segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Na Sagrada Família, as tribulações e as lições de vida

 

O Padre passionista Nuno Martins, na sua homilia da Missa da Festa da Sagrada Família, neste dia 26 de dezembro de 2021, pelas 12 horas, desmistificou a vertente encantadora desta família modelar e santa, construída por apologéticos pregadores e, por consequência, pelos artistas.

Na verdade, os quadros que as artes plásticas, as artes dramáticas e a oratória nos apresentam da família de Maria, José e Jesus primam pela serenidade, despreocupação e recolhimento. Maria é uma figura meio angelical; José é o varão que aparenta uma idade em que as tentações carnais já não levam a melhor sobre a alma; e o Menino, que não fala, pois é infante, não chora, não tem fome, não ri, não está ensonado, antes tem sempre os olhos abertos e, apesar do frio, não tirita, não boceja, não se queixa, enfim, é o que se poderia chamar um anjinho do céu. Ora, se nos ficássemos por aqui, esta família pelo seu pressuposto idealismo não nos serviria de bitola atitudinal e comportamental. Tão inacessível ela se nos apresenta!

O discurso homilético do orador começou por frisar os aspetos de tribulação que atingiram esta família desde o seu início.

Logo à cabeça vem a situação de Maria como mãe solteira, problemática para a cultura coeva, aliás como ainda hoje é em certa medida. Com efeito, quando hoje nos deparamos com uma família monoparental, a razão existencial pouco interessa, olhando-se o caso com tolerância, compaixão, moda ou crítica. Maria sabia da conceção sem concurso de varão, mas José, de quem estava noiva, mas com quem não coabitava, de acordo com o costume intersticial entre o noivado e o casamento, não o sabia nem se esperava que assim o entendesse. (cf Mt 1,16-18).

Por conseguinte, a família está em risco de separação e a mulher com gravidez extramatrimonial sujeita a apedrejamento. Porém, José, homem justo, evitando o escândalo e a eventual pena capital a infligir à esposa e resolveu rejeitá-la secretamente, sem a difamar, até que o anjo o esclareceu de que o que se passava era fruto Espírito Santo e visava o cumprimento das profecias messiânicas. E assumiu o casamento e a paternidade legal do menino. (cf Mt 1,19-25).

As circunstâncias do nascimento de Jesus foram o mais estranhas possível: fora da residência da mãe (em Belém, não em Nazaré) e num estábulo, cabendo a José minimizar o desconforto. Em contraponto, os anjos, cantando glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens, badalaram a Boa Nova do natal do Senhor aos pastores, que acorreram a Belém para verem o recém-nascido envolto em panos e reclinado na manjedoura. E, aquando da apresentação no Templo, além do elogio de Simeão e de Ana, os pais foram avisados de que o Menino estava para a queda e o ressurgimento de muitos em Israel e para ser sinal de contradição. Além disso, uma espada havia de trespassar o coração daquela mãe. (cf Lc 2,1-21). Não bastando isso, cedo José e Maria tiveram que partir apressadamente com o Menino em fuga da sanha persecutória de Herodes, tornando-se esta uma família de refugiados, como há tantos hoje (cf Mt 2,13-15).   

Sabemos pela tradição que Maria ficou viúva cedo, cabendo-lhe, a partir de então, o amparo de Jesus, que exercia a profissão de carpinteiro que aprendera com José. Não consta que tivesse mesada ou dispensa do trabalho, antes foi educado na observância da Lei e na aplicação ao trabalho (o que hoje é contraindicado) segundo as condições de idade e robustez.

E Maria, que ficara viúva cedo, sofreu o drama de tantas mães hoje: morre o filho antes da mãe, para mais como criminoso, apesar de a autoridade máxima da região o considerar inocente sem margem para qualquer dúvida. E a mãe a tudo assistiu. (cf v.g: Jo 18,28-40; 19,1-30).      

E o pregador infere que, apesar de tudo isto e com isto, esta família, é sagrada e santa. Com efeito, a santidade não lhe advém da ausência de problemas, mas da forma como é capaz de os resolver: prudência, respeito, diálogo, diligência e escuta atenta da voz de Deus para o justo e necessário discernimento.

Depois, comentando o trecho evangélico da Festa (Lc 2,41-52), o sacerdote destaca sete lições de vida que a Família de Nazaré nos pode oferecer, como se discrimina a seguir.

Antes de mais, a vivência no cumprimento da Lei do Senhor. Os pais de Jesus iam todos os anos a Jerusalém à festa da Páscoa; e, quando o Menino atingiu os 12 anos (idade da socialização ao tempo), levaram-no consigo. Nada mais claro: a Família Sagrada cumpre a Torah.

Pontifica a atenção solícita e a inquietude perante um problema. Sem que tivessem dado conta, Jesus ficara em Jerusalém e, pensando os pais que estava na caravana, procuram-no entre parentes e conhecidos. Procuram-no um dia inteiro onde pensavam que ele estaria.   

É uma família resiliente. Não o tendo encontrado, insistem na procura e vão a Jerusalém, vindo a encontrá-lo no Templo sentado entre os doutores a quem dava respostas sábias e fazia perguntas pertinentes, de modo que todos lhe admiravam a sabedoria e a inteligência.

