segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

Mais uma vez o que divisamos da varanda para o Natal…

 

Na varanda sobre o Natal, a Palavra de Deus releva a missão de Jesus: o projeto de salvação e de libertação que ponha os homens na rota da descoberta da felicidade. E Jesus de Nazaré, que vem ao nosso encontro, é o rosto deste projeto que insta à liberdade face a tudo quanto aprisiona o homem. Aqui radica o grande anúncio de alegria e salvação que faz rebentar em júbilo os que reconhecem o Senhor e Salvador em Jesus Cristo, ainda que a mensagem chegue com os limites e fragilidade dos instrumentos humanos de Deus, pois tem sempre a marca e a força de Deus.

A 1.ª leitura da liturgia eucarística do IV domingo do Advento no Ano C (Mq 5,1-4a) aponta para o mundo novo que Jesus, descendente de David, propõe como dom do amor de Deus. O nome de Jesus é “a Paz”, pois inaugura um reino de paz e amor, não a partir da força das armas, mas do acolhimento oferecido pelo coração do homem e pela comunidade viva.

Miqueias, que profetizou em Judá, nos séculos VIII/VII a.C. e proveio do meio campesino, conhece os problemas dos pequenos agricultores, sujeitos a latifundiários sem escrúpulos, e vê Moreset Gat, a sua terra natal, cercada de fortalezas militares, donde irradia, de hora a hora, um assustador surto de violência, roubos, excessiva carga de impostos, de trabalhos forçados, etc. E dizem os opressores que Deus está do seu lado, pelo que justificam a sua postura invocando as tradições religiosas de Israel. Por conseguinte, esbulham o povo, cortando a sua carne aos pedaços e metendo-a na panela.

O livro de Miqueias descreve os pecados de Israel e de Judá, sublinhando os pecados sociais, como infidelidade grave aos compromissos assumidos no âmbito da Aliança e denunciando esta “teologia da opressão” (cap. 1-3), após o que passa a um conjunto de oráculos de salvação, com vista a despertar e acalentar a esperança do Povo (cap. 4-5).

O trecho em referência insere-se na 2.ª parte do livro, que muitos comentadores dizem não ser de Miqueias, mas dum profeta anónimo da época do exílio na Babilónia, e retoma as promessas messiânicas. Em ambiente de injustiça e sofrimento, frustração e desânimo, o profeta anuncia a futura vinda duma personalidade, enviada por Deus, que reinará sobre o Povo de Deus. Tal personalidade será da descendência de David e há de restaurar a paz, a justiça e a abundância que o Povo conheceu na época do rei David. A frase “Ele será a Paz” encerra o conteúdo concreto desta esperança: o termo “shalom” ora utilizado significa tranquilidade, bem-estar, vida em abundância, enfim, plena felicidade.

Começa de forma singular este ponto da profecia de Miqueias: “E tu, Belém de Éfrata, pequena entre os clãs de Judá, de ti sairá para mim aquele que será o governador (môshel) de Israel(Mq 5,1) – frase que os escribas de Herodes, ante a perplexidade deste, citarão na presença dos magos do Oriente que demandavam o local do nascimento do Rei dos Judeus (cf Mt 2,6). E termina, como se disse, afirmando: “Ele será a Paz!(Mq 5,4).

Na réstia de luz de Isaías, o citadino seu contemporâneo, Miqueias antevê o nascimento dum mundo novo, mas de forma diferente de Isaías, pois não vê esse mundo provir do Palácio do Rei ou do Templo da capital, onde pululam os sacerdotes – daí só emerge exploração, opressão, opulência, mentira e violência –, mas vê-o surgir da província. E, segundo Miqueias, o condutor deste mundo novo, como vinca Dom António Couto, “não é um Rei nem um filho de Rei, mas um môshel, um contador de histórias ou de parábolas (meshalîm, sing. mashal), portanto, um guia sábio, simples e direto e penetrante, como Jesus, que guiará o mundo com o sabor do sol e do sal da sua humilde sabedoria”. E os Evangelhos apresentam Jesus, que fala em parábolas e sem parábolas nada lhes dizia (vd Mt 13,34; Mc 4,34), não comanda exércitos nem utiliza carros de combate, como não governa através de leis, polícia, alfândega ou pesados impostos, mas com a brancura dos lírios do campo e a alegria das aves do céu. Por isso, Miqueias, em vez de Jerusalém, sobreleva Belém, a casa do pão.

