“Alegrai-vos
sempre no Senhor” (“Khaírete en Kyríôi pántote”),
porque “o Senhor está próximo” (“ho
Kýios engýs”), brada
o Apóstolo aos Filipenses (Fl
4,4-7), pregão que nos cabe
acolher.
Na verdade, o tema do III domingo do Advento no Ano C, o
Domingo “Laetare”, desenvolve-se em
duas vertentes: a pergunta “E nós que
devemos fazer?” (“Tí oûn poiêsômen”: Lc 3,10); e os apelos de Sofonias e de Paulo à
alegria. Na primeira vertente, a ordem é reparar o caminho por onde o Senhor
virá, o que implica pôr em questão os nossos limites, egoísmo e comodismo e
fazer a verdadeira transformação da vida no sentido de Deus. E o Evangelho
desta dominga elege três aspetos de transformação necessária: sair do nosso
casulo e aprender a partilhar; quebrar os mecanismos de exploração e
imoralidade; e renunciar à violência e prepotência e respeitar a dignidade dos irmãos.
Além disso, ficamos a saber que o cristão, porque “batizado no Espírito”, recebe de Deus vida nova e tem de viver de
acordo com ela. Na segunda vertente, a exultação a que o Povo de Deus é instado
pelo profeta firma-se no amor de Deus, que perdoa as faltas, provoca a
conversão e renova todas as coisas; e Paulo insiste no pregão da alegria porque
o Senhor está connosco, o que nos impulsiona à bondade, à oração, à caridade –
tudo na rota do Senhor que persiste em caminhar connosco.
***
O profeta Sofonias profetiza em Jerusalém, na 1.ª fase do
reinado de Josias (século
VII a.C.). Nas décadas
anteriores, o rei Manassés abriu o país aos costumes dos povos vizinhos, erigiu
altares a deuses estrangeiros (entronizou no templo de Jerusalém a imagem de Astarte), entregou-se à adivinhação e magia e
potenciou as injustiças, sobretudo para com os pobres e débeis. Porém, quando
Josias subiu ao trono, procurou alterar esta situação e promover uma genuína
reforma religiosa, tendo como óbice a persistência dos erros de Manassés.
É neste contexto que surge o ministério de Sofonias a atacar a
idolatria cultual, as injustiças, o materialismo, a indiferença religiosa, os
abusos da autoridade – quadro que representa grave infidelidade à Aliança. E,
no dizer do profeta, Deus não pactuará com tal situação.
Porém, Sofonias não se limita a anunciar o castigo. A sua
mensagem é, acima de tudo, apelo à conversão a Javé, rumo à salvação. O profeta
pede ao Povo que reassuma as responsabilidades para com Deus e viva de acordo
com os compromissos assumidos na Aliança.
Assim, o trecho da 1.ª leitura (Sf 3,14-18a) está inserido nas “promessas de
salvação”, com o profeta a traçar o quadro do tempo de alegria e felicidade,
subsequente à conversão de Judá.
É um brado-convite à alegria, porque o Senhor revogou a
sentença de condenação de Judá. O amor de Deus pelo Povo foi mais forte.
Doravante, Deus residirá no meio do seu Povo; e a nova comunhão entre Javé e o
Povo garante segurança, felicidade e vida em abundância. Esse amor de Deus,
indesmentível e indelével, renovará o coração do Povo e fará com que este retome
a rota da Aliança. E o próprio Deus rejubilará com este rumo novo de conversão.
Assim, como diz Dom António Couto, “Sofonias mantém alta a tonalidade festiva: ‘Rejubila,
filha de Sião!,/ Solta gritos de alegria, Israel!,/ porque o Senhor está no
meio de Ti!’.”. E “este intenso
convite é para nós, hoje, e deve ser vivido por nós, hoje e aqui, reunidos em
assembleia litúrgica festiva, que confessamos uma e outra vez: ‘Ele está no
meio de nós!’.”.
***
Falando do
Evangelho do domingo, Francisco divisa vários tipos de pessoas (multidão, publicanos e soldados) que perguntam emocionados pela
pregação do Batista: O que devemos fazer?
