quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

A ira é “um vício particularmente tenebroso”

 

Na Audiência Geral de 31 de janeiro, na Sala Paulo VI, do Palácio Apostólico do Vaticano, Francisco, prosseguindo com o seu ciclo de catequeses sobre os vícios e as virtudes, refletiu sobre a ira, “um vício particularmente tenebroso”.

A ira mostra a incapacidade de aceitar a diversidade do outro, especialmente quando as suas opções são diferentes das nossas. Basta o outro, assim como é, para provocar a ira e o ressentimento, fazendo-nos detestar até o tom da sua voz, os gestos mais simples e banais de cada dia, a sua maneira de pensar e sentir. Quando a relação chega a este nível de repugnância, perde-se a lucidez. Daí que São Paulo nos aconselhe a resolver tudo, logo que possível, mas antes do pôr-do-sol. Cabe a nós, com a ajuda do Espírito Santo, educar a paixão da ira com a benevolência, a magnanimidade de coração, a mansidão, a paciência.

O Papa disse que a pessoa dominada por esse vício “tem dificuldade de esconder este ímpeto: reconhecemo-lo pelos movimentos do seu corpo, pela agressividade, pela respiração ofegante, pelo olhar sombrio e carrancudo”.

Por outro lado, ao falar da “santa indignação” – bem diferente da ira (que é um dos pecados capitais, isto é, que estão na origem de outros) –, considerou que, “se uma pessoa nunca se irasse, se não se indignasse diante de uma injustiça, se perante a opressão de uma pessoa frágil não sentisse tremer algo nas suas entranhas, então isto significaria que aquela pessoa não é humana, e muito menos cristã”.

Salientou que a ira, muitas vezes, é desencadeada, não contra o culpado, “mas contra o primeiro desventurado” que tem o azar de aparecer.

O Papa evocou os casos em que os homens “reprimem a ira no lugar de trabalho, demonstrando-se calmos e tranquilos”, mas se tornam “insuportáveis para a esposa e os filhos”, quando chegam a casa”. A par da ira, temos aqui a hipocrisia subserviente; e a insensatez de descarregar em quem não tem culpa e merece o nosso respeito.

Para Francisco, a ira também é um pecado desenfreado, “um vício alastrante”, pois é capaz de nos “tirar o sono e de nos levar a tramar, em continuação, na mente, sem conseguir encontrar uma barreira aos raciocínios e aos pensamentos”. Está origem dos conflitos e das guerras.

“Quando a relação chega a este nível de degeneração, já se perdeu a lucidez. A ira faz perder a lucidez. De facto, às vezes, uma das caraterísticas da ira é a de não conseguir atenuar-se com o tempo”, disse o Pontífice, vincando a importância de qualquer mal-entendido se dissolver imediatamente, “antes que o sol se ponha”.

E advertiu que, “se algum desentendimento surgir, durante o dia, e duas pessoas já não conseguirem compreender-se, sentindo-se repentinamente distantes, a noite não deve ser confiada ao diabo”. “O vício manter-nos-ia acordados na escuridão, a remoer as nossas razões e os erros indescritíveis, que nunca são nossos, sempre do outro”, enfatizou.

A ira “é um pecado que destrói as relações humanas”. Expressa a incapacidade de aceitar a diversidade dos outros, especialmente quando as suas escolhas de vida divergem das nossas. “Não se detém nos comportamentos errados de uma pessoa, mas joga tudo no caldeirão: é o outro, o outro como ele é, o outro como tal que causa a raiva e o ressentimento. Começa-se a odiar o tom da sua voz, os gestos banais do dia a dia, os seus modos de raciocinar e de sentir”, diz o Papa.

Para o Santo Padre, “quando a relação atinge esse nível de degeneração, já se perdeu a clareza, pois uma das caraterísticas da ira é que, às vezes, não pode ser mitigada com o tempo. É importante que tudo se dissolva imediatamente. Quando uma pessoa está sob a ira, ela sempre, sempre diz que o problema está no outro; “nunca é capaz de reconhecer suas próprias falhas, seus próprios defeitos”. Efetivamente, uma pessoa com raiva “nunca é capaz de reconhecer os próprios defeitos, as próprias falhas”.

“No ‘Pai Nosso’, Jesus faz-nos rezar pelas nossas relações humanas que são um campo minado: um plano que nunca está em perfeito equilíbrio. Todos precisamos de aprender a perdoar. Os homens não estão juntos, se não praticarem também a arte do perdão, tanto quanto isso for humanamente possível”, disse ainda Francisco.

O Pontífice disse outra coisa a propósito da ira: “É um pecado terrível que está na origem das guerras e da violência. “O que neutraliza a ira é a benevolência, a generosidade, a mansidão, a paciência.”

Porém, nem tudo o que surge da ira está errado. Os antigos sabiam muito bem que existe uma parte irascível dentro de nós que não pode e não deve ser negada. As paixões são, até certo ponto, inconscientes: acontecem, são experiências da vida. Não somos responsáveis pelo surgimento da ira, mas pelo seu desenvolvimento. E, às vezes, é bom que a ira seja desabafada da maneira certa.

“Se uma pessoa nunca se irritasse, se não se indignasse diante de uma injustiça e se, diante da opressão de uma pessoa fraca, não sentisse algo tremendo, nas suas entranhas, então isso significaria que não é humana, e muito menos, cristã”, observa o Papa, abrindo a porta para outro sentimento aparentemente similar, mas diferente: a santa indignação.

