domingo, 26 de dezembro de 2021

Em meio do silêncio o Verbo Se encarnou

 

É o tema duma cantata de Natal açoriana de que se cantava um belo trecho no Seminário Maior de Lamego, na década de 70 do século XX, pospondo a qualificação de “mistério do amor” a este facto aparentemente tão singelo “Em meio do silêncio o Verbo Se encarnou”.

Não sei se inspirado nesta espiritualidade, o Venerando Bispo do Porto, que chegou a frequentar o dito Seminário, mimou os seus diocesanos com uma mensagem de Natal em torno do tema “O silêncio comunicativo, fixando-se no silêncio que emoldura a cena do presépio, “tão cantada pelos poetas e recriada pelos artistas”, como fonte de inspiração de nossos sonhos e vivências, “mais que todas as enciclopédias”.

Vincando que ali tudo é silêncio, o prelado da Invicta observa que o Evangelho não refere uma única frase de Maria, mostra José na habitual meditação, apresenta os Anjos a cantar junto dos pastores, sugere que “os animais ruminam e contemplam” e não consta que o Menino esboce um gemido. Porém, esse silêncio é eloquente: Maria garante a necessidade de nos situarmos do lado de Deus; José testemunha a grandeza da ternura, acolhimento e criatividade na função paterna; os Anjos antecipam o tema da pregação de Jesus no sentido de que a pessoa se realiza celebrando o louvor de Deus e construindo a fraternidade universal; os animais representam a harmonia cósmica e o respeito pela criação; e o Menino surge sereno como o Amor despojado, baixando ao nosso nível para que, pobres com o Pobre, melhor estabeleçamos diálogo.

Por consequência e como “condição de verdadeira sinodalidade”, Dom Manuel Linda sustenta que será “num certo recolhimento operativo e fecundo que criaremos as condições para darmos voz ao vizinho que nos fala do que ele mesmo espera da Igreja neste III milénio e sentirmos o sopro do Espírito que nos move ao discernimento das atitudes a adotar e dos caminhos a percorrer” – silêncio reflexivo nosso para os outros poderem comunicar.

Neste contexto, recebemos a Boa Nova de que Deus não se cansa de nós, nem nos acusa de egoísmo. Antes, a partir do nosso coração, guia a história, interpelando a nossa liberdade, aproximando-nos dos pobres e deserdados, comprometendo-nos com os descartados e sós, acalentando a esperança de quantos procuram sentido para a vida, fazendo-nos cidadãos dum mundo mais unido, dulcificando-nos o coração para experienciarmos o que é “ser família biológica e humana”. Por isso, o Bispo diocesano quer que estes valores estejam sempre na vida dos cristãos e pede a todos os de boa vontade que imitem, o mais possível, o recolhimento, a harmonia, a ternura e a hospitalidade da Família de Belém.

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Em mensagem especial às pessoas da idade “dourada”, em que pontificam as recordações, evoca o tempo em que perguntava à avó paterna “donde vem o frio” ou “como é que as estrelas se seguram e não caem”, sentindo, como então, que a maior alegria que se pode dar a estas pessoas é a companhia dos seus. Pensa em quem vive em lares e casas de repouso, ansiando pelo reencontro com filhos, netos e bisnetos, sendo o Natal a data mais esperada, para sublinhar as privações que este longo tempo de pandemia exige quase nos vedando o uso da “riqueza maior e que mais apreciamos: a expressão dos afetos que aquece a alma, os afagos de mãos que retiram todas as dores dos ossos, o beijo que diminui 20 ou 30 anos na idade, o sorriso que espevita a fogueira do amor e acende a da esperança”. A pari, aponta a esperança que reanima, pois Deus “deu inteligência e determinação a tantos que estudaram, prepararam, testaram, produziram e lançaram as vacinas no mercado”, pelo que, em breve, começaremos o processo da “imunidade de grupo” e “poderemos voltar aos afetos, às carícias, aos encontros”.