(Lc 3,10).
É a pergunta
que também nós devemos fazer aqui e agora. Não parte do sentido do dever, mas
do coração tocado por Deus e é ditada pelo entusiasmo da sua vinda, o que nos
leva a dizer: O que devemos fazer? E
João responde: “O Senhor está perto” (“ho
Kýios engýs”).
O Papa
Francisco parte do exemplo recorrente de quem espera a visita dum familiar ou amigo
que já não vê há muito tempo. Espera-o com alegria e mesmo com
impaciência. Asseia a casa, prepara a melhor comida, arranja um presente.
Tudo isto se deve fazer ao esperar pela vinda do Senhor no hoje e no fim dos
tempos. Só que a casa a assear é o nosso coração e o presente a arranjar é a
nossa vida, que tem de se ajustar ao saber, sentir e querer de Deus. Por isso,
o Pontífice sugere, em torno da pergunta “O
que devemos fazer?”, as seguintes: “O que fazer da minha vida? Para que sou chamado? O que é isso
que me preenche?”.
Francisco,
neste âmbito, adverte que a nossa vida não é deixada ao acaso; é, antes, um
presente que o Senhor nos dá, mandando-nos descobrir quem somos e trabalhar
para realizarmos os nossos verdadeiros sonhos. E, como cada um de nós tem uma
missão a cumprir, não pode ter medo de perguntar ao Senhor: “O que devo fazer?”. Aliás, como sublinha
Bergoglio, a pergunta também aparece nos Atos dos Apóstolos. Algumas pessoas,
ao escutarem Pedro a anunciar a ressurreição de Jesus, “sentiram que se lhes atravessava
o coração e disseram a Pedro e aos demais apóstolos: ‘Que devemos fazer, irmãos?’.” (“Tí oûn
poiêsômen, ándres adelphpoi;”: At 2,37).
A luz desta
pergunta basilar, cada um deve interrogar-se sobre o que é bom fazer por si e
pelos irmãos, como contribuir para isso, como contribuir para o bem
da Igreja e da sociedade? São interrogações oportunas na preparação para o
Natal e que os preparativos consumistas podem obnubilar. A resposta do Batista
é específica para cada tipo de pessoas que o interrogava. Assim, recomenda a
quem tem duas túnicas a compartilha com quem não tem nenhuma; aos
publicanos, que arrecadam impostos: “Não
exijais mais que o estipulado” (Lc 3,13); e aos soldados: “Não
maltrateis ninguém, não denuncieis injustamente e contentai-vos com o vosso
soldo” (Lc 3,14). E o Papa justifica estas
recomendações específicas com a ideia-força de que “a fé se materializa na vida
concreta”: não é teoria abstrata. Por conseguinte, cada situação real de
vida postula solução adequada. Assim, devemos examinar a nossa situação real e
perguntar ao Senhor e, por Ele, a quem nos possa orientar, o que pode e deve
cada um fazer em concreto. E, em face disso, assumir deveras o consequente
compromisso concreto.
O Papa
exemplifica: chamar a pessoa que está sozinha, visitar o idoso ou doente, fazer
algo para servir os necessitados, ter perdão a pedir ou perdão a dar,
esclarecer uma situação, pagar uma dívida. E, se foi negligenciada a
oração, há que a retomar com novo vigor e aproximar-se do perdão do
Senhor. Para tanto, roga a ajuda da Virgem, “em cujo seio Deus Se fez
carne”.
Na verdade, o
trecho evangélico que o Papa comentou (Lc 3,10-18) vem na sequência do que se proclamou
no II domingo do Advento: João indica agora, com pormenores a grupos concretos,
como proceder para percorrer o caminho da “metanoia” e preparar a “vinda do
Senhor”.