Recordo que o Dr. Mário Soares, quando era Presidente da República, enunciou o direito à indignação, face a tropelias e a injustiças.  

Francisco, agora, assume a santa indignação, não só como direito, mas como um dever humano e cristão: “Existe uma santa indignação, que não é ira, mas é um movimento interior, uma santa indignação. Jesus encontrou-a, várias vezes, na sua vida: nunca respondeu ao mal com o mal, mas sentiu, na sua alma, este sentimento; e, no caso dos cambistas do Templo, realizou uma ação forte e profética, ditada não pela ira, mas pelo zelo da casa do Senhor. É preciso distinguir bem, o zelo, a santa indignação: esta é uma coisa; e a ira, que é ruim, é outra coisa.” Cabe-nos a nós, com a ajuda do Espírito Santo, encontrar a medida certa das paixões. Educá-las para que se tornem boas”, advertiu o Papa, destacando que “nem sempre amamos a todos na medida certa” e que, muitas vezes, “não restituímos o amor que lhes era devido”.

Enfim, como diz o Bispo de Roma, “somos todos pecadores, todos, e todos temos a conta no vermelho”. “Por isso, todos devemos aprender a perdoar para ser perdoados.”

Por fim, o Papa acentuou que é possível, com a ajuda do Espírito Santo, “encontrar a medida certa das paixões, educá-las adequadamente, a fim de que se voltem para o bem, e não para o mal”.

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Obviamente, algo que indigna Francisco e que devem indignar todos os cristãos é a violência e a desumanidade, mormente as que emolduram a guerra.

Por isso, o Sumo Pontífice, no final da audiência geral, citou o Dia Nacional das Vítimas Civis de Guerra, que é celebrado, na Itália, todos os dias 1 de fevereiro. E uniu à memória dos que morreram nas duas guerras mundiais a sua oração pelos que perdem a vida no Médio Oriente, na Ucrânia e em outras áreas do Mundo: “Que o grito de dor deles toque os corações dos responsáveis pelas nações.”

O Bispo de Roma denunciou a “crueldade” dos conflitos e exortou: “Peçamos a paz ao Senhor, que é sempre manso, nunca cruel.”

Não há tempo, não há espaço, mas apenas um longo rasto de sangue e de dor que une duas épocas: a das duas guerras mundiais e a da atual dos conflitos “em pedaços” que dilaceram a humanidade. Por isso, Francisco elevou aos céus uma recordação e uma oração pelos que morreram em batalha, “hoje e ontem”, quando final, no momento das saudações em língua italiana, recordou o Dia Nacional das Vítimas Civis de Guerra.

“À oração em memória dos que morreram nas duas guerras mundiais, associamos também os muitos – demasiados – civis, vítimas indefesas das guerras que infelizmente ainda mancham o nosso planeta com sangue, como no Médio Oriente e na Ucrânia”, declarou.

Notícias dramáticas chegam, nestas horas, dos dois territórios em guerra: mais de dez civis mortos durante um bombardeio numa casa em Deir al-Balah, no centro da Faixa de Gaza; ataques de drones, casas destruídas, civis feridos e mortos, em Karkhiv, em Bakhmut e em outros territórios ucranianos. Que o “grito de dor” das vítimas “toque os corações dos responsáveis pelas nações e suscite projetos de paz”, espera Francisco, pronunciando algumas palavras, fora do texto previamente preparado, sobre a verificação amarga dos limites da desumanidade que a guerra sistematicamente rompe.

Quando se leem histórias destes dias, na guerra, há tanta crueldade, tanta... Peçamos ao Senhor a paz que é sempre mansa, não cruel”, exortou.

E, antes de concluir a saudação aos fiéis de língua italiana, o Papa recordou o 31 de janeiro, em que se celebra a memória litúrgica de Dom Bosco, sacerdote fundador dos salesianos, modelo de educação, cuidado e acolhimento dos jovens: “Invoco sobre vós a proteção de São João Bosco que hoje a Igreja recorda, a fim de que torne fecunda a vocação de cada um na Igreja e no Mundo.”

 

Em suma, a ira é um pecado, que nos descarateriza a nós e ao próximo, segundo a nossa maneira de o olhar. Não somos responsáveis pela erupção da ira (que se modera com a benignidade e com a oração), mas pelo seu desenvolvimento. Por outro lado, a santa indignação (diferente da ira), que deve ter eficácia, é não só um direito, mas um dever humano e cristão.

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Todavia, é de clarificar que o termo “indignação” não será o mais adequado para caraterizar os referidos direito e dever. Com efeito, “indignar-se” pode dar a entender que estamos a retirar de nós a nossa dignidade, o que não é correto (nem estamos a tirar a dignidade a ninguém). O que estamos a fazer é um protesto, em nome da nossa dignidade que censura o mal e em nome da dignidade do próximo que está a ser negada, desrespeitada e vilipendiada. Pro dignitate!

2024.01.31 – Louro de Carvalho

Produto Interno Bruto (PIB) português cresceu 2,3%, em 2023

 

Os dados divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), a 30 de janeiro, mostram que a economia portuguesa cresceu 2,3%, em 2023, abrandando face ao crescimento homólogo de 6,8% registado em 2022. Todavia, este valor percentual em relação ao produto interno bruto (PIB) é maior do que o estimado pelo governo, que era de 2,2% – em todo o caso,  mais de quatro vezes superior ao da Zona Euro e ao da União Europeia (UE).

