É o tema duma
cantata de Natal açoriana de que se cantava um belo trecho no Seminário Maior de
Lamego, na década de 70 do século XX, pospondo a qualificação de “mistério do amor” a este facto
aparentemente tão singelo “Em meio do silêncio o Verbo Se
encarnou”.
Não sei se
inspirado nesta espiritualidade, o Venerando Bispo do Porto, que chegou a
frequentar o dito Seminário, mimou os seus diocesanos com uma mensagem de Natal
em torno do tema “O
silêncio comunicativo, fixando-se no silêncio que emoldura a cena do presépio, “tão cantada pelos poetas e
recriada pelos artistas”, como fonte de inspiração de nossos sonhos e
vivências, “mais que todas as enciclopédias”.
Vincando
que ali tudo é silêncio, o prelado da Invicta observa que o Evangelho não refere
uma única frase de Maria, mostra José na habitual meditação, apresenta os Anjos
a cantar junto dos pastores, sugere que “os animais ruminam e contemplam” e não
consta que o Menino esboce um gemido. Porém, esse silêncio é eloquente: Maria
garante a necessidade de nos situarmos do lado de Deus; José testemunha a
grandeza da ternura, acolhimento e criatividade na função paterna; os Anjos
antecipam o tema da pregação de Jesus no sentido de que a pessoa se realiza
celebrando o louvor de Deus e construindo a fraternidade universal; os animais
representam a harmonia cósmica e o respeito pela criação; e o Menino surge sereno
como o Amor despojado, baixando ao nosso nível para que, pobres com o Pobre,
melhor estabeleçamos diálogo.
Por consequência e como “condição de verdadeira sinodalidade”,
Dom Manuel Linda sustenta que será “num certo recolhimento operativo e fecundo
que criaremos as condições para darmos voz ao vizinho que nos fala do que ele
mesmo espera da Igreja neste III milénio e sentirmos o sopro do Espírito que
nos move ao discernimento das atitudes a adotar e dos caminhos a percorrer” – silêncio
reflexivo nosso para os outros poderem comunicar.
Neste contexto, recebemos a Boa Nova de que Deus não se cansa
de nós, nem nos acusa de egoísmo. Antes, a partir do nosso coração, guia a
história, interpelando a nossa liberdade, aproximando-nos dos pobres e
deserdados, comprometendo-nos com os descartados e sós, acalentando a esperança
de quantos procuram sentido para a vida, fazendo-nos cidadãos dum mundo mais
unido, dulcificando-nos o coração para experienciarmos o que é “ser família
biológica e humana”. Por isso, o Bispo diocesano quer que estes valores estejam
sempre na vida dos cristãos e pede a todos os de boa vontade que imitem,
o mais possível, o recolhimento, a harmonia, a ternura e a hospitalidade da
Família de Belém.
***
Em mensagem especial às pessoas da idade “dourada”, em que
pontificam as recordações, evoca o tempo em que perguntava à avó paterna “donde
vem o frio” ou “como é que as estrelas se seguram e não caem”, sentindo, como
então, que a maior alegria que se pode dar a estas pessoas é a companhia dos
seus. Pensa em quem vive em lares e casas de repouso, ansiando pelo reencontro
com filhos, netos e bisnetos, sendo o Natal a data mais esperada, para sublinhar
as privações que este longo tempo de pandemia exige quase nos vedando o uso da “riqueza
maior e que mais apreciamos: a expressão dos afetos que aquece a alma, os
afagos de mãos que retiram todas as dores dos ossos, o beijo que diminui 20 ou
30 anos na idade, o sorriso que espevita a fogueira do amor e acende a da
esperança”. A pari, aponta a
esperança que reanima, pois Deus “deu inteligência e determinação a tantos que
estudaram, prepararam, testaram, produziram e lançaram as vacinas no mercado”,
pelo que, em breve, começaremos o processo da “imunidade de grupo” e “poderemos
voltar aos afetos, às carícias, aos encontros”.
