP. Neste âmbito, é elucidativo o texto de Fernanda Câncio no DN, de que se tomam as linhas gerais.

Ao Km 77,6 da AE6, pelas 13,08 horas, Nuno Miguel Pausinho dos Santos estava no separador central e iniciou a travessia da faixa de rodagem em direção à berma da direita no sentido Caia/Marateca. Para o MP e segundo a acusação de homicídio por negligência, não há dúvida de que o trabalhador que a 18 de junho foi colhido mortalmente na AE6 pela viatura oficial do então Ministro da Administração estava a atravessar a autoestrada quando foi atropelado. Tal facto leva a que, não obstante imputar ao motorista Marco Pontes, homicídio negligente por circular acima do limite de velocidade e na faixa da esquerda, o MP não o acuse pelo crime de condução perigosa. Isto porque, segundo o MP, “não existe hipótese de condenação”.

Diz com segurança o MP que Marco Pontes conduziu a viatura na faixa da esquerda da AE6 e em velocidade excessiva (cerca de 163 Km/h), violando assim as regras de circulação rodoviária. Contudo, o preenchimento desses pressupostos não é suficiente, só por si, para concluir da prática do crime de condução perigosa. O que está em causa, para a verificação de tal crime, não é simplesmente a violação de regras de trânsito, nem que dela resulte perigo concreto, mas da previsibilidade do perigo atentas as circunstâncias. Assim, em concreto, não é possível extrair, ainda que indiciariamente, a previsibilidade do perigo que originou o acidente, por ser do conhecimento geral a proibição de circular apeado nas autoestradas, pelo que nada poderia fazer prever a opção de Nuno Santos. – diz o MP.

Porém, o MP entra em contradição quando afirma, na justificação da acusação de homicídio por negligência, que o acidente de viação e as suas consequências ficaram a dever-se à circunstância de Pontes conduzir com manifesta falta de cuidado e de respeito pelas obrigação legalmente impostas, não prevendo, como podia e devia, a possibilidade de embate da viatura por si conduzida em Nuno Santos. E, por isso, a interrogação que fica a pairar é se, afinal, podia e devia prever o perigo de embate da viatura num peão na autoestrada, ou não

Apesar de considerar haver indícios suficientes de que a vítima estava a atravessar a autoestrada aquando do embate, de que os trabalhos, a cargo da empresa Arquijardim (subcontratada pela concessionária Brisa), a decorrer naquele dia na A6 estavam delimitados ao lado direito da via, e que era na berma do lado direito que estava estacionada a carrinha a sinalizar esses trabalhos – carrinha que se encontrava a cerca de 100/150 metros do local de realização dos trabalhos, ostentando, no taipal de trás, um sinal de “trabalhos na estrada” e como complemento dispunha do sinal de obrigação de contornar obstáculos à esquerda e duas luzes rotativas – o MP não parece ter considerado relevante para a descoberta da verdade material investigar o motivo pelo qual o malogrado trabalhador estava no local do atropelamento.

Visto que é expressamente proibido pelo Código da Estrada a peões atravessarem a autoestrada, seria expectável que a acusação se debruçasse sobre esse facto, até porque este pode implicar o concurso de responsabilidades, isto é, a divisão de responsabilidade, por violação dos deveres de cuidado por vários intervenientes, entre o motorista e a vítima do atropelamento, ou de quem possa mais ter responsabilidade nessa conduta.

Ora, para um perito em segurança rodoviária, que preferiu o anonimato, as lesões sofridas por Nuno Santos e referidas na acusação não parecem compatíveis com a descrição que esta faz do acidente e que resulta do relato das únicas testemunhas – os passageiros da viatura oficial do MAI – e do arguido. Isto porque, segundo o perito, analisando as lesões, elas não indiciam contacto com as pernas, como seria expectável em alguém colhido na posição ereta. Seriam de esperar fraturas ao nível do fémur e da tíbia, que não existem na descrição acusatória. O que está descrito são grandes fraturas ao nível da bacia, o que indicia que a vítima poderia estar agachada na via, por exemplo a apanhar algum objeto.

Por outro lado, a acusação não esclarece como foi calculada a velocidade do BMW do MAI, assumindo tratar-se duma estimativa. Ora, na perícia efetuada pelos peritos da Universidade do Minho, destinada a apurar a velocidade instantânea e a dinâmica do acidente, foi possível aferir que a velocidade instantânea se situou entre os 155 km/h e os 171km/h, apresentando-se a velocidade de 163 km/h como a mais provável.