É oportuno anotar que o crescimento registado em 2022 foi o mais elevado desde 1987 e que a desaceleração explicada é, em parte, pela desaceleração do comércio internacional (quer das exportações, quer das importações) e da procura interna.

Se, no total do ano houve, um abrandamento, o mesmo não aconteceu no último trimestre, onde a primeira estimativa do INE aponta para um crescimento homólogo do PIB de 2,2%, uma aceleração face aos 1,9% do terceiro trimestre.

Efetivamente, no quarto trimestre, “o contributo da procura interna para a variação homóloga do PIB manteve-se elevado”, tendo sido registada “uma aceleração do consumo privado e uma desaceleração do investimento”.

“O contributo da procura externa líquida para a variação homóloga do PIB passou a positivo, tendo as exportações de bens e serviços em volume apresentado um crescimento mais intenso que as importações”, indica ainda o INE.

Após um recuo de 0,2%, no terceiro trimestre, em cadeia (isto é, em comparação com o trimestre anterior), o PIB voltou a crescer no final do ano, mais precisamente 0,8%. Desta forma, Portugal evitou a recessão técnica, que se verifica, se a economia cai por dois trimestres consecutivos.

Na variação em cadeia, o contributo da procura interna aumentou, a reboque do consumo privado, “enquanto o contributo da procura externa líquida foi menos negativo”.

No entanto, o governo, na proposta do Orçamento do Estado para 2024, previa um crescimento de 2,2% do PIB, em 2023, quando o Banco de Portugal (BdP), ainda mais pessimista, previa um aumento de 2,1%.

No âmbito do comércio internacional, a estimativa rápida do INE aponta para uma queda de 1,9%, nas exportações, e de 5,4%, nas importações, nos últimos três meses do ano. “O decréscimo nas transações de bens ocorre pelo terceiro trimestre consecutivo, mas sendo menos acentuado do que no trimestre anterior, em que se registaram variações homólogas de -8,7%, nas exportações, e -12,4%, nas importações”, refere o nosso gabinete estatístico.

Paralelamente, os dados do Gabinete de Estatísticas da União Europeia (Eurostat) revelam que as economias da Zona Euro e da UE tiveram, em 2023, um crescimento homólogo de 0,5% cada. Entre os 12 Estados-membros para os quais há dados disponíveis, a economia portuguesa foi a que apresentou o maior avanço homólogo (2,2%), no quarto trimestre, e também em cadeia (0,8%).

Entre outubro e dezembro, o PIB, nos países da área do euro, avançou 0,1%, quando comparado com o mesmo período de 2022, e o do conjunto dos 27 Estados-membros cresceu 0,2%.

Em ambas as zonas, de acordo com o serviço estatístico europeu, o PIB manteve-se estável na variação em cadeia.

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Por sua vez, a World Economic Outlook (WEO), Perspetivas Económicas Mundiais, do Fundo Mundial Internacional (FMI) revê em baixa previsões de crescimento da Zona Euro para 0,9%, em 2024, em virtude dos impactos da guerra na Ucrânia, mas prevê uma recuperação impulsionada pelo consumo das famílias. E o PIB mundial deve voltar a crescer 3,1%.

Na WEO para 2024, pode ler-se que “a moderação e o crescimento constante abrem caminho para uma aterragem suave”.

E o parâmetro “descrição” refere: “Prevê-se que o crescimento global se mantenha nos 3,1%, em 2024, e aumente para 3,2%, em 2025. As taxas elevadas do banco central, para combater a inflação, e a retirada do apoio fiscal, num contexto de dívida elevada, pesam sobre a atividade económica. A inflação está a cair mais rapidamente do que o esperado, na maioria das regiões, num contexto de resolução de questões do lado da oferta e de uma política monetária restritiva. A inflação global deverá cair para 5,8%, em 2024, e 4,4%, em 2025, tendo a previsão para 2025 sido revista em baixa.

O FMI está, pois, mais pessimista, quanto à evolução económica da Zona Euro, revendo em baixa as previsões de crescimento para 0,9%, em 2024, e 1,7%, em 2025. O crescimento será comedido em algumas das principais economias europeias, devendo que a Alemanha crescer apenas 0,5%.

Já a economia mundial deverá crescer 3,1% este ano, o mesmo ritmo de 2023, num contexto em que a inflação está a cair mais rápido do que o esperado.

A revisão em baixa para a Zona Euro deveu-se “em grande parte” ao “resultado mais fraco do que o esperado para 2023”, que dá menos impulso à atividade económica, lê-se na atualização ao WEO. O FMI estima agora que o crescimento “deverá recuperar da baixa taxa de cerca de 0,5%, em 2023, que refletiu uma exposição relativamente elevada à guerra na Ucrânia, para 0,9% em 2024, e 1,7%, em 2025”. O consumo mais forte das famílias, à medida que os efeitos do choque energético nos preços diminuem e a inflação cai, apoiando o crescimento do rendimento real, deverá impulsionar a recuperação“, explica a instituição.

Olhando para os países da Zona Euro para os quais há previsões, destaca-se a Alemanha. Conhecida como o “motor” da economia europeia, está ainda a recuperar dos impactos da guerra na Ucrânia e da subida dos preços na energia, pelo que as estimativas do FMI foram revistas em baixa para um crescimento de 0,5%, em 2024, após uma contração de 0,3%, em 2023.