Neste clima o prelado estabelece a mutualidade orante: reza
por estas pessoas, as quais, por sua vez, rezarão por ele. E, centrando a
mensagem em Jesus, o único Salvador do mundo, destaca a pobreza extrema e
desconfortável do primeiro Natal, vincando a união de tantos para nada faltar: pastores
trazem o que têm, vêm os vizinhos e ajudam, vêm reis do Oriente e oferecem “grandes
presentes”. Assim, “o projeto de Deus cumpriu-se: o Menino cresceu e um mundo
novo começou”. Por isso, é justo desejar a todos “um Natal feliz e
abençoado”.
***
O mesmo Bispo
portuense, na homilia da Solenidade do Natal, centrada na verdade “o mistério da Encarnação, base da fé e da
Igreja”, proclamou o grande anúncio que perpassa o mundo
cristão: “no Seu Filho Jesus, Deus Se fez Homem e habitou entre nós”. Chama-lhe
“um mistério fundante”, porque “sem Encarnação” ou “sem verdadeiro Deus e verdadeiro homem, não haveria Páscoa”,
nem Salvação, nem Igreja.
Tendo em conta que na linguagem
referencial, “típica da mentalidade científica e jornalística”, anunciar que
Jesus nasceu não suscita grande emoção, recorre à linguagem litúrgica,
oracional e cantoral, bíblica e do coração exultante, dos gestos de ternura,
para acolher e proclamar o pregão que “anuncia a grande boa notícia da
libertação do cativeiro: ‘O Senhor é a origem da
consolação do seu povo […] e todos os confins da terra verão a salvação do
nosso Deus’.”.
Dito em forma neotestamentária, o Menino
que nasceu revela-nos o Pai e aproxima-nos d’Ele. É “a única e definitiva
Palavra de Deus que garante que o Pai nos ama e se preocupa com cada um de nós”.
Como Palavra de Deus, é palavra de salvação, não de condenação a jeito dos
profetas da desgraça. Como Verbo de Deus, transmite aos homens o desígnio do
Pai “de fazer de nós seus filhos”. Por isso, Jesus garantiria: “O meu Pai é também vosso Pai” (Jo 20,17).
O mistério da Encarnação contém implícitas
as coordenadas da fé. Antes de mais, sobressai o movimento “descendente”, isto
é, Deus vem ao nosso encontro porque o Seu deleite “é habitar com a humanidade
que criou por amor e sustenta com o mesmo amor” (cf Pr 8,31); e advém o movimento “ascendente”, que
leva a pessoa “a subir ao encontro do Amor que se lhe dirige, a abrir-Lhe o
coração e deixar que lá faça morada”. Porém, a pessoa, pela graça da liberdade,
pode aceitar ou recusar este impulso. Assim, o Evangelho anota que “Veio ao que era seu, mas os seus não O receberam” (“eis tà ídia êlthen, kaì hoi ídioi
autòn ou parélabon”: Jo1,11), mas, ao invés, muitíssimos “apostamos n’Ele totalmente, sem exclusões e
até ao martírio”. Com efeito, o Evangelho exalta “os efeitos da abertura do
coração a esta Luz: ‘Àqueles que O receberam e acreditaram no seu
nome, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus’.” (“hósoi dè élabon autón, édõken
autoîs exousían tékna Theoû genésthai, toîs pisteúousin eis tò ónoma autoû”:
Jo 1,12). É o que o Bispo chama
de movimento “comunitário”, gerado da seiva fértil dos que se enxertaram no
Senhor pela fé e pelo Batismo.
