Cumpria eu o serviço
militar no Regimento de Infantaria de Viseu e, numa determinada manhã, um
tenente e eu quisemos ir a Fuentes de Oñoro e Ciudad Rodrigo, Espanha.
Na parte portuguesa
da fronteira, em Vilar Formoso, o pessoal do controlo, conhecendo o tenente,
fez-lhe uma grande mostra de simpatia e alegria. Eu, que fazia de condutor do
veículo, mostrei o meu bilhete de identidade civil e passámos. Porém, no controlo
espanhol, mostrei eu naturalmente o bilhete de identidade, o que permitia a
autorização para seguir; já o tenente, que só tinha o bilhete de identificação
militar (de militares do quadro permanente válido em Portugal
para efeitos civis), não poderia seguir. Porfiámos que não havia
problema, que só íamos a Fuentes. Em reação, o guarda retorquiu: “Não há problema, mas nós criamo-lo”. Não
houve outra hipótese a não ser eu me responsabilizar pelo regresso do predito
oficial, o que fiz de boa vontade.
Vem isto a propósito
da tomada de posse do ora almirante Henrique
Eduardo Passaláqua de Gouveia e Melo como Chefe de Estado-Maior da Armada (CEMA), que ocorreu na tarde deste dia 27 de dezembro,
no Palácio de Belém em cerimónia de dois minutos, com assinatura do termo e
declaração do compromisso de honra, mas sem discursos, sem o usual aperto de
mão, sem a presença do Primeiro-Ministro por motivo de quarentena e sem o
antecessor, CEMA desde 2018, que, pelos vistos, saiu antes do fim do mandato,
mas não por vontade própria.
A posse foi conferida pelo Presidente da República (PR), que, para o efeito promoveu o até agora
vice-almirante ao posto de almirante e que, no final da cerimónia, lhe dirigiu algumas
palavras, não audíveis, a que se seguiu Eduardo Ferro Rodrigues, Presidente da
Assembleia da República, que esticando o punho para um cumprimento ao novo
CEMA.
A representar o Governo, nesta
que foi a 4.ª vez que Marcelo deu posse a um CEMA desde que é Chefe de Estado, esteve João
Gomes Cravinho, Ministro da Defesa Nacional, o centro do folhetim da sucessão
do CEMA, já que, há tempos, Marcelo veio a público desautorizar o
ministro, travando a saída de Mendes Calado e a nomeação de Gouveia e Melo. Em
Belém, estiveram ainda o almirante Silva Ribeiro, Chefe do Estado-Maior-General
das Forças Armadas (CEMGFA), que previamente
condecorara Gouveia e Melo, com a medalha de serviços distintos grau ouro, e representantes
dos três ramos: pelo Exército, em representação do CEME, general José Nunes da
Fonseca, o
Comandante das Forças Terrestres, tenente-general Martins Pereira; pela Armada,
o Vice-CEMA, vice-almirante Jorge Novo Palma; e, pela Força Aérea, o CEMFA, general
Joaquim Nunes Borrego. E estiveram presentes a mulher e os filhos do novo CEMA.
A situação pandémica no país foi a justificação dada para que a tomada de
posse fosse curta e restrita a poucos convidados.
***
Ascender a CEMA era sonho antigo, não escondido, de Gouveia e Melo, que o
lembrou na entrevista ao “Expresso”
na edição do passado fim de semana, em que declarou:
“Confirmo que é um objetivo
importante para mim, caso seja esse o entendimento superior”.
E vincou o objetivo de que “a Marinha seja um dos catalisadores de um novo
posicionamento de Portugal para o mar no século XXI”. Já, quanto à polémica da
substituição de Calado, conteve-se, apenas referindo que “o processo de
exoneração exige um conjunto de passos” em que o PR, que é comandante supremo
das Forças Armadas, não tem de ser o primeiro a saber. Porém, admitiu que, “em termos políticos, naturalmente, as
coisas não são assim”. Com efeito, apesar da unanimidade dos aplausos a
Gouveia e Melo após ter liderado a task-force de
vacinação de 3 de fevereiro a 28 de setembro, o momento da chegada a CEMA não é
pacífico, situação para a qual contribuíram as palavras do antecessor. Em vídeo
do Facebook oficial da Marinha, o ex-CEMA lembrou a “honra” de ter exercido o
cargo, mas frisou a saída forçada:
“Deixo a Marinha não por vontade
própria, pois os que me conhecem não entenderiam que abandonasse o leme da
nossa Marinha depois de tanto resistir ao temporal que nos assolou nos últimos
tempos”.