Já França deverá crescer 0,7%, tanto em 2023 como em 2024, enquanto a economia espanhola vai abrandar de 2,4% para 1,5%, neste ano.

Num contexto geral, a instituição prevê que a economia mundial cresça 3,1%, tanto em 2023 como em 2024. Em comparação com as previsões de outubro de 2023, “a previsão para 2024 é cerca de 0,2 pontos percentuais mais alta, refletindo atualizações para a China, Para os Estados Unidos da América (EUA), para os grandes mercados emergentes e para as economias em desenvolvimento”. Já o crescimento das economias desenvolvidas deve abrandar de 1,6%, em 2023, para 1,5%, neste ano.

O FMI prevê que, de forma global, a inflação caia de forma estável para se aproximar da meta dos 2%. A taxa global abranda de 6,8% para 5,8%, neste ano, devendo as economias desenvolvidas ver desinflação mais rápida: a taxa cai dois pontos percentuais, em 2024, para 2,6%. Mesmo assim, cerca de 80% das economias do Mundo vão registar uma inflação mais baixa, neste ano.

Diferem consoante o país os fatores que impulsionam a descida da inflação, mas, geralmente, refletem uma mais baixa inflação subjacente (que mede a evolução de um cabaz de bens e serviços com mudanças menos frequentes – excluindo bens energéticos e produtos alimentares não transformados – e com oscilações menos pronunciadas de preço), em resultado de políticas monetárias ainda restritivas, de um abrandamento relacionado nos mercados laborais e de efeitos de repercussão de quedas anteriores e em curso nos preços relativos da energia.

Existe, apesar de tudo, alguma incerteza, em relação à evolução dos preços, que apresenta riscos tanto negativos como positivos. Por um lado, uma desinflação mais rápida poderia levar a uma flexibilização das condições financeiras, podendo “uma política orçamental mais solta do que o necessário e do que o assumido nas projeções” implicar “um crescimento temporariamente mais elevado, mas sob o risco de um ajuste mais oneroso posteriormente”. Por outro lado, “novos picos nos preços das matérias-primas devido a choques geopolíticos – incluindo a continuação de ataques no Mar Vermelho – e interrupções no fornecimento ou uma inflação subjacente mais persistente podem prolongar o aperto das condições monetárias”.

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No atinente ao défice e ao excedente, é de notar que, segundo os dados do Eurostat, divulgados a 22 de janeiro, Portugal registou o segundo maior excedente orçamental, no terceiro trimestre de 2023, de 2,5% do PIB, depois da Dinamarca (2,7%) e seguido pela Croácia (2,2%), no quadro do recuo, para 2,8%, dos défices da Zona Euro e da UE.

Nos 20 países da área do euro, o défice de 2,8% do PIB recuou, quer face ao de 4,0%, do trimestre homólogo, quer comparando com o de 3,0%, registado entre abril e junho de 2023.

No conjunto dos 27 Estados-membros, a comparação é com um défice de 3,5% no terceiro trimestre de 2022 e com o de 3,0% na comparação trimestral.

Segundo os dados do serviço estatístico da UE, Portugal registou o segundo maior excedente orçamental no terceiro trimestre de 2023, de 2,5% do PIB, depois da Dinamarca (2,7%) e seguido pela Croácia (2,2%). E os défices mais elevados, por seu lado, observaram-se na Eslováquia (-7,0%), seguida da Bulgária (-6,6%) e Hungria (-5,7%).

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O crescimento da economia e a estratégia de gestão poderão levar o rácio da dívida pública a rondar os 100% do PIB, em 2023, a rondar os 100,2% registados em 2010 e abaixo da meta prevista no Orçamento do Estado para 2024 (OE2024), que apontava para um rácio de 103%.

Os números significam a consolidação da trajetória de redução do peso da dívida registada nos últimos anos e a aproximação antecipada da meta de 98,9%, projetada para 2024. Já, em 2022, o rácio da dívida pública caiu para 112,4% do PIB.

“É claramente possível [tocar em 2023 a meta de 100%]”, considera o coordenador do NECEP – Católica-Lisbon Forecasting Lab, João Borges de Assunção, apontando o efeito positivo combinado de um crescimento nominal da economia acima do normal, devido à inflação e ao bom desempenho real da economia em 2023. A este cenário junta os resultados das elevadas receitas fiscais que beneficiaram de efeitos nominais significativos.

Pedro Braz Teixeira, diretor do gabinete de estudos do Fórum para a Competitividade, considera que, dado que, com a execução melhor do que a estimada no relatório do OE2024, “é muito provável que seja possível ficar abaixo dos 103% do PIB, embora seja menos seguro que se consiga ficar abaixo da marca simbólica dos 100% do PIB”. “Aliás, os dados do PIB do quarto trimestre, muito acima do esperado, reforçam a ideia de ser possível um bom resultado para as contas públicas, quer no défice quer na dívida”, observa.

No final de 2023, o ministro das Finanças montou uma operação especial, que incluiu a recompra de títulos de dívida pública a privados, a seguradoras e a bancos e o pagamento antecipado de dívida das empresas públicas, para fechar o ano com o rácio abaixo dos 100%. Porém, os economistas dizem que a recompra tem um efeito pontual. Na verdade, tem a vantagem de conseguir fazer descer o rácio, sem ser necessário cortar na despesa ou aumentar impostos, mas é uma medida de gestão de tesouraria, que não altera a dívida líquida. No entanto, se a taxa de aplicação que o Estado deixa de receber pelo depósito que tem parqueado for mais baixa do que a taxa marginal de endividamento, até pode trazer algum ganho financeiro.

