quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Gouveia e Melo é o novo Chefe do Estado-Maior da Armada

 

A notícia não teria nada de extraordinário se não tivesse ocorrido o alegado “qui pro quo” em torno da suposta antecipação do Ministro da Defesa Nacional em convocar o ainda CEMA (Chefe do Estado-Maior da Armada) Almirante Mendes Calado para lhe comunicar a intenção do Governo de propor ao Presidente da República (PR) a sua exoneração e a consequente nomeação do Vice-Almirante Gouveia e Melo. Porém, o PR travou o processo então iniciado aduzindo que não fora informado previamente do facto e que a última palavra era sua (aliás todos o sabemos), quando, pelos vistos, o que se passou terá sido o também supostamente interessado no cargo Chefe da Casa Militar da Presidência da República a passar a público a informação. E o PR garantiu que a nomeação de Gouveia e Melo aconteceria, mas a seu tempo, que não era aquele.  
Neste dia 23 de dezembro, em reunião do Conselho de Ministros, o Governo, como consta do ponto 16 do respetivo comunicado, aprovou “a deliberação que propõe a Sua Excelência o Presidente da República, com parecer favorável do Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, após audição do Conselho do Almirantado, a exoneração do Almirante António Maria Mendes Calado do cargo de Chefe do Estado-Maior da Armada e a nomeação do Vice-almirante Henrique Eduardo Passaláqua de Gouveia e Melo como Chefe do Estado-Maior da Armada, bem como a correspondente promoção ao posto de Almirante”.
Mais tarde, a Presidência da República anunciou que Gouveia e Melo tomará posse no dia 27 de dezembro, às 15 horas. Com efeito, nos termos da respetiva nota, “o Presidente da República recebeu, do Governo, as propostas de exoneração do Senhor Almirante António Maria Mendes Calado do cargo de Chefe do Estado-Maior da Armada e de nomeação do Senhor Vice-Almirante Henrique Eduardo Passaláqua de Gouveia e Melo para o mesmo cargo”.
Todavia, o PR não se fica no laconismo do comunicado, como sucede às vezes. Antes justifica:
Depois de receber o Senhor Almirante CEMA e tendo em consideração a que haverá, muito em breve, legislação orgânica sobre o Estado-Maior-General e os três ramos das Forças Armadas – significando um novo ciclo político e funcional –, entendeu ser chegado o tempo de proceder à referida exoneração. Assim se antecipa de alguns meses o termo do segundo mandato, a ocorrer de acordo com disponibilidade manifestada pelo Senhor Almirante CEMA.”.
Em relação ao CEMA cessante, o PR manifesta-lhe o agradecimento “e louva o muito qualificado desempenho do Senhor Almirante Chefe do Estado-Maior da Armada, aliás, no quadro de uma carreira brilhante, e condecora-o com a Grã-Cruz da Ordem de Cristo”.
Por conseguinte, segundo o texto da referida nota, “na sequência da citada exoneração, e sob proposta do Governo, com parecer favorável do Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas e após audição do Conselho do Almirantado, o Presidente da República vai nomear Chefe do Estado-Maior da Armada o Senhor Vice-Almirante Henrique de Gouveia e Melo e promovê-lo ao posto de Almirante”. Por fim, o PR anuncia que a posse do futuro CEMA se realizará no “dia 27 de dezembro, às quinze horas, de acordo com as regras adotadas pela Presidência da República nas posses conferidas em pandemia”.
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A revolução que o novo Almirante tem assumido para a Armada, tornando o Ramo numa espécie de catalisador para novas políticas de valorização do mar como ativo estratégico nacional, é conhecida de Costa e encaixa na perfeição na “ambição” do Primeiro-Ministro de transformar os oceanos numa “grande causa e missão global”.
O plano foi adiado quase um ano, primeiro por causa da pandemia, que levou Gouveia e Melo a entrar na “guerra” de combate ao vírus, coordenando com sucesso o plano de vacinação contra a covid-19; mais tarde, pelos famosos “equívocos” com pretendida a exoneração, em setembro passado, do atual CEMA Mendes Calado. Agora, o Governo conseguiu formalizar a proposta para a sua nomeação como CEMA a Marcelo e esperando que, desta vez, não haja contratempos nem equívocos. Houve quem aventasse a hipótese de a tomada de posse pudesse ocorrer já no dia 24, mas o PR optou pelo dia 27, provavelmente em concertação com todos os interessados.
O timing da nomeação, antes das eleições legislativas, suscitou alguns reparos, designadamente da parte do BE e do PCP, bem como da parte do ex-CEMA Melo Gomes, que observou, em declarações ao “Expresso”, que este era um “mau momento”.
Aí, por mais críticas que o Governo mereça, esta não faz sentido, porquanto a intenção do Governo em relação a Gouveia e Melo já vem desde o momento anterior à formação da taskforce da vacinação e, aquando da recondução do atual CEMA, foi acertado que o prolongamento de mandato era a curto prazo. A pari, há mecanismos das instituições que não podem depender de calendários eleitorais, como deveria ser, por exemplo, o caso da justiça. No entanto, neste caso, o momento constitui mesmo a deadline para o Almirante Gouveia e Melo, pois é nesta altura que são promovidos os oficiais generais da Armada (vice-almirantes, contra-almirantes e comodoros), que constituirão o topo da hierarquia da Armada nos próximos anos, sendo conveniente que essas escolhas sejam do novo CEMA, pois será a sua equipa dirigente, o seu estado-maior.