No outro domingo, o Evangelho rasgava claramente ao
meio este mundo. A Palavra de Deus passa ao lado dos senhores do mundo e
acerca-se dos pobres. De facto, ela é a espada de dois gumes (cf Sl 149,6; Jz 3,16-22; Heb 4,12). Deixa para trás o mundo rico e
poderoso, autorreferencial, impiedoso, insensível e indiferente, para cair,
para nosso assombro, sobre um pobre, o Batista, que não habita em palácios, mas
no deserto. Com a foice, a faca e o martelo da Palavra, João pode limpar (cf Jo 15,3) o silvo que nos enche o ouvido,
tirar a gordura que embota o coração humano e desfazer, o pedregulho da nossa
vida quotidiana. E, no Evangelho deste domingo, está João em cena, mas agora irrompendo
direto com o bisturi da Palavra ao ouvido do homem de cada tempo, de orelhas
obstruídas por mato e silvas, para anunciar que chegou o tempo da maturação
para joeirar, limpando a eira e recolher o trigo, pois a hora é de frutos
novos.
A 1.ª parte do trecho em referência (Lc 3,10-14) é uma secção própria de Lucas. De
facto, fazer visualizar as pessoas a perguntar “o que devemos fazer” é usual em Lucas (cf At 2,37; 16,30; 22,10) e sugere abertura à salvação que vem
de Deus. E, perante isso, o Batista propõe três atitudes em concreto a quem
deseja fazer a experiência de conversão e de encontro com o Senhor que vem: ao
povo, em geral, recomenda a sensibilidade às carências de quem nada tem e a
partilha dos bens; aos publicanos, que não explorem os outros, nem se deixem
levar por mecanismos de ilícito enriquecimento, nem despojem os mais pobres;
aos soldados, que não usem de violência, nem abusem da força contra fracos e
indefesos. Enfim, releva os crimes contra o irmão, pois tudo o que atenta
contra a vida dum homem é crime contra Deus e quem o comete fecha o coração e a
vida à proposta libertadora que Jesus traz. Com efeito, todos os frutos de
conversão que João menciona e reclama se referem ao comportamento para com o
próximo. Na verdade, a conversão, a volta para Deus passa sempre pelos gestos
para com o próximo, nomeadamente pela partilha para lá do impensável. Assim
fica evidente que, nesta sociedade em que poucos têm quase tudo e os outros
nada, andamos a brincar ao Evangelho.
Porém, o verbo “partilhar” é assustador, pois é a
última palavra que desejamos escutar. Com efeito, partilhar desvenda-nos e
despoja-nos da falsa boa vontade, da generosidade virtual, do vão
sentimentalismo religioso, da hipocrisia. Não se trata de depositar nos outros
só o supérfluo, as sobras, pois dar o supérfluo não tem o cunho de Deus, não
faz genuína memória de Jesus, que Se entregou por nós (cf Ef 5,2), por mim (cf Gl 2,20). O supérfluo deixa a vida tal e qual.
O dom de si mesmo transforma a vida para sempre. Ora, João, enquanto guardião
da fronteira entre este mundo que passa e o mundo que vem, anuncia uma presença
nova, a d’Aquele que vem, com o Espírito, que dá a vida plena. É o noivo, o
esposo, aquele de quem diz João Batista que não tem o direito nem o poder de lhe
desatar a correia da sandália.
Na 2.ª parte (Lc 3,15-18), João
anuncia o batismo no Espírito Santo, contraposto ao da água, de João. O batismo
de João é simples proposta de conversão, ao passo que o batismo de Jesus abraça
a vida de Deus que age no coração do homem, transformando o homem velho no
homem novo, capaz de partilhar a vida e amar como Jesus. Essa transformação que
Jesus operará no coração de todos os que estão dispostos a acolher a libertação
abrirá, para eles, uma nova vida, purificada (fogo), de onde são banidos o pecado e o egoísmo – uma vida segundo Deus.
Para Lucas, este anúncio de João concretizar-se-á em pleno no
dia de Pentecostes.