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Pelos vistos, embora a taxa de desemprego se mantenha nos 6,6% e a inflação esteja em 2,3%, será descabido o discurso miserabilista que por aí se ouve. Todavia, embandeirar em arco é imprudência e manifestação de arrogância, o que é, por vezes, tentador.

2024.01.31 – Louro de Carvalho

terça-feira, 30 de janeiro de 2024

Debate sobre o novo aeroporto recrudesce e a obra pode ficar no papel

 

 

A existência de novos estudos sobre o movimento de habitats de aves na Reserva Natural do Estuário do Tejo e de como seriam “irremediavelmente” afetados por um aeroporto desta natureza levou o Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) a emitir parecer desfavorável ao pedido de renovação da Declaração de Impacte Ambiental (DIA) do aeroporto no Montijo, que estava previsto caducar em janeiro.

Acácio Pires, da associação Zero aplaude, considerando que “é a correção de um erro cometido há quatro anos”, e lembra que, “sendo esta reserva natural uma das mais importantes da Europa para as aves”, espera que a decisão seja confirmada pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA), enquanto autoridade de avaliação de impacte ambiental. Por seu turno, A ANA aeroportos, que pedira a renovação da DIA, em dezembro, continua a defender esta solução, por ser a que lhe é mais favorável financeiramente, enquanto concessionária, e vai contestar o parecer em causa.

Todavia“todas as opções que incluem Montijo são ambientalmente inviáveis”, garantem nove organizações não-governamentais de ambiente (ONGA), em parecer conjunto, entregue no âmbito da consulta pública do processo de Avaliação Ambiental Estratégica (AAE) do Novo Aeroporto de Lisboa (NAL), apresentado pela Comissão Técnica Independente (CTI). As mesmas organizações apelaram à APA e ao ICNF para “recusarem a renovação” da DIA emitida em 21 de janeiro de 2020 e prestes a caducar.

Em 2019, o ICNF emitira parecer “favorável condicionado a medidas de minimização e compensação, em especial para preservar as populações de aves aquáticas”, considerando, então, que o projeto do aeroporto no Montijo e respetivas acessibilidades “não punha em causa a integridade da área natural”, considera o ICNF. E, justificando que, chamado a pronunciar-se sobre a extensão do prazo de validade da DIA do Montijo, diz que “teve em conta os novos estudos científicos sobre a avifauna desta zona divulgados recentemente”. Um deles conclui que a implementação do NAL pode levar a uma perda de até 30% do valor de conservação do estuário do Tejo, em termos de alimentação das aves invernantes”. Para o ICNF, o facto de haver alteração objetiva de circunstâncias e inequívoca evolução do conhecimento e do quadro ambiental, obriga a “emitir um parecer desfavorável” à prorrogação da DIA.

Assim, a opção Montijo parece ter caído por terra. E, para voltar a ter viabilidade, segundo o ICNF, é necessário novo processo de Avaliação de Impacte Ambiental (AIA) que contemple “toda a informação técnica e científica agora conhecida, assim como a nova que venha a surgir, para uma decisão sustentada e realista”.

Também a APA, com base “na pronúncia das entidades consultadas”, entre as quais o ICNF considerou não estarem reunidas as condições necessárias à prorrogação da DIA do aeroporto do Montijo e respetivas acessibilidades. A decisão obriga, agora, a “um período de audiência prévia nos termos do Código do Procedimento Administrativo”. E a ANA, como se disse, vai contestar.

Para as aludidas nove organizações ambientais, que tinham apelado ao chumbo da extensão da validade da DIA – e que colocaram a DIA emitida em 2020 (que agora caduca) em tribunal –, a opção de um aeroporto no Montijo era “totalmente inviável”.

Já Jorge Palmeirim, biólogo e coautor de um dos novos estudos, frisa que esta decisão “reconhece o conhecimento científico existente”. O também investigador da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa frisa que “o interesse público prevalece assim sobre interesses privados”.

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As aludidas nove ONGA – ALMARGEM, ANP|WWF, ROCHA, FAPAS, GEOTA, LPN, Quercus, SPEA e ZERO – que não se limitam a contestar Montijo, sustentam que Montijo e Alcochete são as piores soluções; Vendas Novas a menos má; e Beja a ideal, como complementar.

 Reforçando que opção Montijo “é inviável”, defendem que é preciso investir na ligação ferroviária entre Beja e Lisboa, assumindo o aeroporto alentejano como solução complementar, para os próximos 10 anos.

A decisão final sobre a futura localização do aeroporto só será conhecida depois das eleições de 10 de março; e, seja qual for, não estará a funcionar antes de 2035. A ANA continua a defender a solução que lhe é financeiramente mais favorável, enquanto concessionária: o Montijo. Porém, esta é a pior de todas as soluções, reafirmam os ambientalistas.

Em comunicado, enviado às redações, a 29 de janeiro, os ambientalistas lembram que existe “nova informação relevante, que não era conhecida, aquando do processo de licenciamento ambiental concluído no início de 2020”. Há quatro anos, duas entidades – ICNF e APA – deram luz verde ao projeto no Montijo, apesar de reconhecerem grandes impactes ambientais, nomeadamente sobre as aves e os habitats da rede Natura e da Reserva do Estuário do Tejo.