Calado, considerando “uma honra e um privilégio ter liderado e aprendido
tanto” com todos os que com ele se cruzaram durante os 47 anos de serviço à
Marinha, disse:
“Procurei
sempre liderar pelo exemplo, de plena dedicação e grande entusiasmo, com a
nobre missão de servir Portugal e os portugueses”.
Na hora da saída, assegurou a “confiança numa Marinha resiliente, capaz de
ultrapassar todos os desafios, focada no horizonte, espreitando o futuro e
ajudando a construí-lo com inovação para continuarmos a cumprir Portugal com
brio e orgulho, continuando a valorizar as pessoas e a condição militar”. E
pediu:
“Exorto-vos a que
continueis como sempre: coesos, disciplinados, corajosos e sempre a honrar a
nossa divisa ‘Talant de bien faire’ [vontade de bem fazer]. A pátria honrai que
a pátria vos contempla e a pátria é o nosso grande desígnio.”.
E, esperando “bons ventos e mares de feição e que a estrela da sorte guie
sempre as missões da Marinha e proteja todos os seus homens e mulheres”, disse
o “até sempre, levo-vos no coração”.
Em setembro, uma minicrise entre o
Governo e a Presidência da República, foi resolvida com reunião de urgência, em
Belém, entre o Primeiro-Ministro, o Ministro da Defesa e o PR.
Nos termos da lei orgânica das Forças
Armadas, os chefes dos ramos são nomeados e exonerados pelo PR, sob proposta do
Governo, precedida da audição, através do Ministro da Defesa Nacional, do
CEMGFA.
Marques Mendes engrossou o tom das críticas da oposição no comentário de
domingo na SIC, qualificando de “lamentável” a atitude do Governo, que “é uma
iniciativa péssima”, pois, na sua opinião, Calado foi “quase foi atirado pela
janela fora”, por ter discordado das novas leis das Forças Armadas. E afirmou
que a popularidade de Gouveia e Melo, trazida pela projeção mediática da
vacinação, pode estar a ser “aproveitada” pelo Governo, em vésperas de
eleições”. Em contraponto, o Primeiro-Ministro desdramatizou, em declaração à CNN
Portugal, a saída de Calado a um mês das eleições, garantindo que “havia um entendimento de uma saída antes
do termo do mandato”. Assim, no momento em que há novas leis orgânicas a
entrar em vigor pareceu ao Governo, e o PR concordou, que era altura de
proceder a esta alteração.
Na
verdade, segundo a nota do Palácio de Belém,
Marcelo, depois de receber o almirante CEMA e considerando que haverá, em
breve, legislação orgânica sobre o Estado-Maior-General e os três ramos das
Forças Armadas, significando um novo ciclo político e funcional, “entendeu ser
chegado o tempo de proceder à referida exoneração”. Desta forma, segundo a mesma nota, antecipa-se “alguns meses o termo do
segundo mandato”, o que vai ocorrer “de acordo com disponibilidade manifestada”
por Mendes Calado. Ao mesmo tempo, o PR anunciava a condecoração de Calado com a Grã-Cruz da Ordem de Cristo e agradeceu o seu empenho enquanto CEMA, no dia em
que aceitou a proposta do Governo para o exonerar.