Sobre a simbologia do desatar da correia da sandália,
Dom António Couto, Bispo de Lamego, esclarece que não se trata de mero gesto de
humildade. A sandália remete para a área do direito de posse e do direito
matrimonial. Assim, no Livro do Deuteronómio (vd Dt 25,5-9), sobre a Lei do Levirato, lê-se que, se dois irmãos residirem
juntos e um deles morrer deixando a viúva sem filhos, o cunhado dela, é que a
tomará por esposa e ao primogénito que nascer do novo casamento pôr-se-á o nome
do defunto. Mas, se o homem se recusar a casar com a cunhada viúva, ela
denunciará tal recusa aos anciãos, que o chamarão a depor. E, se ele persistir
na recusa, ela, perante os anciãos, tirar-lhe-á a sandália do pé e cuspir-lhe-á
na cara. Por sua vez, no Livro de Rute (Rt 4,7-10), acerca do casamento de Booz com Rute, lê-se que era costume em Israel, nos
casos de resgate ou transmissão de propriedade, se um homem tira a sandália e a
dá ao outro para validade da transação, renuncia ao seu direito. Foi o que fez
o parente de Booz. Com isto Booz tomou posse da propriedade que comprou e adquiriu
o direito de tomar por esposa a moabita Rute, viúva de Malon, para conservar o
nome do defunto sobre a sua herança.
Ora, João Batista não pode desatar a sandália daquele
que tem o direito à noiva. Só este é que é o noivo, o esposo. João não é o
noivo, mas indica-o. O esposo é Cristo. Ei-lo que está a chegar! Por isso, em
linha com Sofonias, a hora é de alegria, de amor e de frutos de alegria e amor
***
A
2.ª leitura (Fl 4,4-7) mostra que Paulo, tendo recebido,
na prisão, a ajuda dos Filipenses, retribui com uma carta em que manifesta o
seu afeto por esta comunidade. Depois de agradecer a Deus pela sensibilidade deles
ao anúncio do Evangelho (cf Fl 1,11), informar a comunidade sobre a
sua situação pessoal (cf Fl 1,12-26), dirigir exortações várias à
comunidade (cf Fl 1,27-2,18), dar notícias sobre Timóteo e Epafrodito (cf
Fl 2,19-30) e denunciar
as acusações dos adversários (cf Fl 3,1-21), Paulo – consciente de que nem
tudo é perfeito nesta comunidade – faz um conjunto de recomendações práticas.
A primeira e mais importante é o apelo à alegria. É tão
premente, que Paulo o faz duas vezes, em diácope, num versículo: “alegrai-vos… alegrai-vos” (“Khaírete…
khaírete”). A
palavra usada (o verbo “khairô”) leva-nos à “alegria” (“khará”) que os anjos anunciam aos pastores, a
do nascimento de Jesus em Belém. É, pois, a alegria que resulta da presença
salvadora do Senhor Jesus no meio dos homens. Depois, Paulo acrescenta outras
recomendações: a bondade, a confiança, a oração de súplica e ação de graças.
São estes alguns dos predicados que devem acompanhar o cristão que espera a
vinda do Senhor: alegria, porque a libertação está a chegar; tolerância e
mansidão para com os irmãos; confiança em Deus; diálogo com Deus,
agradecendo-Lhe os dons e apresentando-Lhe as suas dores e dificuldades.
***
Sempre em modo de festa e alegria, o Salmo
Responsorial ou Cântico de Meditação, hino de louvor retirado de Isaías 12,3-6,
deixa-nos a alma cheia de cantares, fazendo-nos repetir: “Povo do Senhor, exulta e canta de alegria!”. De facto, o povo de
Deus, Igreja Una e Santa, vive dos louvores de Deus. E nós tiraremos água com
alegria das fontes da salvação. É, pois, bom louvar o nosso Deus, Aquele que
está no meio de nós, agora e sempre, operando maravilhas.
Por tudo isto, impõe-se que o III domingo do Advento,
o “Domingo laetare” (Domingo da alegria), o seja de verdade nos corações, de modo que “sintamos bem
fundo”, como pretende o Bispo de Lamego, “para além da capa do nosso
sentimentalismo religioso, o bisturi da Palavra de Deus e o martelo pneumático
do Espírito”.
2021.12.13 – Louro de Carvalho
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