Neste clima o prelado estabelece a mutualidade orante: reza por estas pessoas, as quais, por sua vez, rezarão por ele. E, centrando a mensagem em Jesus, o único Salvador do mundo, destaca a pobreza extrema e desconfortável do primeiro Natal, vincando a união de tantos para nada faltar: pastores trazem o que têm, vêm os vizinhos e ajudam, vêm reis do Oriente e oferecem “grandes presentes”. Assim, “o projeto de Deus cumpriu-se: o Menino cresceu e um mundo novo começou”. Por isso, é justo desejar a todos “um Natal feliz e abençoado”.

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O mesmo Bispo portuense, na homilia da Solenidade do Natal, centrada na verdade “o mistério da Encarnação, base da fé e da Igreja, proclamou o grande anúncio que perpassa o mundo cristão: “no Seu Filho Jesus, Deus Se fez Homem e habitou entre nós”. Chama-lhe “um mistério fundante”, porque “sem Encarnação” ou “sem verdadeiro Deus e verdadeiro homem, não haveria Páscoa”, nem Salvação, nem Igreja.

Tendo em conta que na linguagem referencial, “típica da mentalidade científica e jornalística”, anunciar que Jesus nasceu não suscita grande emoção, recorre à linguagem litúrgica, oracional e cantoral, bíblica e do coração exultante, dos gestos de ternura, para acolher e proclamar o pregão que “anuncia a grande boa notícia da libertação do cativeiro: ‘O Senhor é a origem da consolação do seu povo […] e todos os confins da terra verão a salvação do nosso Deus’.”.

Dito em forma neotestamentária, o Menino que nasceu revela-nos o Pai e aproxima-nos d’Ele. É “a única e definitiva Palavra de Deus que garante que o Pai nos ama e se preocupa com cada um de nós”. Como Palavra de Deus, é palavra de salvação, não de condenação a jeito dos profetas da desgraça. Como Verbo de Deus, transmite aos homens o desígnio do Pai “de fazer de nós seus filhos”. Por isso, Jesus garantiria: “O meu Pai é também vosso Pai(Jo 20,17).

O mistério da Encarnação contém implícitas as coordenadas da fé. Antes de mais, sobressai o movimento “descendente”, isto é, Deus vem ao nosso encontro porque o Seu deleite “é habitar com a humanidade que criou por amor e sustenta com o mesmo amor” (cf Pr 8,31); e advém o movimento “ascendente”, que leva a pessoa “a subir ao encontro do Amor que se lhe dirige, a abrir-Lhe o coração e deixar que lá faça morada”. Porém, a pessoa, pela graça da liberdade, pode aceitar ou recusar este impulso. Assim, o Evangelho anota que “Veio ao que era seu, mas os seus não O receberam(“eis tà ídia êlthen, kaì hoi ídioi autòn ou parélabon”: Jo1,11), mas, ao invés, muitíssimos “apostamos n’Ele totalmente, sem exclusões e até ao martírio”. Com efeito, o Evangelho exalta “os efeitos da abertura do coração a esta Luz: ‘Àqueles que O receberam e acreditaram no seu nome, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus’.(“hósoi dè élabon autón, édõken autoîs exousían tékna Theoû genésthai, toîs pisteúousin eis tò ónoma autoû”: Jo 1,12). É o que o Bispo chama de movimento “comunitário”, gerado da seiva fértil dos que se enxertaram no Senhor pela fé e pelo Batismo.

