Decorre do
suposto programa de governação do Partido Socialista, caso ganhe as eleições
legislativas do próximo dia 30 de janeiro de 2022, pôr a referendo o tema da
instituição da regionalização em concreto em 2024. E o XXV Congresso da
Associação Nacional de Municípios (ANMP), que elegeu para presidente daquela associação uma mulher na pessoa de
Luísa Salgueiro, Presidente da Câmara Municipal de Matosinhos – no dizer de
Pedro Vaz no jornal “I”, uma excelente
representante de toda uma nova geração de autarcas locais –, levou a que o tema
da regionalização, que estava em banho-maria, ofuscado pelas baratas e pouco
eficazes medidas de descentralização, reentrasse na agenda política.
Rui Rio, depois de, Congresso da ANMP, em Aveiro, o
Primeiro-Ministro ter apontado 2024 como a altura em que será dada “voz ao
povo” sobre a regionalização, repetiu as posições que tem afirmado enquanto
líder do PSD, fazendo depender a sua posição da forma como esta for
concretizada. Também o
Presidente da República (PR), que forçou
a inclusão do referendo da regionalização na revisão constitucional de 1998 e
liderou a campanha pelo não no ato referendário de 8 de novembro de 1998, abriu
agora a porta à realização de novo referendo à regionalização em 2024. Rio, que foi contra
a regionalização no referendo de 1998, admitiu que poderá evoluir na sua
posição, até porque o país “ficou pior”. Reconhece que “Portugal está cada vez
mais centralizado, o interior cada vez mais desertificado”, pelo que tem hoje
“uma posição diferente” com “abertura à regionalização”, mas não de qualquer
maneira. E o PR afirmou, na tarde do dia 12, que vai convocar
o referendo à regionalização, em 2024, caso a Assembleia da República (AR) o proponha.
Pela primeira vez, põe-se do lado da regionalização considerando-a “um serviço
inestimável a Portugal”, desde que seja feita com “visão, sensatez e consenso nacional”.
Já lá vai o
ano de 1998 em que Marcelo, presidente do PSD, liderou a campanha pelo “não” no
referendo à regionalização que os portugueses rejeitaram. Desta feita, o mesmo
Marcelo, agora PR, disse que a regionalização pode ser boa. Porém, ressalva a
necessidade de o processo ser desejado pelos portugueses em referendo e de
cumprir mais três condições: visão, sensatez e consenso nacional. Sendo assim,
“será um serviço inestimável a Portugal”. Ao invés, como adverte, uma
regionalização “mal concebida, mal explicada, mal concretizada, isto é, sem
visão, sensatez e consenso nacional, será matar a ideia de regionalização e
dará força aos centralismos, aos populismos, aos temores e aos adversários da
regionalização. E, vincando que o referendo tem de ser proposto pela AR e só
depois promovido pelo PR, garantiu que “só em circunstâncias muito excecionais”
deixaria de marcar o referendo para 2024. Para já a data, aventada por Costa no
primeiro dia de congresso da ANMP, é do agrado do Presidente da República, que
disse:
“Direi apenas que me parece de
meridiano bom senso deixar a pandemia ir passando e iniciar a aplicação do PRR
nos anos cruciais de 2022 e 2023, aproveitando para debater o tema e definir o
estatuto e o mapa, deixando para 2024 o referendo, se for esse o caso, e
ponderando em 2024 como conjugar o processo com as eleições europeias previstas
esse ano”.
Depois de
lembrar que os congressistas “ficaram a saber a posição do partido do Governo”
com o discurso de Costa no dia 11, Marcelo disse que “falta conhecer a visão
dos demais partidos sobre esse calendário”. Por isso, desafiou-os a “submeterem
à apreciação dos portugueses as suas convicções e as suas ideias sobre a regionalização,
processo e calendário”, no próximo mês e meio de campanha e pré-campanha até às
eleições legislativas de 30 de janeiro.
E os
presidentes de câmara aprovaram, no dia 12, sem votos contra, com cerca de 20
abstenções e muitos aplausos no final, uma resolução que pugna pela
regionalização “urgente” em Portugal. Tal resolução é o documento oficial que
resulta dos trabalhos do XXV Congresso da ANMP.
***
Parece que
os decisores políticos andam a brincar com a regionalização. Isto para não
inferir que a andaram a protelar para defesa dos interesses instalados, defesa
que talvez agora esteja inatacável, pressuposto que um referendo confirmará ou
desmentirá.
O desígnio
da regionalização do país já tem barbas. Na verdade, logo em 1976 o texto da
Constituição (CRP) consagra, no capítulo IV, o
estabelecimento das “regiões administrativas” estipulando o art.º 256.º que “as
regiões serão instituídas simultaneamente, podendo o estatuto regional
estabelecer diferenciações quanto ao regime aplicável a cada uma” (n.º 1); “a área das regiões deverá corresponder às regiões-plano” (n.º
2), como definido no
art.º 95.º; “a instituição concreta de
cada região dependerá do voto favorável da maioria das assembleias municipais
que representem a maior parte da população da área regional” (n.º
3).