Além da afetação de corredores de aves migradoras e da exposição da população a níveis de ruído acima do legalmente admissível, as nove ONGA acrescentam o risco de inundação, face à subida do nível médio da água do mar e o risco para o estratégico aquífero do Baixo Tejo e Sado, assim como “a destruição de áreas florestais de alta qualidade e de valor insubstituível”, no Montijo e em Alcochete. E estes critérios fazem chumbar a solução Campo de Tiro de Alcochete.

A localização do aeroporto em Vendas Novas é considerada menos má, mas não está isenta de impactos ambientais. “Se tivermos em conta todos os indicadores de perturbação de áreas de Rede Natura 2000 ou de potenciais corredores de aves migradoras, a localização de Vendas Novas afeta entre três a 27 vezes menos área do que todas as outras localizações”, escrevem no parecer as ONGA. Para a Zero “esta é a solução mais favorável do ponto de vista ambiental e de saúde pública”, defende Acácio Pires.

Porém, João Joanaz de Melo, do Geota, põe Santarém no mesmo plano de Vendas Novas, considerando que “a escolha final, quanto a estas duas opções, deve ficar para os decisores técnicos e políticos”. Comparando com Montijo e Alcochete, as opções Vendas Novas e Santarém têm menos risco de afetar populações com ruído dos aviões, de afetar habitats de aves, e de provocar “bird strike” (colisão de pássaros). Por isso, como defende, a prioridade é pôr o aeroporto de Beja como complementar ao da Portela, que terá de funcionar, pelo menos, mais 10 anos”; e a solução não é investir milhões na linha de alta velocidade, exceto a da ligação Lisboa-Madrid, mas melhorar as linhas convencionais e duplicar as suburbanas em Lisboa e Porto.

As nove ONGA consideram que qualquer modificação significativa das operações no Aeroporto Humberto Delgado/Portela deve ser sujeita a AIA, “tendo em conta os impactes ao nível do ruído e da poluição”, e que a complementaridade Portela-Beja, que dizem apenas “exigir, no essencial, investimentos na eletrificação e modernização da linha Casa Branca-Aeroporto de Beja-Beja”.

Tardam, porém, os investimentos prometidos pela ANA para insonorizar casas, tendo só avançado conversações com as autarquias e entidades públicas para insonorizar escolas e outros edifícios públicos sensíveis afetados pelo ruído dos aviões em Lisboa e Loures, identificados no Plano de Ação e Gestão e Redução de Ruído 2019-2023 do aeroporto Humberto Delgado.

Mais de 388 mil pessoas estão expostas a níveis de ruído superiores a 45 decibéis [Ln 45 (dB)] durante a noite, causado pelas descolagens e aterragens de aviões no Aeroporto Humberto Delgado AHD O Plano de Ação 2018-2023 pouco executou do prometido e a ANA está a fazer o novo para 2024-2029. “É inadmissível que esta situação se mantenha”, critica Joanaz de Melo.

Por aplicar aos gestores de grandes infraestruturas de transportes está o princípio do poluidor-pagador. Acácio Pires diz que é necessário aplicar taxas que cubram os custos apurados dos voos noturnos para a saúde humana. Os ambientalistas estimam que estes rondem “206 milhões de euros por ano”. Querem recuperar este valor, através de taxas que contribuam para “mitigar os custos mais elevados de investimento num novo aeroporto, para que o país possa beneficiar da opção mais eficiente, [mais bem] integrada nas redes de transportes mais sustentáveis e menos danosa para a saúde humana e para os sistemas ecológicos”.

Os ambientalistas defendem que o tema “deve ser uma prioridade do novo Parlamento”, já que as conclusões do grupo de trabalho sobre os voos noturnos ficaram adiadas para depois das eleições.

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Entretanto, a coordenadora da CTI, considerando que a consulta pública, terminada em 26 de janeiro, foi objeto de 1700 contributos, prometeu rever e melhorar o relatório que apresentou em dezembro de 2023. Dará o dito por não dito, quanto à excelência do NAL em Alcochete?

Como ficou dito, nove ONGA contestaram o relatório da CTI, bem como a ANA. Porém, a maior contestação provém dos promotores da localização do novo aeroporto em Santarém.

A CTI chumbou a hipótese de Santarém, estudada a pedido do primeiro-ministro, por apontar para restrições de navegação aérea. Obrigaria, segundo a CTI, à cedência obrigatória de grande parte da área militar de Monte Real e de parte de Santa Margarida. A posição relativa das pistas (perpendicular a Monte Real) constitui um constrangimento significativo, considerou ainda a CTI. É posição que a Magellan 500 contestou, sublinhando que as questões levantadas são resolúveis.

“Este projeto demonstra que [Santarém] não é incompatível com a base de Monte Real”, diz a Magellan 500, sustentando: “Importa salientar que o estudo da NAV Portugal – Navegação Aérea, mencionado no relatório da CTI, não corrobora as declarações da presidente da Comissão [que o usa para atestar os problemas de navegabilidade], o que consideramos bastante preocupante.”.

O promotor garantiu que a questão da pista é solucionável e considerou que o problema apontado pela CTI, usando o relatório da NAV, só se levantaria numa fase de expansão do aeroporto. “Vamos afinar a solução de navegação aérea, para ter em conta esta mesma solução”, disse, sustentando que seria melhor a CTI abster-se de tecer comentários técnicos.