***
O
novo almirante nasceu em Quelimane, Moçambique, em 21 novembro 1960. Ingressou
na Escola Naval em 7 setembro de 1979. Passou 22 anos da sua carreira nos
submarinos onde exerceu diversas funções operacionais, tendo comandado os
submarinos Delfim e Barracuda. Recentemente coordenou a equipa responsável pelo
plano de vacinação nacional contra a covid-19 de 3 de fevereiro a 28 de
setembro. E, a 23 de dezembro, o Conselho de Ministros aprovou a proposta da
nomeação do então Vice-almirante para CEMA, sucedendo ao almirante António
Mendes Calado, e que teve o parecer favorável do CEMGFA, após audição do
Conselho do Almirantado, como posição desfavorável, embora não vinculativa. No
mesmo dia, o PR indicou que iria “nomear Chefe do Estado-Maior da Armada o vice-almirante
Henrique de Gouveia e Melo e promovê-lo ao posto de almirante”.
***
A artificialidade da polémica resulta
do facto de Mendes Calado ter anuído à recondução no cargo com a condição de
não cumprir o tempo de 2 anos em que podia permanecer como CEMA. Se a aceitou,
não sendo obrigado, não lhe ficou bem voltar atrás e, em setembro, ter levado o
almirantado a emitir parecer desfavorável à nomeação de Melo em reunião a que
presidiu. Ficou logo a saber-se que não saía de vontade, mas louvam-se os
apelos que deixou.
Marcelo é contraditório e tem
opiniões criticáveis, mas não mente em relação a factos. E disse que o
almirante concordara com as condições em que fora reconduzido. O que se passara
em setembro é que o seu chefe da Casa Militar, também interessado no cargo, fez
sair para fora a notícia por antecipação (ninguém desmentiu esta informação do semanário “Nascer do Sol”) e Marcelo, vendo-se ultrapassado pela
comunicação social, vetou a iniciativa de Cravinho.
Pelos vistos, a promoção e ascensão
de Melo a CEMA só não aconteceu aquando da recondução de Calado, nos termos em
que o foi, porque Melo não devia sair da taskforce da vacinação. Em setembro, a
saída de Melo já não era problemática porque estava com vacinação completa 88%
da população elegível e ainda não havia decisão da DGS sobre a 3.ª dose e sobre
a vacina das crianças dos 5 aos 11 anos. Saiu sem que, a meu ver, a sua
liderança, eficaz durante o seu exercício, tenha persistido na equipa
sucessora, meio eclipsada pela DGS.
A protelação da ascensão de Melo pelo
artificialismo presidencial de que ainda não tinha chegado o tempo oportuno e
que agora chegara pelo advento das novas leis orgânicas só fez aumentar as
deslocações de Melo país e multiplicar as mostras de apreço e popularidade, bem
como as suas contradições e ambições e as intromissões abusivas sobre o seu
percurso militar, como insinua em artigo no DN
Joana Amaral Dias, esquecendo que nunca o vice-almirante fora condenado nem em processo
disciplinar nem em processo judicial.
Portanto, não é o Governo que se está
a aproveitar da popularidade de Melo nem é por ia das eleições, pois já o
queria promover em março passado e sobretudo em setembro. Também não se pode
acusar o Governo ou o PR de vindicta pelo facto de Calado ter discordado da
nova LOBOFA, pois o CEME também discordou e foi reconduzido e o CEMFA (Chefe do Estado Maior da Força Aérea), que também discordou, mantém-se no
cargo.
Segundo a LOBOFA, se o PR rejeitar o
nome proposto pelo Governo, compete a este encontrar outro nome, pelo que, não
tendo o PR rejeitado o nome de Melo, mas apenas o tempo em que foi proposto, o
Governo, embora o pudesse ter feito, não tinha que manter a situação presente nem
que procurar outo nome. Assim, o que faltou ao Governo foi explicar estas
coisas tintim por tintim e britar todo este imbróglio artificial. De resto, se
Calado foi a Belém ou não pouco interessa. Nem é nisto que este Governo, como
os demais desde início da década de 90, têm desrespeitado e desvalorizado as
Forças Armadas, sabendo-se que a missão de um militar, pelo empenho e esforço que
exige, tem de ter sempre curta duração em nome da eficácia.
Cinco anos como CEMGFA ou como chefe
de ramo é tempo a mais.
2021.12.27 – Louro de Carvalho
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