Se houvesse rastos de travagem, seria possível calcular a velocidade, mas se, como já afirmou publicamente o advogado da família da vítima, não havia rastos de travagem, a velocidade ou foi lida da centralina do carro e, nesse caso, a gama de velocidade na acusação não faria sentido, ou não se compreende como se obteve tal velocidade. Pode ter sido obtida considerando a distância de visibilidade do condutor, mas então o cálculo seria meramente especulativo. Faltam dados do processo que poderiam perceber melhor como foi determinada a velocidade.

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Eduardo Cabrita, que andou a ziguezaguear a informação pública remetendo a apuração dos factos para a GNR, nomeadamente a velocidade a que circulava a viatura, e confiando no inquérito instaurado pelo MP. Porém, além de se ter antecipado indevidamente a declarar a apropriação da viatura pelo Estado, terá afirmado que não havia sinais de obras na zona em causa da AE6. Enfim, habituou a opinião pública à infelicidade das suas declarações, repletas de dados omissos, contradições, imprecisões e até inverdades. No discurso da sua demissão, no dia 3 de dezembro, optou por, primeiro, fazer o autoelogio e a propaganda. Enalteceu os feitos do seu mandato como Ministro da Administração Interna e deu o exemplo da gestão dos incêndios este ano. Depois, fez-se de vítima, chegando a dizer, talvez por lapso, que o carro foi vítima. Esqueceu-se dos episódios que lhe correram mal no desempenho da importante função de governante, como o caso das golas inflamáveis, a morte de Ihor Homeniuk às mãos do SEF, o caso dos emigrantes de Odemira e os festejos do Sporting.

Ainda no dia da de missão, Cabrita apresentou-se apenas como passageiro face ao acidente que envolveu o automóvel em que circulava e provocou um morto. Se fosse o seu camarada socialista Jorge Coelho, falecido, ter-se-ia demitido de imediato. Cabrita, porém, precisou de toda o dia para pensar. As suas palavras foram fatais ao desresponsabilizar-se do acidente, revelando falta de ética política e deixando a culpa e a pena nas costas do motorista. Só que o senso da sociedade não lhe absorveu a sensação de impunidade que pretendia transmitir.

O motorista da viatura que conduzia Eduardo Cabrita é acusado de homicídio por negligência e são-lhe ainda imputadas duas contraordenações: violação das regras de velocidade e circulação previstas no Código da Estrada; e inobservância das precauções exigidas pela prudência e cuidados impostos por tais regras de condução. Cabrita não podia refugiar-se no chavão de que “é o Estado de direito a funcionar”. Com efeito, o motorista cumpre ordens, estando preparado para se deixar levar pelo temor reverencial, e um governante dá ordens; e não se tratava de um ministro qualquer, mas da autoridade máxima de segurança no país.

Costa resistiu a demitir o amigo ministro e a remodelar o governo. Mas, desta feita, não tinha outra hipótese. Não podia partir para a campanha eleitoral a rebocar esta tralha. E Cabrita já não tinha condições para integrar as listas de deputados nem para voltar a integrar um governo, pois iria penalizar o Primeiro-Ministro e o seu partido. Ao final da tarde, a demissão foi aceite por Costa, que não poderia mais manter um elemento tóxico na sua recandidatura. Saiu a dois meses das eleições e antes que a oposição usasse essa carga como munição de arma de arremesso político em plena campanha eleitoral.

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Cá está. Os que são políticos ex professo não tomam decisões declaratórias, demissórias ou remodelatórias atempadamente, mas os operadores judiciais – lentos, omissos, excessivos e contraditórios no cumprimento do seu tempo de justiça – forçam os políticos a tomar decisões. Conhecida a acusação – saiba-se porque só agora ou já agora – o governante entra em pânico, pois, só por acaso ou por ser governante é que não terá sido acusado de cumplicidade. E não tem outra saída que não cumprir forçadamente o tempo político.

Os políticos ex professo não cumprem tempo político e alegadamente não têm tempo da justiça, mas a justiça, que não devia ter tempo político e devia ter tempo de justiça, não tem tempo eficaz de justiça e, sem assumir, força o tempo da política.       

Cai a área da Administração Interna na titular da pasta da Justiça. Porém, a sobraçante da pasta da Justiça não está – com razão ou sem ela (de certo modo refém das corporações das magistraturas) – imune à crítica. É certo que não regista tantos anticorpos como Cabrita, mas a área que tutela tem sido agente e passivo de críticas bem contundentes, sobretudo da parte do MP.

Levará ela a carta Canossa sem percalço neste pouco mais de dois meses de governação?

2021.12.04 – Louro de Carvalho

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