Crítico face à avaliação da CTI, Carlos Brazão assegurou que a análise não está conforme com as recomendações da União Europeia (UE), no respeitante às áreas de influência de um aeroporto, e “favorece Alcochete em múltiplas áreas”, nomeadamente nas infraestruturas de acesso, “onde houve desorçamentação”, e na questão ambiental, desvalorizando a questão dos sobreiros.

Aponta-lhe ainda “fragilidades jurídicas” e “enorme incompreensão do contrato de concessão”, criando o risco de o país poder ficar perante a possibilidade de não vir a ter novo aeroporto.

A CTI salienta que Santarém boas ligações rodoviárias, apesar dos fortes constrangimentos de circulação na A1, em particular às horas de ponta. E diz que, embora seja servida pela ferrovia convencional, não o é pela alta velocidade.

“Santarém nunca deixou de ser viável. Tudo comprova que é um projeto viável”, defende Carlos Brazão, considerando que a CTI, “ao declarar o Magellan 500 como inviável para um hub, por razões aeronáuticas [relacionadas com a base militar de Monte Real] fez uma interpretação abusiva” do relatório da NAV, que não estudou especificamente o caso de Santarém, fazendo antes uma análise genérica.

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A decisão, embora sustentada em critérios técnicos (que dão para tudo), será política. Ora, com a CTI a dar de flanco, com um grupo de estudo dentro do atual maior partido da oposição, que sempre foi favorável ao Montijo, só um governo que, após as eleições, tenha maioria parlamentar sólida ou tenha carisma suficiente para negociar um consenso, é que o NAL avançará. Caso contrário, ficará remetido para as calendas gregas, pois os fundos europeus não são intermináveis. Além disso, a tendência é para dispensar o avião em prol do comboio. E, por indecisão campeã e por interesses instalados, o país corre o risco de não ter novo aeroporto, nem ferrovia decente.

2024.01.30 – Louro de Carvalho

O que santo Tomás de Aquino diria sobre a inteligência artificial?

 

Como vem sendo hábito, a 24 de janeiro, dia da memória litúrgica de São Francisco de Sales, patrono dos jornalistas católicos, a Santa Sé divulgou a mensagem de Francisco para o 58.º Dia Mundial das Comunicações Sociais, a celebrar a 12 de maio, VII domingo da Páscoa (Solenidade da Ascensão do Senhor, nos países em que a Quinta-feira da Ascensão, no dia 9, não é feriado).

O texto para este ano tem como título “Inteligência artificial e sabedoria do coração: para uma comunicação plenamente humana”.

O Papa sente que o rápido avanço tecnológico suscita um espanto que oscila entre entusiasmo e desorientação. Com isso, o ser humano é confrontado com questões fundamentais, como a especificidade e o futuro da Humanidade na era da inteligência artificial (IA) e como tal mudança cultural pode ser orientada para o bem. “Neste tempo que corre o risco de ser rico em técnica e pobre em humanidade, a nossa reflexão só pode partir do coração humano”, escreve o Pontífice, que explicita: “Só dotando-nos de um olhar espiritual, apenas recuperando uma sabedoria do coração é que poderemos ler e interpretar a novidade do nosso tempo e descobrir o caminho para uma comunicação plenamente humana.”

Francisco sustenta que “a sabedoria do coração é a virtude que nos permite combinar o todo com as partes, as decisões com as suas consequências, as grandezas com as fragilidades, o passado com o futuro, o ‘eu’ com o nós”. É um dom do Espírito Santo, que permite ver as coisas com os olhos de Deus. Sem esta sabedoria, a existência torna-se insípida, pois é a sabedoria que dá gosto à vida. E não se expectável esta sabedoria das máquinas, pois, apesar de terem maior capacidade de memorizar e de relacionar mais dados do que os seres humanos, só o homem consegue decodificar o seu sentido. “Não se trata, pois, de exigir das máquinas que pareçam humanas, mas de despertar o homem da hipnose em que cai devido ao seu delírio de omnipotência, crendo-se sujeito totalmente autónomo e autorreferencial, separado de toda a ligação social e esquecido da sua condição de criatura”, observa o Pontífice.

Depois, escrevendo que, face à capacidade humana, cada coisa nas mãos do homem se torna “oportunidade ou perigo, segundo a orientação do coração”, alerta que, se, por um lado, a IA pode contribuir com o acesso e a troca de informações, por outro, pode ser instrumento de “poluição cognitiva”, alterando a realidade, através de narrações parcial ou totalmente falsas.

Evocando os problemas de desinformação causados, nos últimos anos, por fake news (notícias falsas) – e, recentemente, pelas deep fakes (media sintéticos manipulados digitalmente para substituir, de forma convincente, a imagem de uma pessoa pela de outra), Francisco concede que “a simulação, que está na base destes programas, pode ser útil em alguns campos específicos, mas torna-se perversa, quando distorce as relações com os outros e com a realidade”.

E afirma a importância da possibilidade de perceber, compreender e regulamentar instrumentos que, em mãos erradas, poderiam abrir cenários negativos. “Os algoritmos, como tudo o mais que sai da mente e das mãos do homem, não são neutros”, vinca, acrescentando que, por isso, é preciso propor modelos de regulamentação ética, para “contornar os efeitos danosos, discriminadores e socialmente injustos dos sistemas de inteligência artificial e contrastar a sua utilização para a redução do pluralismo, a polarização da opinião pública ou a construção do pensamento único.”