Ainda assim, o ainda CEMA Mendes Calado fez algumas propostas de nomeações, recusadas pelo Ministro, como foi a do seu chefe de Gabinete para o posto de Comandante Naval (o mais importante cargo operacional), insistindo com um novo nome, igualmente recusado pela tutela.
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Se até agora, o submarinista deixou a sua marca em vários projetos de inovação tecnológica na Armada, sobretudo enquanto Comandante Naval, entre 2017 e 2019, as suas capacidades de liderança, organização e comunicação na coordenação da task force, deram ao Governo um oficial general com a capacidade de trunfo no objetivo de promover novas políticas de valorização e defesa do mar. Os fundos do PRR completaram o pacote. E o Vice-Almirante, na tertúlia de comemoração dos 157 do DN, onde foi o principal orador afiançou:
Portugal tem um ativo estratégico muito importante, que é o mar. É talvez o último dos seus ativos estratégicos, que terá uma grande importância geoeconómica e geopolítica muito grande. Temos de ter cuidado, senão podemos ser espoliados devagarinho desse último ativo estratégico. Gostaria de desenvolver e de ajudar a desenvolver políticas que contribuam para que esse ativo estratégico não nos seja retirado..
Este oficial general, eleito pela redação do DN personalidade nacional do ano, apelou à passagem da “retórica à ação” neste objetivo. Ao invés, com vincou, “alguém vai ocupar esse espaço”. Para tanto, como frisou, “é preciso desenvolver tecnologia e oportunidades de emprego”, mas “não é a buscar baldes de água salgada”. Disse que “os jovens são atraídos quando há oportunidades”. Criticou a “falta de visão” para oportunidades de negócio, quando passa pelo mar português cerca de 95% do tráfego marítimo internacional. E lançou o repto:
Porque não criar uma grande empresa de transporte marítimo com Portugal, Brasil e Angola? Basta olhar para o mapa e perceber que estes três países podem fazer coisas extraordinárias no mar.”.
Os planos e as ideias do Vice-Almirante para a Armada são conhecidos, pelo menos, desde 2019. Por isso, se o Governo escolhe uma figura como esta para CEMA, é porque não quer que fique tudo na mesma. Os seus planos para a Armada foram descritos nos “Cadernos Navais”, em edição especial de 74 páginas, publicada em 2019, num texto intitulado “Uma Marinha útil e verdadeiramente significativa”. Em síntese, quer uma Marinha mais equilibrada, holística no mar, catalisadora da indústria e conhecimento nacionais, robotizada e tecnologicamente avançada. Na sua ótica, “uma Marinha útil e significativa deverá ser capaz de desempenhar as seguintes funções genéricas: presença, por via da vigilância e fiscalização dos espaços marítimos de soberania e sob jurisdição nacional; dissuasão, evitando a utilização militar, contra os interesses nacionais e aliados, do espaço marítimo que une o grande arquipélago português (triângulo), assim como contribuir, nesse esforço, para a segurança cooperativa nos espaços marítimos adjacentes; e projeção – de força, capacidade logística, de apoio e de evacuação no mar, e através dele para o triângulo nacional e para espaços marítimos adjacentes”.
Para tais funções, a Marinha deve ser capaz de desenvolver outras funções, multiplicadoras das primeiras: comando, controlo, comunicações, redes e informação (C3RI), servidas por centros de operações e respetiva estrutura de informações, redes e comunicações que permita manter o comando dos meios navais e o controlo sobre a atividade de superfície e subsuperfície, nas águas de soberania e sob jurisdição portuguesa, bem como nas áreas de interesse nacional onde a Marinha possa vir a ser empregue. Esta atividade deve “gerar, para as entidades nacionais que dela precisem, um panorama partilhado da atividade marítima que permita que desenvolvam as suas ações no mar, salvaguardando as matérias estritamente militares; conhecimento, através de navios com “capacidade de prospeção marítima, visando desenvolver o conhecimento sobre o ambiente marítimo, essencial às operações militares, em particular nas áreas da cartografia, hidrografia e oceanografia, assim como apoiar outras entidades nacionais na pesquisa e conhecimento dos espaços marítimos”.
Para desenvolver esta Marinha, ela precisa de ter “como elementos indispensáveis as seguintes capacidades materiais: superfície; submarina; aérea; guerra de minas; guerra robotizada; anfíbia; C3R”. E “deverá ser composta por patrulhas oceânicos, fragatas, reabastecedores, navios logísticos/anfíbios, navios de pesquisa oceanográfica e veleiros de treino”.
A grande aposta do novo Almirante são os “drones aéreos, de superfície e de subsuperfície, com elevada persistência na área de operações, resilientes, discretos, alguns deles letais, a operar isolados, ou em grupo/rede, controlados à distância, ou com total autonomia” que, segundo crê, “constituirão a muito breve trecho uma capacidade fundamental das Forças Armadas”.