Os pessimistas dizem que predominam sobre os que a aceitam os que recusam a Luz. E o prelado, verificando que “há motivos de preocupação”, até pelo ridículo de se querer apagar a história com a não pronúncia do nome ‘Natal’ ou excluir da simbólica das cidades tudo o que se refere ao presépio, evidencia as inúmeras oportunidades que este momento encerra. Na verdade, se “o nosso mundo asfixia por falta de uma verdade mobilizadora” e a sociedade se fratura “à base de um liberalismo individual e materialístico”, esta “é a hora da fé”, “a hora de, em contexto sinodal, discernir o que o Espírito Santo pede à Igreja para ser mais fiel ao plano original do seu Fundador e se tornar instrumento de missão e de evangelização ou de resposta à carência de sentido deste momento”. Para tanto, na ótica do Bispo, importa revalorizar três âmbitos da fé no mistério do Natal; o Verbo de Deus fez-Se história para que a história se nutra mais da vida divina; Jesus é o centro da história, que não se constrói do presente para o passado, mas no rumo que o Messias lhe inculcou, isto é, “um futuro não repetidor das tragédias e desumanidades já experimentadas”; e a história tem entusiasmante e belo sentido, “não pelo poder das nossas realizações técnicas, sempre falíveis, mas porque o seu Autor lhe inculcou a direção de nos sentirmos filhos do Pai comum” e “de edificadores da fraternidade universal”.

Assim, o Natal é “dom” e “tarefa”: dom da ternura de Deus que nos ama e Se faz próximo de cada um assumindo a nossa natureza, dores e ânsias; e tarefa “de realizarmos a verdadeira experiência de Deus a ponto de dizermos: “Nós vimos a sua glória”, bem como “de, no Filho, construirmos intimidade com o Pai, já que ‘a Deus, nunca ninguém O viu”, porem, ‘O Filho Unigénito, que está no seio do Pai, é que O deu a conhecer’.

E, assegurando que “ser Igreja passa por aqui”, o Bispo do Porto deseja a todos “feliz Natal”, mas pensa especialmente em quantos experienciam mais agudamente as debilidades inerentes à nossa natureza, como o Menino as experienciou, no presépio, durante a vida e no Calvário, a saber: “hospitalizados e detidos, doentes e isolados, desanimados e tristes, desavindos e os que não puderam reunir a família, sós e abandonados, pobres e desempregados, sem-abrigo e marginalizados, migrantes e refugiados, enfim, quantos suportamos a angústia desta pandemia que nos faz sofrer, mas não pode roubar a esperança”. E quer de todos “a certeza de que o Senhor Jesus não desconhece nada do que é humano e encarnou para estar ao nosso lado e partilhar as nossas dores”, dar-nos a mão “para nos fazer levantar e um ombro de apoio para não mais permanecermos prostrados no caminho”.

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Não é lícito continuar ou encerrar esta reflexão natalina sem a merecida referência à mensagem de Francisco prévia à bênção Urbi et Orbi deste dia de Natal.  

Frisando que “a Palavra de Deus, que criou o mundo e dá sentido à história e ao caminho do homem”, Se fez carne e “veio habitar entre nós”, anota que “apareceu como um sussurro” ou “o murmúrio duma brisa ligeira, deixando cheio de maravilha o coração de todo o homem e mulher que se abre ao mistério”. E diz que “o Verbo fez-Se carne para dialogar connosco”, pois “Deus não quer construir um monólogo”, já que “o próprio Deus, Pai e Filho e Espírito Santo, é diálogo, comunhão eterna e infinita de amor e de vida”. Por isso, o Natal do Verbo encarnado é Deus a mostrar-nos “a via do encontro e do diálogo”, porque “Ele próprio encarnou em Si mesmo esta Via para a podermos conhecer e percorrer com confiança e esperança”.

Não obstante, o Pontífice regista, a par do “anúncio do nascimento do Salvador, fonte da verdadeira paz”, os muitos e quase infindos “conflitos, crises e contradições”, cuja habituação nos opõe em risco “de não ouvir o grito de dor e desespero de tantos irmãos e irmãs nossos”.