Utilizam o diálogo. A mãe questiona o filho pelo que lhes fizera, pois o pai e ela procuravam-no aflitos; e ele adverte, com a autoridade dos seus 12 anos, que mais importante que a procura é saberem que ele tem que se ocupar nas coisas do Pai. Enfim, não estavam a entender, mas uns e outros expuseram abertamente os seus pontos de vista.

Cultivam o respeito pela liberdade do filho, o que hoje tantas vezes não acontece, porque a tendência, baseada no pressuposto errado de que os filhos são dos pais, leva estes a manietá-los na sua liberdade e sonhos, tolhendo-lhes o futuro, seja pelo facilitismo, seja pela pressão. Ora, Maria e José ficaram a saber que o Menino não era deles, tinha a sua missão, o seu futuro.

Praticam a submissão. Jesus desceu com eles para Nazaré e era-lhes submisso. A submissão não significa sujeição ou humilhação/opressão, mas a postura de todos num dinamismo de serviço sob a égide do amor expresso na linha do bem comum – de cada pessoa, de toda a família. É a assunção da vontade de queremos depender uns dos outros por causa dum bem maior.

Por fim, o crescimento. O Menino crescia e robustecia-se em estatura, sabedoria e graça diante de Deus e dos homens. De facto, esta família, que sabe enfrentar os problemas e viver segundo os parâmetros de Deus e do superior bem dos homens, é efetivamente modelar, é um verdadeiro exemplo para as famílias de hoje, que vivem ou podem viver dramas similares.   

***

Também o Santo Padre Francisco falou da Sagrada Família de Nazaré, “uma família humilde e simples” escolhida por Deus “para vir entre nós”. E, exortando à contemplação da “beleza deste mistério”, destacou “dois aspetos específicos para as nossas famílias”.

Primeiro, a família é a história de que viemos. Porque “ninguém nasceu magicamente”, cada um “tem uma história e a família é a história donde viemos”. Também Jesus é “filho de uma história familiar”. Viaja para Jerusalém com Maria e José para festejar a Páscoa e faz com que a mãe e o pai se aflijam por não o encontrarem, apesar de o procurarem pressurosamente. Porém, uma vez encontrado, retorna para casa para eles (cf Lc 2,41-52). Está “Jesus inserido na rede de afetos familiares, nascer e crescer no abraço e na preocupação dos seus”, frisando o Papa que isso é importante para nós: “viemos duma história entrelaçada por laços de amor”. Na verdade, a pessoa que somos nasce, não tanto dos bens materiais de que usufruímos, mas do amor que recebemos, o amor na família. Nela temos as nossas raízes, que não podemos cortar, sob pena de a vida secar. De facto, como assegura o Papa, “Deus não nos criou para sermos cavaleiros solitários, mas para caminharmos juntos”. E, pensando em nós, “quer que estejamos juntos: gratos, unidos, capazes de proteger as nossas raízes”. 

Por outro lado, aprendemos a ser uma família todos os dias. O Evangelho mostra que, nesta Família, “surgem problemas inesperados, angústias, sofrimentos”. Não há a Sagrada Família dos santinhos (estampas, quadros e esculturas…). Maria e José perdem Jesus, procuram-no ansiosos, mas só o encontram passados três dias. E, quando lhes responde que deve cuidar dos assuntos do Pai, eles não entendem: precisam de tempo para aprender a conhecer o filho. Também, como sublinha o Pontífice, “todos os dias, em família, devemos aprender a ouvir e a compreender-nos, a caminhar juntos, a enfrentar os conflitos e as dificuldades”, usando de pequenas atenções e gestos simples, cuidando os detalhes das nossas relações e conversando em família.

E Francisco aponta o método. É ver como fala Maria, que diz a Jesus: “O teu pai e eu andávamos à tua procura(Lc 2,48). Vinca o Papa que “não diz eu e o teu pai”, pois sabe que “antes do ‘eu’, há o ‘tu’!” – o que nós devemos aprender. E insiste:

Para preservar a harmonia na família, devemos combater a ditadura do eu (…). É perigoso quando, em vez de nos ouvirmos, nos culpamos uns aos outros pelos erros; quando, em vez de termos gestos de cuidado pelos outros, nos fixamos nas nossas necessidades; quando, em vez de dialogar, nos isolamos com o telemóvel – é triste ver uma família almoçar, cada qual com o seu telemóvel, sem falar uns com os outros, cada um a falar com o seu telemóvel; quando nos acusamos uns aos outros, repetindo sempre as mesmas frases, encenando uma comédia que já vimos, onde cada um quer ter razão e, no final, instaura-se um silêncio frio.”.

O Papa esconjura o silêncio frio e agudo, subsequente uma discussão familiar, que é terrível. E, por isso, reitera o conselho de se fazerem as pazes no final de tudo. Ao invés, começará ou continuará “uma história de repreensões, uma história de ressentimentos” ou de “conflitos de silêncios demasiado longos e de egoísmos descuidados”, podendo chegar a “violências físicas e morais”, o que “dilacera a harmonia e mata a família”.

Ora, se passarmos do ‘eu’ para o ‘tu’ na família, se rezarmos juntos pedindo a Deus “o dom da paz na família”, se “nos comprometermos todos – pais, filhos, Igreja, sociedade civil – a apoiar, defender e preservar a família, que é o nosso tesouro”, outro galo cantará. Esta é a esperança que se fará certeza!

2021.12.26 – Louro de Carvalho

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