O
Padre passionista Nuno Martins, na sua homilia da Missa da Festa da Sagrada Família, neste
dia 26 de dezembro de 2021, pelas 12 horas, desmistificou a vertente
encantadora desta família modelar e santa, construída por apologéticos
pregadores e, por consequência, pelos artistas.
Na
verdade, os quadros que as artes plásticas, as artes dramáticas e a oratória
nos apresentam da família de Maria, José e Jesus primam pela serenidade,
despreocupação e recolhimento. Maria é uma figura meio angelical; José é o
varão que aparenta uma idade em que as tentações carnais já não levam a melhor
sobre a alma; e o Menino, que não fala, pois é infante, não chora, não tem
fome, não ri, não está ensonado, antes tem sempre os olhos abertos e, apesar do
frio, não tirita, não boceja, não se queixa, enfim, é o que se poderia chamar
um anjinho do céu. Ora, se nos ficássemos por aqui, esta família pelo seu pressuposto
idealismo não nos serviria de bitola atitudinal e comportamental. Tão inacessível
ela se nos apresenta!
O
discurso homilético do orador começou por frisar os aspetos de tribulação que atingiram
esta família desde o seu início.
Logo
à cabeça vem a situação de Maria como mãe solteira, problemática para a cultura
coeva, aliás como ainda hoje é em certa medida. Com efeito, quando hoje nos
deparamos com uma família monoparental, a razão existencial pouco interessa,
olhando-se o caso com tolerância, compaixão, moda ou crítica. Maria sabia da
conceção sem concurso de varão, mas José, de quem estava noiva, mas com quem não
coabitava, de acordo com o costume intersticial entre o noivado e o casamento,
não o sabia nem se esperava que assim o entendesse.
(cf Mt 1,16-18).
Por
conseguinte, a família está em risco de separação e a mulher com gravidez
extramatrimonial sujeita a apedrejamento. Porém, José, homem justo, evitando o escândalo
e a eventual pena capital a infligir à esposa e resolveu rejeitá-la
secretamente, sem a difamar, até que o anjo o esclareceu de que o que se
passava era fruto Espírito Santo e visava o cumprimento das profecias
messiânicas. E assumiu o casamento e a paternidade legal do menino. (cf
Mt 1,19-25).
As
circunstâncias do nascimento de Jesus foram o mais estranhas possível: fora da residência
da mãe (em
Belém, não em Nazaré)
e num estábulo, cabendo a José minimizar o desconforto. Em contraponto, os anjos,
cantando glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens, badalaram a Boa Nova
do natal do Senhor aos pastores, que acorreram a Belém para verem o recém-nascido
envolto em panos e reclinado na manjedoura. E, aquando da apresentação no
Templo, além do elogio de Simeão e de Ana, os pais foram avisados de que o
Menino estava para a queda e o ressurgimento de muitos em Israel e para ser
sinal de contradição. Além disso, uma espada havia de trespassar o coração daquela
mãe. (cf
Lc 2,1-21). Não bastando
isso, cedo José e Maria tiveram que partir apressadamente com o Menino em fuga da
sanha persecutória de Herodes, tornando-se esta uma família de refugiados, como
há tantos hoje (cf Mt 2,13-15).
Sabemos
pela tradição que Maria ficou viúva cedo, cabendo-lhe, a partir de então, o
amparo de Jesus, que exercia a profissão de carpinteiro que aprendera com José.
Não consta que tivesse mesada ou dispensa do trabalho, antes foi educado na observância
da Lei e na aplicação ao trabalho (o que hoje é
contraindicado) segundo
as condições de idade e robustez.
E
Maria, que ficara viúva cedo, sofreu o drama de tantas mães hoje: morre o filho
antes da mãe, para mais como criminoso, apesar de a autoridade máxima da região
o considerar inocente sem margem para qualquer dúvida. E a mãe a tudo assistiu.
(cf
v.g: Jo 18,28-40; 19,1-30).
E
o pregador infere que, apesar de tudo isto e com isto, esta família, é sagrada
e santa. Com efeito, a santidade não lhe advém da ausência de problemas, mas da
forma como é capaz de os resolver: prudência, respeito, diálogo, diligência e escuta
atenta da voz de Deus para o justo e necessário discernimento.
Depois,
comentando o trecho evangélico da Festa (Lc 2,41-52), o sacerdote destaca sete lições
de vida que a Família de Nazaré nos pode oferecer, como se discrimina a seguir.
Antes
de mais, a vivência no cumprimento da Lei
do Senhor. Os pais de Jesus iam todos os anos a Jerusalém à festa da
Páscoa; e, quando o Menino atingiu os 12 anos (idade da socialização
ao tempo),
levaram-no consigo. Nada mais claro: a Família Sagrada cumpre a Torah.
Pontifica
a atenção solícita e a inquietude
perante um problema. Sem que tivessem dado conta, Jesus ficara em Jerusalém e,
pensando os pais que estava na caravana, procuram-no entre parentes e conhecidos.
Procuram-no um dia inteiro onde pensavam que ele estaria.
É
uma família resiliente. Não o tendo
encontrado, insistem na procura e vão a Jerusalém, vindo a encontrá-lo no
Templo sentado entre os doutores a quem dava respostas sábias e fazia perguntas
pertinentes, de modo que todos lhe admiravam a sabedoria e a inteligência.