Destaca o sofrimento do povo sírio, em conflito de mais de uma década; do Iraque, a levantar-se de longo conflito; das crianças do Iémen, onde a tragédia se consuma provocando mortes todos os dias; dos israelitas e palestinenses, em contínuas tensões, de graves consequências sociais e políticas. Não esquece Belém, lugar do nascimento de Jesus, a viver tempos difíceis até pelas dificuldades económicas resultantes da pandemia que impede os peregrinos de acederem à Terra Santa, com consequências negativas na vida da população; e o Líbano, que padece inédita crise de preocupantes condições socioeconómicas.

Em contraponto, o coração da noite releva o sinal de esperança: “o amor que move o sol e as de mais estrelas (Dante, Paraíso, XXXIII, 145) faz-Se carne. Vem em forma humana partilhar os nossos dramas e romper o muro da indiferença; estende os braços para nós: “tem necessidade de tudo, mas vem para nos dar tudo”, nomeadamente a força de nos abrirmos ao diálogo, pelo que Lhe rogamos suscite, no coração de todos, “anseios de reconciliação e fraternidade”.

Assim, o Papa implora, em estilo orante, ao Príncipe da Paz e Rei dos Povos, paz e concórdia para o Médio Oriente e o mundo inteiro; amparo a quantos estão empenhados na assistência humanitária às populações forçadas a fugir da sua pátria; conforto ao povo afegão, submetido a dura prova por conflitos; ajuda às autoridades políticas na pacificação das sociedades abaladas por tensões e contrastes; sustento do povo da Myanmar, onde intolerância e violência se abatem; luz e amparo para quem “crê e trabalha em prol do encontro e do diálogo”; não proliferação das metástases dum conflito gangrenado na Ucrânia; descoberta da via da reconciliação e da paz na Etiópia; escuta do clamor das populações da região do Sahel, a sofrer a violência do terrorismo internacional; olhar compassivo para o Norte de África, atribulado pelas divisões, desemprego e desnível económico; alívio do sofrimento dos irmãos e irmãs do Sudão e do Sudão do Sul; e a prevalência, no continente americano, dos “valores da solidariedade, reconciliação e pacífica convivência, através do diálogo, do respeito mútuo e do reconhecimento dos direitos e valores culturais de todos os seres humanos”.

E Francisco prossegue no seu jeito orante pedindo ao Filho de Deus e Deus-connosco conforto para as mulheres vítimas da violência a aumentar em tempo de pandemia; esperança para as crianças e adolescentes vítimas do bullying e de abusos; consolação e carinho para os idosos; serenidade e unidade às famílias, lugar primário da educação e base do tecido social; saúde para os doentes e inspiração para todas as pessoas de boa vontade no encontro das soluções mais adequadas para superar a crise sanitária e as suas consequências; generosidade para os corações fazerem chegar os tratamentos necessários às populações mais necessitadas; e recompensa para os solícitos e dedicados no cuidado dos familiares, dos doentes e dos mais fragilizados.

Quer, ainda, o Papa do Menino de Belém e Verbo Encarnado, o regresso a casa dos prisioneiros de guerra e dos presos por motivos políticos; a demolição da indiferença face ao drama dos migrantes, deslocados e refugiados; a solicitude de todos pela Casa comum, que enferma do descuido com que a tratamos; e o incitamento às autoridades políticas para que encontrem acordos tão eficazes que possam as próximas gerações viver num ambiente respeitoso da vida.

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Em suma, partindo do silêncio comunicativo (Manuel Linda) ou do maravilhoso sussurro ou murmúrio da brisa ligeira (Francisco) e salientando a pequenez do nosso Deus do Natal, sentimos as dificuldades hodiernas, mas refulge a esperança como entidade mais forte e mobilizadora.

Muitas são as dificuldades do nosso tempo, mas a esperança é mais forte, porque “um menino nasceu para nós” (Is 9,5), a Palavra de Deus que Se fez “in-fante” (o que não fala), capaz de chorar e necessitado de tudo, querendo aprender a falar, como nós, “para nós aprendermos a escutar Deus, nosso Pai, a escutar-nos uns aos outros e a dialogar como irmãos e irmãs”.

2021.12.25 – Louro de Carvalho

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