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A 2.ª leitura (Heb 10,5-10) releva o facto de Cristo superar o sacerdócio antigo e os sacrifícios rituais da antiga liturgia do Templo, pois Ele é o novo Sumo Sacerdote que inaugura um culto novo, oferecendo-se a Si mesmo ao Pai, por nós, para nós. Nós somos do tempo, não das coisas ou dos animais, mas da pessoa. Assim, o texto sugere que a missão libertadora de Jesus visa criar a relação de comunhão e proximidade entre Deus e os homens, sendo necessário que os homens acolham este desígnio com disponibilidade e obediência – à imagem de Jesus Cristo que fez a vontade do Pai – num “sim” total ao desígnio de Deus.

A Carta aos Hebreus, escrito anónimo pouco anterior ao ano 70, destina-se a uma comunidade cristã constituída maioritariamente por cristãos vindos do judaísmo, não de fundação recente, onde o entusiasmo inicial parece ter dado lugar a uma fé tíbia, já pouco comprometida e em real perigo de desvios doutrinais. E reapresenta o mistério de Cristo, mas agora vincando a dimensão sacerdotal da sua missão. Recorrendo à linguagem litúrgica judaica, evidencia Jesus como o Sumo Sacerdote da nova Aliança e mediador entre Deus e os homens. E reflete sobre a condição cristã que decorre da missão sacerdotal de Cristo: os crentes, em relação com o Pai por Cristo sacerdote, integram o Povo sacerdotal que é a comunidade cristã e fazem da vida um contínuo sacrifício de louvor, ação de graças e amor.

No mundo veterotestamentário, para celebrar a comunhão com Deus, manifestar a entrega a Deus ou obter o perdão dos pecados, oferecia-se em sacrifício um animal, que o sacerdote depunha nas mãos de Javé. Porém, os profetas vinham afirmando a inutilidade e ineficácia de tais sacrifícios (cf Is 1,11-13; Jr 6,20; 7,22; Os 6,6; Am 5,21-25; Mq 6,6-8), por serem ritos externos, que nem sempre correspondiam a uma atitude sincera do coração do oferente.

Pondo na boca de Jesus as palavras do salmista (cf Sl 40,7-9), a Carta aos Hebreus afirma que, no mundo da nova Aliança, não é o sacrifício de animais que faz a comunhão com Deus, a entrega do crente a Deus, o perdão dos pecados. É, sim a encarnação de Jesus, a entrega total da vida do próprio Cristo, a realização do desígnio e da vontade do Pai que geram a aproximação e a relação do homem com Deus. Quem quer descobrir o Pai e aproximar-se d’Ele olha para Jesus, que ensina, pela obediência ao desígnio do Pai, como é a relação de filiação com Deus.

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O trecho evangélico desta dominga (Lc 1,39-47) faz parte do “Evangelho da Infância”, um género literário especial, homologese, que não visa o relato fidedigno dos acontecimentos, mas uma catequese que proclama a realidade salvífica da fé sobre Jesus, ou seja, que Ele é o Messias, o Filho de Deus, o Deus connosco, o Deus do Natal, como é o Deus prometido antes da Ascensão (cf Mt 1,23; 28,20). Avançando em modo de narrativo, recorre às técnicas do midrash haggádico (técnica de leitura e interpretação do AT usada pelos rabbis judeus na época da escrita do NT). A homologese utiliza, preferencialmente, tipologias, ou seja, os factos e pessoas do AT têm correspondentes em factos e pessoas do NT. E entremetem-se elementos apocalípticos (aparições, anjos, sonhos), que dão colorido e mensagem à narração e explicitam as ideias teológicas e a catequese sobre Jesus. Esta mescla de elementos presentes no trecho em apreço, mais que informação de reportagem sobre factos concretos, constituem uma catequese sobre Jesus, a partir dum conjunto de referências tiradas da mensagem e das promessas do AT.