Depois, os
artigos 257.º a 263.º definem as competências (participação na
elaboração e execução do plano regional, tarefas de coordenação e apoio à ação
dos municípios e direção de serviços públicos), os órgãos (assembleia regional, junta regional, conselho
regional e representante do Governo) e
subsistência da divisão distrital enquanto as regiões não estiverem instituídas
(havendo
no distrito, em termos a definir por lei, a assembleia deliberativa, composta por
representantes dos municípios e presidida pelo governador civil, o qual,
assistido por um conselho, representa o Governo e exerce os poderes de tutela
na área do distrito).
Mais
estipula o articulado que “a assembleia regional compreenderá, além dos
representantes eleitos diretamente pelos cidadãos, membros eleitos pelas
assembleias municipais, em número inferior ao daqueles” (art.º
259.º); “a junta regional é
o órgão colegial executivo da região e será eleita, por escrutínio secreto,
pela assembleia regional de entre os seus membros” (art.º 260.º); “o conselho regional é o órgão consultivo da região e a sua composição
será definida pela lei, de modo a garantir a adequada representação às
organizações culturais, sociais, económicas e profissionais existentes na
respetiva área” (art.º 261.º); e o representante do Governo,
que não é propriamente órgão da região, é “nomeado em Conselho de Ministros” e
a sua competência exerce-se “igualmente junto das autarquias existentes na área
respetiva” (art.º 262.º).
Não
obstante, a reforma da regionalização tem vindo a ser sucessivamente adiada
pelos vários governos de diferentes cores políticas que se sucederam.
A partir de
meados da década de 1990, a discussão em torno da regionalização
intensificou-se, tendo-se chegado à conclusão de que era necessário e urgente
pôr em marcha o processo de regionalização do Continente. Assim, já
em 1991, durante o governo de Cavaco Silva, foi
aprovada a Lei-quadro das Regiões Administrativas (Lei n.º
56/91, de 21 de agosto), que define
os órgãos de poder a criar em cada região (junta regional e assembleia
regional), as
respetivas competências e atribuições, a forma como as regiões são instituídas
e o regime eleitoral das regiões, só não definindo o número de regiões a criar
e a sua delimitação. Nos anos seguintes, houve debate aceso sobre a delimitação
do mapa regional para o Continente. Porém, aquando da revisão constitucional
de 1997 (LC n.º
1/1997 de 20 de setembro), a
instituição em concreto das regiões passou obrigatoriamente a ser alvo de
referendo. Essa revisão (LC n.º 1/97 de 20 de setembro) introduz alterações, algumas delas substanciais, ao
capítulo IV da CRP, que se mantêm no texto atual, o da revisão constitucional
de 2005 (LC n.º
1/2005 de 12 de agosto).
Assim,
o artigo 255.º estabelece:
“As regiões administrativas são criadas simultaneamente por lei, a qual
define os respetivos poderes, a composição, a competência e o funcionamento dos
seus órgãos, podendo estabelecer diferenciações quanto ao regime aplicável a
cada uma”.
Mantém-se
a simultaneidade, bem como a diferenciação do regime aplicável a cada uma, mas
e exige-se lei que estabeleça a composição e o funcionamento dos órgãos.
Nos
termos do art.º 256.º, “a
instituição em concreto das regiões administrativas, com aprovação da lei de
instituição de cada uma delas, depende
da lei” prevista no art.º 255.º “e do
voto favorável expresso pela maioria dos cidadãos eleitores que se tenham
pronunciado em consulta direta, de alcance nacional e relativa a cada área
regional”. Porém, “quando a maioria
dos cidadãos eleitores participantes não se pronunciar favoravelmente em
relação a pergunta de alcance nacional sobre a instituição em concreto das
regiões administrativas, as respostas a perguntas que tenham tido lugar
relativas a cada região criada na lei não produzirão efeitos”. E as consultas
aos cidadãos eleitores “terão lugar nas
condições e nos termos estabelecidos em lei orgânica, por decisão do Presidente
da República, mediante proposta da Assembleia da República, aplicando-se, com
as devidas adaptações, o regime decorrente do artigo 115.º” (normas
sobre o referendo).
Enfim, têm de respeitar-se as consequências do referendo. E deixou a
instituição das regiões em concreto da posição das assembleias municipais. Por outro
lado, caiu a coincidência das regiões administrativas com as regiões-plano a
criar nos termos do art.º 95.º, que foi revogado aquando da revisão
constitucional de 1989 (LC n.º 1/89, de 8 de julho).
O art.º
257.º estipula, no quadro das atribuições das regiões administrativas, “designadamente,
a direção de serviços públicos e tarefas de coordenação e apoio à ação dos
municípios no respeito da autonomia destes e sem limitação dos respetivos
poderes”. Nestes
termos, a novidade consiste em barrar às regiões o desrespeito pela autonomia
dos municípios e a limitação dos poderes dos mesmos.
Por sua
vez e ainda no quadro das suas atribuições, o art.º 258.º estipula que “as regiões
administrativas elaboram planos regionais e participam na elaboração dos planos
nacionais”, o
que desmente o que parecia uma lacuna no art.º 257.º em relação ao texto
originário.