Utilizam
o diálogo. A mãe questiona o filho
pelo que lhes fizera, pois o pai e ela procuravam-no aflitos; e ele adverte,
com a autoridade dos seus 12 anos, que mais importante que a procura é saberem
que ele tem que se ocupar nas coisas do Pai. Enfim, não estavam a entender, mas
uns e outros expuseram abertamente os seus pontos de vista.
Cultivam
o respeito pela liberdade do filho, o
que hoje tantas vezes não acontece, porque a tendência, baseada no pressuposto errado
de que os filhos são dos pais, leva estes a manietá-los na sua liberdade e
sonhos, tolhendo-lhes o futuro, seja pelo facilitismo, seja pela pressão. Ora,
Maria e José ficaram a saber que o Menino não era deles, tinha a sua missão, o
seu futuro.
Praticam
a submissão. Jesus desceu com eles
para Nazaré e era-lhes submisso. A submissão não significa sujeição ou humilhação/opressão,
mas a postura de todos num dinamismo de serviço sob a égide do amor expresso na
linha do bem comum – de cada pessoa, de toda a família. É a assunção da vontade
de queremos depender uns dos outros por causa dum bem maior.
Por fim, o crescimento. O Menino crescia e robustecia-se em estatura, sabedoria
e graça diante de Deus e dos homens. De facto, esta família, que sabe enfrentar
os problemas e viver segundo os parâmetros de Deus e do superior bem dos homens,
é efetivamente modelar, é um verdadeiro exemplo para as famílias de hoje, que
vivem ou podem viver dramas similares.
***
Também
o Santo Padre Francisco falou da Sagrada Família de Nazaré, “uma família
humilde e simples” escolhida por Deus “para vir entre nós”. E, exortando à
contemplação da “beleza deste mistério”, destacou “dois aspetos específicos
para as nossas famílias”.
Primeiro,
a família é a história de que
viemos. Porque “ninguém nasceu magicamente”, cada um “tem uma história
e a família é a história donde viemos”. Também Jesus é “filho de uma
história familiar”. Viaja para Jerusalém com Maria e José para festejar a
Páscoa e faz com que a mãe e o pai se aflijam por não o encontrarem, apesar de
o procurarem pressurosamente. Porém, uma vez encontrado, retorna para casa
para eles (cf Lc 2,41-52). Está “Jesus
inserido na rede de afetos familiares, nascer e crescer no abraço e na
preocupação dos seus”, frisando o Papa que isso é importante para nós: “viemos
duma história entrelaçada por laços de amor”. Na verdade, a pessoa que somos nasce,
não tanto dos bens materiais de que usufruímos, mas do amor que recebemos, o
amor na família. Nela temos as nossas raízes, que não podemos cortar, sob
pena de a vida secar. De facto, como assegura o Papa, “Deus não nos criou
para sermos cavaleiros solitários, mas para caminharmos juntos”. E, pensando
em nós, “quer que estejamos juntos: gratos, unidos, capazes de proteger as
nossas raízes”.
Por
outro lado, aprendemos a ser uma família todos os dias. O Evangelho
mostra que, nesta Família, “surgem problemas inesperados, angústias,
sofrimentos”. Não há a Sagrada Família dos santinhos (estampas, quadros e
esculturas…). Maria
e José perdem Jesus, procuram-no ansiosos, mas só o encontram passados três
dias. E, quando lhes responde que deve cuidar dos assuntos do Pai, eles
não entendem: precisam de tempo para aprender a conhecer o filho. Também,
como sublinha o Pontífice, “todos os dias, em família, devemos aprender a ouvir
e a compreender-nos, a caminhar juntos, a enfrentar os conflitos e as
dificuldades”, usando de pequenas atenções e gestos simples, cuidando os detalhes
das nossas relações e conversando em família.
E Francisco aponta o método. É ver como fala Maria, que diz a
Jesus: “O ‘teu’ pai e ‘eu’
andávamos à tua procura” (Lc 2,48). Vinca o Papa que “não diz ‘eu’ e o ‘teu’ pai”, pois sabe que “antes do ‘eu’,
há o ‘tu’!” – o que nós devemos aprender. E insiste:
“Para preservar a harmonia na família,
devemos combater a ditadura do ‘eu’ (…). É perigoso quando, em vez de nos ouvirmos, nos
culpamos uns aos outros pelos erros; quando, em vez de termos gestos de cuidado
pelos outros, nos fixamos nas nossas necessidades; quando, em vez de dialogar,
nos isolamos com o telemóvel – é triste ver uma família almoçar, cada qual com
o seu telemóvel, sem falar uns com os outros, cada um a falar com o seu
telemóvel; quando nos acusamos uns aos outros, repetindo sempre as mesmas
frases, encenando uma comédia que já vimos, onde cada um quer ter razão e, no
final, instaura-se um silêncio frio.”.
O Papa esconjura o silêncio frio e agudo, subsequente uma
discussão familiar, que é terrível. E, por isso, reitera o conselho de se
fazerem as pazes no final de tudo. Ao invés, começará ou continuará “uma
história de repreensões, uma história de ressentimentos” ou de “conflitos de
silêncios demasiado longos e de egoísmos descuidados”, podendo chegar a “violências
físicas e morais”, o que “dilacera a harmonia e mata a família”.
Ora, se passarmos do ‘eu’ para o ‘tu’ na família, se rezarmos
juntos pedindo a Deus “o dom da paz na família”, se “nos comprometermos todos –
pais, filhos, Igreja, sociedade civil – a apoiar, defender e preservar a
família, que é o nosso tesouro”, outro galo cantará. Esta é a esperança que se
fará certeza!
2021.12.26 – Louro de Carvalho
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