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Será o mais popular e distinguido Chefe do Estado-Maior da Armada de sempre.
Aos “equívocos” juntou-se a crise política, com a dissolução da Assembleia da República e a marcação de eleições legislativas antecipadas para 30 de janeiro e nomeação do vice-almirante, que chegou a ser dada como certa para outubro, foi sendo protelada.
Voltou à “base” onde estava antes de assumir a task force, o lugar de adjunto para o planeamento e coordenação, uma espécie de braço direito do Chefe de Estado-Maior-General das Forças Armadas (CEMGFA) para todas as missões centrais desta estrutura, mas nunca deixou de ser solicitado para entrevistas e conferências.
A sua liderança no processo de vacinação, que guindou Portugal ao topo dos países com mais pessoas protegidas contra a covid-19 (cerca de 88% e vacinados neste momento), transformou o submarinista numa das figuras mais populares e acarinhadas nos últimos tempos. Distinguido por várias entidades com prémios, entrevistado pelos maiores jornais e televisões, foi eleito personalidade nacional do ano pela redação do DN. Na susodita tertúlia, durante 50 minutos foi respondendo às questões de Rosália Amorim e dos convidados da plateia que assistia ao evento.
“O futuro a Deus pertence”, retorquiu ao ser desafiado por um dos convidados a dizer se estaria disponível para se candidatar à Presidência da República, deixando no ar que poderia já não estar a contar com a sua nomeação para CEMA e que, apesar de este ser o sonho de carreira, seria um homem livre para outras opções. E resta saber se a Armada, numa situação de grandes dificuldades com boa parte da frota inoperacional, será suficiente para Gouveia Melo e se ele a reerguerá. Porém, o certo é que nunca um CEMA foi tão conhecido e popular no país.
Antes de ir para a task force, era, desde janeiro de 2020, Adjunto para o Planeamento e Coordenação do EMGFA e apanhou em março a pandemia. Todo o planeamento para manter as Forças Armadas protegidas e ativas veio da sua equipa. Formação nos lares e nas escolas, sistema de saúde militar, ciberdefesa, inovação e até uma equipa “de conhecimento” que pesquisa todas as novidades científicas sobre a covid-19, tudo esteve sob a sua coordenação.
É meticuloso e paciente como aprende a ser alguém que viveu 22 anos em submarinos no fundo do mar, como foi o caso de Gouveia e Melo, que comandou o Barracuda e o Delfim. “Vivemos braço com braço, num sítio fechado, por longos períodos”, pelo que “a liderança tem de ser feita pelo exemplo e pela competência, dizia em novembro de 2020.
Tem a reputação de “o homem das missões impossíveis, tornando-as possíveis”, como destacou um oficial da Armada que acompanhou o seu percurso, dando como exemplo o facto de ter sido Gouveia e Melo quem “organizou toda a estrutura, meios, recursos, para receber, em 2010, os dois novos submarinos, Arpão e Tridente, que foi uma verdadeira revolução, à época, na Marinha”. E o Almirante Melo Gomes, ex-CEMA conheceu bem Gouveia e Melo e, quando foi nomeado para a task force, valorizou o facto de o Vice-Almirante ter aceitado, mesmo isso tendo significado o adiamento da sua promoção. A propósito, destacou:
É uma das melhores cabeças da Marinha. Pensa e decide com ponderação e eficiência. É um excelente organizador e possui uma grande capacidade de liderança. Tem um sentido de servir sem protagonismo (silent server). É respeitado na Marinha por quem não teme competência e odiado pelos que se acomodam às conveniências e aos lugares.”.
Vestindo sempre o camuflado, tratando a pandemia como uma guerra, falando de forma simples e clara explicando pari passu o que ia fazendo, o protagonismo colou-se-lhe à pele pelo mérito com que desempenhou as funções, salvando provavelmente milhares de vidas contra a covid-19. Foi o rosto que imprimiu confiança ao processo.
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O excecional tempo de espera para a nomeação como CEMA e s promoção a Almirante deu azo a que este militar, da serenidade de quem dá boa conta do desempenho de missão (testemunhando a liderança de comunicar – ouvindo e explicando –, organizar, explicar e mobilizar sinergias), tivesse passado a contradizer-se, em tantíssimas manifestações públicas de apreço, na rejeição do sebastianismo a par da insinuação da ambição a ocupar ligar de topo na vida militar e até política. Por exemplo, é de perguntar onde viu o preconceito do povo contra a atividade política de militares na reserva. E, com a avaliação do seu excelente desempenho na campanha da vacinação massiva, é de referir que o fornecimento das vacinas a ritmo de conta-gotas e a esperança nas vacinas como forma de erradicação do vírus facilitaram a tarefa. Todavia, a sua liderança, excelente durante o seu tempo de exercício de coordenação, não imprimiu a marca da eficácia na sucessão, antes parecendo meio estiolada com a saída de cena do Vice-Almirante.   
Seja como for, a Armada precisa deste homem. Que tenha êxito a começar por um Bom Natal!

2021.12.23 – Louro de Carvalho

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