O art.º
259.º mantém como órgãos representativos regionais a assembleia regional e a junta.
Já o
art.º 260.º define a assembleia
regional como “o órgão deliberativo da
região”, constituído por membros eleitos diretamente e por membros, em
número inferior ao daqueles e acrescenta: “eleitos
pelo sistema da representação proporcional e o método da média mais alta de
Hondt, pelo colégio eleitoral formado pelos membros das assembleias municipais
da mesma área designados por eleição direta” – uma clarificação.
E o
art.º 261.º estabelece que “a
junta regional é o órgão executivo colegial da região”, nada dizendo sobre a
composição e forma de eleição, o que pressupõe remissão para a lei ordinária
Por seu
turno, o art. 262.º estabelece que “junto
de cada região pode haver um representante do Governo, nomeado em Conselho de
Ministros, cuja competência se exerce igualmente junto das autarquias existentes
na área respetiva”.
A inovação consiste na possibilidade da existência (facultativa) do representante do Governo, o
que até agora era obrigatório.
Por fim, é de referir que o texto
constitucional abandonou, já na revisão de 1982 (LC n.º 1/82, de
30 de setembro), a
subsistência dos distritos (bem como a assembleia distrital
presidida pelo Governador Civil)
enquanto as regiões não estiverem instituídas, o que deu azo a que Guterres
tenha proclamado que os primeiros governadores civis que nomeou seriam os
últimos e que Passos tenha abolido o Governo Civil entregando as suas funções
às câmaras municipais, mas mantendo o distrito, embora sem liderança.
Ao abrigo do
novo ordenamento constitucional, em 1997, foram apresentados dois mapas para a
divisão regional, cada um com 9 regiões: o do PS e o do PCP e PEV. O primeiro
previa as regiões: Entre Douro e Minho; Trás-os-Montes e Alto Douro; Beira
Litoral; Beira Interior; Estremadura e Ribatejo; Região de Lisboa e Setúbal;
Alto Alentejo; Baixo Alentejo; e Algarve. O Segundo propunha: Minho; Porto e
Douro Litoral; Trás-os-Montes e Alto Douro; Beira Litoral; Beira Interior;
Estremadura e Ribatejo; Região de Lisboa e Setúbal; Alentejo; e Algarve. Os
outros partidos com assento parlamentar, liderados por personalidades antirregionalistas, Marcelo
e Portas, não apresentaram propostas e bateram-se contra a reforma. As duas
propostas geraram ampla discussão, mas, por fim, houve acordo entre PS e
PCP/PEV para atingir a maioria de deputados na AR necessária para a aprovação
do diploma. A proposta, oficializada pela Lei da Criação das Regiões
Administrativas (Lei 19/98, de 28 de agosto) e levada a referendo no dia a 8 de novembro de 1998,
dividia Portugal em 8 regiões, já que os socialistas abdicaram da divisão
do Alentejo e os comunistas desistiram da divisão de Entre Douro e
Minho (ficaram
assim as regiões: Entre Douro e Minho; Trás-os-Montes e Alto Douro; Beira
Litoral; Beira Interior; Estremadura e Ribatejo; Região de Lisboa e Setúbal;
Alentejo; e Algarve).
Na junção
das propostas, as assembleias municipais e as populações dos diversos concelhos
foram auscultadas, num processo polémico, mas que aproximou as regiões
propostas da realidade, baseada nas antigas províncias, entrosadas há
séculos no quotidiano. Porém, algumas assembleias municipais, discordando da regionalização,
e, principalmente, algumas autarquias pressionadas politicamente pelas
orientações do PSD e do CDS, não responderam aos inquéritos, contribuindo
para o desenho de um mapa que, embora aceitável quanto às regiões apresentadas,
era artificial quanto às fronteiras e não resolvia as situações problemáticas
existentes, mantendo populações do mesmo aglomerado a integrar freguesias,
concelhos e, depois, regiões diferentes.
Ora, se o
país tem tudo a ganhar com a existência de níveis decisórios à escala regional
sem a dependência, em jeito de mão estendida, do governo central, é de
questionar o porquê do referendo institucionalizado em 1997, qual entorse demagógico
à democracia representativa, e como se tolerou tal protelamento até 2024, ano
do cinquentenário da revolução abrilina. Não estaremos, a poucas dezenas de
dias das eleições, a ensaiar hipocritamente a tentativa descarada de acabar em
definitivo com a vontade de criar as regiões? Quem não se lembra da campanha de
Portas e do CDS a alagar o país de outdoors com fotografias de tachos,
insinuando que a regionalização serviria só para criar uma nova vaga de boys no
aparelho de Estado? E surgiram espantalhos de descentralização que geraram o
abandono do interior e do país, a supressão de serviços públicos e privados de
interesse público. De facto, medraram os boys nas direções regionais, que pouco
decidiam, e as eleições nas CCDR foram um mecanismo de cambalacho.
Estarão os
decisores convertidos? Ou tudo dependerá do que se propuser? Estou em crer que
tudo se prepara para nada mudar!
2021.12.15 – Louro de Carvalho
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