O primeiro destaque evidencia a saudação de Maria em que o menino (João Batista) saltou de alegria no seio materno. Teologicamente, para Lucas, Jesus é o Deus que vem ao encontro dos homens e cuja mensagem de salvação/libertação concretiza as promessas de Deus aos antigos. Por isso, a presença de Jesus provoca a alegria, o estremecimento gozoso de quantos esperam a concretização das promessas de Deus e divisam na vinda de Jesus a realização das promessas dm mundo de justiça, amor, paz e felicidade para todos. Por Jesus, Deus oferece a salvação a todos, o que gera um incontrolável estremecimento de alegria da parte de todos os que anseiam pela concretização das promessas de Deus.

A seguir, vem resposta de Isabel: “Bendita és tu entre as mulheres(“Eulogêménê sý en gynaixín”), palavras do “Cântico de Débora” (cf Jz 5,24) para celebrar Jael, mulher que, apesar de frágil, foi o instrumento de Deus para libertar o Povo da mão do opressor Sísera. E Maria é apresentada – apesar da sua fragilidade – como instrumento de Deus para concretizar a salvação. Porém, é de sublinhar que à expressão do “Cântico de Débora” Isabel apõe “e bendito é o fruto do teu ventre (“kaì eulogêménos ho karpòs tês koilías sou”), o que frisa o fulgor messiânico da visita de Maria.

Por fim, vem a resposta de Maria: “A minha alma enaltece o Senhor…(“Megalýnei hê psikhê mou tòn Kýrion”) – que retoma um salmo de ação de graças (cf Sl 34,4) a Javé, que protege os humildes e os salva, apesar da prepotência dos opressores, salmo de esperança e confiança, que exalta o cuidado de Deus para com os pobres, vítimas da injustiça e da opressão. Claramente, a presença de Jesus, através de Maria, mulher simples e frágil, é sinal do amor de Deus, preocupado em trazer a libertação a todos os que são vítimas da prepotência e injustiça dos homens. Enfim, com Jesus, chegou o tempo da libertação e de paz que os profetas anunciaram.

O Papa Francisco, perante os fiéis, peregrinos e visitantes que ocupavam a Praça de São Pedro para a recitação do Angelus, observou que, depois de receber o anúncio do anjo, a Virgem não fica em casa, pensando no que sucedeu e ponderando problemas e imprevistos, que não faltam: não sabe que fazer com esta notícia na cultura da época. Porém, ao invés de se fechar nos seus problemas, logo pensa em quem pode precisar dela e lembra-se de Isabel, sua parente, já velha e grávida (algo estranho e milagroso). Põe-se a caminho com generosidade, sem se deixar intimidar pelos incómodos, respondendo ao impulso interior que a chama a estar perto. Ainda que, segundo diz alguém, Isabel, que é considerada abençoada mercê da gravidez, embora em idade provecta, não precise de ajuda – teria muito quem a ajudasse –, Maria percorre a pé um longo caminho. É mais uma ajuda e, é claro, a partilha da bênção de Deus de que Isabel e Maria são beneficiadas, a partilha da alegria; e, sobretudo, realiza a síntese do que é o Natal: levar Jesus a quem exultará de alegria com a sua presença. Maria dá a Isabel a alegria de Jesus, a alegria que carregava no coração e no ventre. Vai até ela e proclama os seus sentimentos, proclamação que doravante é uma oração, o Magnificat, que todos conhecemos. 