Os pessimistas dizem que predominam sobre os
que a aceitam os que recusam a Luz. E o prelado, verificando que “há motivos de
preocupação”, até pelo ridículo de se querer apagar a história com a não
pronúncia do nome ‘Natal’ ou excluir da simbólica das cidades tudo o que se
refere ao presépio, evidencia as inúmeras oportunidades que este momento
encerra. Na verdade, se “o nosso mundo asfixia por falta de uma verdade
mobilizadora” e a sociedade se fratura “à base de um liberalismo individual e
materialístico”, esta “é a hora da fé”, “a hora de, em contexto sinodal,
discernir o que o Espírito Santo pede à Igreja para ser mais fiel ao plano
original do seu Fundador e se tornar instrumento de missão e de evangelização
ou de resposta à carência de sentido deste momento”. Para tanto, na ótica do
Bispo, importa revalorizar três âmbitos da fé no mistério do Natal; o Verbo de
Deus fez-Se história para que a história se nutra mais da vida divina; Jesus é
o centro da história, que não se constrói do presente para o passado, mas no
rumo que o Messias lhe inculcou, isto é, “um futuro não repetidor das tragédias
e desumanidades já experimentadas”; e a história tem entusiasmante e belo sentido,
“não pelo poder das nossas realizações técnicas, sempre falíveis, mas porque o
seu Autor lhe inculcou a direção de nos sentirmos filhos do Pai comum” e “de
edificadores da fraternidade universal”.
Assim, o Natal é “dom” e “tarefa”: dom da
ternura de Deus que nos ama e Se faz próximo de cada um assumindo a nossa
natureza, dores e ânsias; e tarefa “de realizarmos a verdadeira experiência de
Deus a ponto de dizermos: “Nós vimos a sua glória”,
bem como “de, no Filho, construirmos intimidade com o Pai, já que ‘a Deus, nunca ninguém O viu”,
porem, ‘O Filho Unigénito, que está no seio do Pai, é que O deu a conhecer’.
E, assegurando que “ser Igreja passa por
aqui”, o Bispo do Porto deseja a todos “feliz Natal”, mas pensa especialmente
em quantos experienciam mais agudamente as debilidades inerentes à nossa
natureza, como o Menino as experienciou, no presépio, durante a vida e no
Calvário, a saber: “hospitalizados e detidos, doentes e isolados, desanimados e
tristes, desavindos e os que não puderam reunir a família, sós e abandonados,
pobres e desempregados, sem-abrigo e marginalizados, migrantes e refugiados,
enfim, quantos suportamos a angústia desta pandemia que nos faz sofrer, mas não
pode roubar a esperança”. E quer de todos “a certeza de que o Senhor Jesus não
desconhece nada do que é humano e encarnou para estar ao nosso lado e partilhar
as nossas dores”, dar-nos a mão “para nos fazer levantar e um ombro de apoio
para não mais permanecermos prostrados no caminho”.
***
Não é lícito continuar
ou encerrar esta reflexão natalina sem a merecida referência à mensagem de
Francisco prévia à bênção Urbi et Orbi deste dia de Natal.
Frisando que “a Palavra de Deus, que
criou o mundo e dá sentido à história e ao caminho do homem”, Se fez carne e “veio
habitar entre nós”, anota que “apareceu como um sussurro” ou “o murmúrio duma
brisa ligeira, deixando cheio de maravilha o coração de todo o homem e mulher
que se abre ao mistério”. E diz que “o Verbo fez-Se carne para dialogar
connosco”, pois “Deus não quer construir um monólogo”, já que “o próprio Deus,
Pai e Filho e Espírito Santo, é diálogo, comunhão eterna e infinita de amor e
de vida”. Por isso, o Natal do Verbo encarnado é Deus a mostrar-nos “a via do
encontro e do diálogo”, porque “Ele próprio encarnou em Si mesmo esta Via para a
podermos conhecer e percorrer com confiança e esperança”.
Não
obstante, o Pontífice regista, a par do “anúncio do nascimento do Salvador,
fonte da verdadeira paz”, os muitos e quase infindos “conflitos, crises e
contradições”, cuja habituação nos opõe em risco “de não ouvir o grito de dor e
desespero de tantos irmãos e irmãs nossos”.
Destaca
o sofrimento do povo sírio, em conflito de mais de uma década; do Iraque, a levantar-se
de longo conflito; das crianças do Iémen, onde a tragédia se consuma provocando
mortes todos os dias; dos israelitas e palestinenses, em contínuas tensões, de graves
consequências sociais e políticas. Não esquece Belém, lugar do nascimento de
Jesus, a viver tempos difíceis até pelas dificuldades económicas resultantes da
pandemia que impede os peregrinos de acederem à Terra Santa, com consequências
negativas na vida da população; e o Líbano, que padece inédita crise de preocupantes
condições socioeconómicas.
Em
contraponto, o coração da noite releva o sinal de esperança: “o amor que move o
sol e as de mais estrelas (Dante, Paraíso, XXXIII, 145) faz-Se carne. Vem em
forma humana partilhar os nossos dramas e romper o muro da indiferença; estende
os braços para nós: “tem necessidade de tudo, mas vem para nos dar tudo”,
nomeadamente a força de nos abrirmos ao diálogo, pelo que Lhe rogamos
suscite, no coração de todos, “anseios de reconciliação e fraternidade”.
Assim,
o Papa implora, em estilo orante, ao Príncipe da Paz e Rei dos Povos, paz e
concórdia para o Médio Oriente e o mundo inteiro; amparo a quantos estão
empenhados na assistência humanitária às populações forçadas a fugir da sua pátria;
conforto ao povo afegão, submetido a dura prova por conflitos; ajuda às autoridades
políticas na pacificação das sociedades abaladas por tensões e contrastes;
sustento do povo da Myanmar, onde intolerância e violência se abatem; luz e
amparo para quem “crê e trabalha em prol do encontro e do diálogo”; não proliferação
das metástases dum conflito gangrenado na Ucrânia; descoberta da via da reconciliação
e da paz na Etiópia; escuta do clamor das populações da região do Sahel, a
sofrer a violência do terrorismo internacional; olhar compassivo para o Norte
de África, atribulado pelas divisões, desemprego e desnível económico; alívio do
sofrimento dos irmãos e irmãs do Sudão e do Sudão do Sul; e a prevalência, no
continente americano, dos “valores da solidariedade, reconciliação e pacífica convivência,
através do diálogo, do respeito mútuo e do reconhecimento dos direitos e
valores culturais de todos os seres humanos”.
E
Francisco prossegue no seu jeito orante pedindo ao Filho de Deus e
Deus-connosco conforto para as mulheres vítimas da violência a aumentar em tempo
de pandemia; esperança para as crianças e adolescentes vítimas do bullying e de
abusos; consolação e carinho para os idosos; serenidade e unidade às famílias,
lugar primário da educação e base do tecido social; saúde para os doentes e
inspiração para todas as pessoas de boa vontade no encontro das soluções mais
adequadas para superar a crise sanitária e as suas consequências; generosidade
para os corações fazerem chegar os tratamentos necessários às populações mais
necessitadas; e recompensa para os solícitos e dedicados no cuidado dos
familiares, dos doentes e dos mais fragilizados.
Quer,
ainda, o Papa do Menino de Belém e Verbo Encarnado, o regresso a casa dos
prisioneiros de guerra e dos presos por motivos políticos; a demolição da
indiferença face ao drama dos migrantes, deslocados e refugiados; a solicitude
de todos pela Casa comum, que enferma do descuido com que a tratamos; e o
incitamento às autoridades políticas para que encontrem acordos tão eficazes
que possam as próximas gerações viver num ambiente respeitoso da vida.
***
Em
suma, partindo do silêncio comunicativo (Manuel Linda) ou do maravilhoso sussurro ou murmúrio da
brisa ligeira (Francisco) e salientando a pequenez
do nosso Deus do Natal, sentimos as dificuldades hodiernas, mas refulge a
esperança como entidade mais forte e mobilizadora.
Muitas
são as dificuldades do nosso tempo, mas a esperança é mais forte, porque “um
menino nasceu para nós” (Is 9,5), a Palavra de Deus que
Se fez “in-fante” (o que não fala), capaz de chorar e necessitado de tudo, querendo aprender a
falar, como nós, “para nós aprendermos a escutar Deus, nosso Pai, a escutar-nos
uns aos outros e a dialogar como irmãos e irmãs”.
2021.12.25 – Louro de Carvalho
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