E, frisando que o texto diz que “E Maria naqueles dias levantou-Se e saiu apressadamente para a montanha(“Anastâsa dè Mariàm en taîs hêmérais taútais eporeúthê eis tên oreinên metà spoudês”), o Pontífice comenta, antes de mais que Se levantou e saiu, movimentos por que nos devemos deixar guiar na varanda sobre o Advento. De facto, após o anúncio do anjo, aproximava-se para a Virgem um período difícil: a inesperada gravidez expô-la a mal-entendidos e a severas penas, incluindo o apedrejamento. Porém, não desanima: levanta-Se; não olha para os problemas, mas para Deus; não pensa a quem pedir ajuda, mas a quem ajudar; pensa nos outros. Fará o mesmo nas bodas de Caná, quando perceber que falta vinho. Também pensa em nós, que temos de nos levantar, porque Deus é grande e está pronto para Se levantar se O alcançarmos. E, ao ajudarmos os outros, ajudar-nos-emos a nós mesmos a superar tudo. E o outro aspeto deste movimento solidário é a rapidez. Não é andar agitado, sufocado, mas conduzir os nossos dias com passo alegre, olhando para a frente com confiança, sem nos arrastarmos com relutância, escravos das lamentações, que arruínam muitas vidas. 

Indo para a casa de Isabel, Maria segue no ritmo acelerado de quem tem o coração e a vida cheios de Deus e da sua alegria. E é assim que devemos fazer hoje, pois, se andamos tristes, cansados ou mal-humorados, não levaremos ninguém a Deus, nem levaremos Deus a ninguém. Vale muito, diz o Papa, “cultivar um saudável sentido de humor, como fizeram, por exemplo, São Tomás de Moro ou São Filipe Néri”. Com efeito, o primeiro ato de caridade que podemos fazer aos outros é oferecer-lhes um rosto sereno e sorridente, trazendo-lhes a alegria de Jesus, como Maria fez com Isabel.

Como vinca Dom António Couto, Bispo de Lamego (e o Evangelho tem primazia face às interpretações), as Igrejas do Ocidente conhecem este episódio por Visitação de Maria, enquanto os irmãos do Oriente preferem denominá-lo de Saudação de Maria. O episódio começa por nos mostrar Maria a correr sobre os montes e ir ao encontro de Isabel. Nesta corrida, Maria reveste-Se dos traços do mensageiro de Isaías 52,7, que diz: “Como são belos sobre os montes os pés do mensageiro que anuncia a Paz, que leva Boas Novas a Sião!”. Maria aparece, pois, como portadora da Boa Nova, tal como Se reveste do perfume do amor novo (cf CT 2,8). Assim, Maria surge como uma mulher bela, encantada, cheia de alegria, esposa amada e habitada pelo Evangelho em Pessoa, Jesus, que Maria serve com humildade e, mais tarde, apresenta generosa e candidamente, como Senhora Odighítria, venerada nas Igrejas do Oriente, que com a mão aponta qual verdadeiro caminho, o seu Filho Jesus, que leva ternamente ao colo.

Mirando esta figura cheia de beleza e leveza, vemos, a contraluz, o perfil dos Evangelizadores, também belos, leves e felizes e habitados por um amor novo: sem ouro nem prata nem cobre nem alforge nem duas túnicas. Ora, esta mulher bela saúda Isabel e enche de alegria o mundo de Isabel, que irrompe num hino de louvor, juntando às palavras da oração do Anjo “Ave, cheia de graça, o Senhor contigo(“khaîre, kekharitôménê, ho Kýrios metà soû”: Lc 1,28) o duplo segmento de bendição “Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre(“Eulogêménê sý en gynaixín kaì eulogêménos ho karpòs tês koilías sou”: Lc 1,42). E aponta Maria como “a Mãe do meu Senhor(“hê mêtêr toû kyríou mou”: Lc 1,43), desvelando o seu nome grande de “Mãe de Deus”, passando nós a invocá-La como “Santa Maria, Mãe de Deus”.

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Em suma, nestes parâmetros basilares de tempo novo, paz, dom, graça, mansidão, serviço, disponibilidade, oferta de Deus a todos os homens e a todos os povos, está o germe e a força do Natal do Senhor que vem e que vencerá a força contumaz do consumismo, a prepotência dos poderes e a vergonhosa rotina da indiferença. Deus é grande. Cristo é o protagonista e Maria é a servidora.

2021,12.20 – Louro de Carvalho   

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