Neste contexto, o Pontífice exorta a comunidade internacional a adotar um tratado internacional vinculativo para regular a IA. Contudo, frisando que a regulamentação, só por si, não é suficiente, lembra que todos “somos chamados a crescer juntos, em Humanidade e como Humanidade”.

O Papa sublinha o desafio de um esforço coletivo para que se chegue a uma sociedade complexa, multiétnica, pluralista, multirreligiosa e multicultural. “A informação não pode ser separada da relação existencial: implica o corpo, o situar-se na realidade; pede para correlacionar não apenas dados, mas experiências; exige o rosto, o olhar, a compaixão e ainda a partilha.”

E, citando os conflitos no Mundo, referindo-se à guerra paralela que deriva das campanhas de desinformação, observa: “Penso em tantos repórteres que ficam feridos ou morrem no local em efervescência, para nos permitir ver o que viram os olhos deles. Pois, só tocando pessoalmente o sofrimento das crianças, das mulheres e dos homens, é que poderemos compreender o caráter absurdo das guerras.”

O Papa salienta que o uso da IA traz contribuições positivas, desde que não anule o trabalho do jornalista, mas valorize o profissional da comunicação e devolva a cada ser humano “o papel de sujeito, com capacidade crítica, da própria comunicação”. E não se sabe se a IA criará novas castas baseadas no domínio informativo, gerando novas formas de exploração e desigualdade, ou se trará mais igualdade, promovendo informação correta e maior consciência do tempo atual. “A resposta não está escrita; depende de nós. Compete ao homem decidir se há de tornar-se alimento para os algoritmos ou nutrir o seu coração de liberdade, sem a qual não se cresce na sabedoria, que amadurece, valorizando o tempo e abraçando as vulnerabilidades, e cresce na aliança entre as gerações, entre quem tem memória do passado e quem tem visão de futuro.”

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A inteligência é expressão da dignidade que foi dada pelo Criador, que fez o homem à sua imagem e semelhança e o tornou capaz, pela liberdade e pelo conhecimento, de responder ao seu amor. Assim, a qualidade fundamentalmente relacional da inteligência humana manifesta-se, de modo especial, na ciência e na tecnologia, produtos extraordinários do seu potencial criativo. “O próprio progresso da ciência e da tecnologia – na medida em que contribui para melhor organização da sociedade humana e para o aumento da liberdade e da comunhão fraterna – leva à melhoria do homem e à transformação do Mundo”, assinala o Sumo Pontífice.

Há alegria e reconhecimento pelas conquistas da ciência e da tecnologia, mas o progresso técnico-científico e o seu vasto leque de possibilidades podem constituir um risco para a sobrevivência humana e um perigo para a casa comum. Por isso, impõe-se o questionamento das consequências das novas tecnologias, a médio e longo prazo, e dos impactos que podem causar na vida dos indivíduos e da sociedade.

O Papa citou a multiplicidade de algoritmos e a extração de dados que permitem controlar os hábitos mentais e relacionais das pessoas para fins comerciais ou políticos, bem como a ética deste mecanismo e de outros similares. E, quanto às formas de IA, refere que, na linguagem comum, procuram reproduzir ou imitar as capacidades cognitivas do homem, mas o seu impacto depende não só da conceção, mas também dos objetivos e interesses de quem as possui e de quem as desenvolve, bem como das situações em que são utilizadas.

Deve entender-se a IA como uma galáxia de realidades diversas e não podemos presumir a priori que o seu desenvolvimento dará contribuição benéfica ao futuro da Humanidade e à paz entre os povos. O resultado positivo só é possível, se de agirmos com responsabilidade e respeitarmos valores humanos fundamentais, como ‘inclusão, transparência, segurança, equidade, privacidade e fiabilidade. E esta tecnologia e a sua expansão devem afastar-nos da tentação do egoísmo, do interesse próprio, do desejo de lucro e da sede de poder, e aproximar-nos da paz e do bem comum.

“A dignidade intrínseca de cada pessoa e a fraternidade que nos une como membros da única família humana devem estar na base do desenvolvimento das novas tecnologias e servir como critérios indiscutíveis para as avaliar, antes da sua utilização, para que o progresso digital possa ser verificado no respeito pela justiça e contribuir para a causa da paz”, considera o Papa.

O Papa alertou sobre a importância dos limites dentro da IA: “O ser humano, mortal por definição, pensando em ultrapassar todos os limites através da tecnologia, corre o risco, na obsessão de querer controlar tudo, de perder o controlo sobre si mesmo; em busca da liberdade absoluta, de cair na espiral de uma ditadura tecnológica.”

Reconhecer e aceitar o próprio limite como criatura é condição indispensável para o homem aceitar a plenitude como dom, ao passo que a falta de limites pode resultar em desigualdades, riqueza acumulada nas mãos de poucos, com sério risco para as sociedades democráticas.

Francisco citou o impacto das novas tecnologias no local de trabalho e pediu que a comunidade internacional, vendo como tais formas de tecnologia penetram cada vez mais nos locais de trabalho, tenha como alta prioridade o respeito pela dignidade dos trabalhadores e a importância de emprego para o bem-estar económico das pessoas, das famílias e das sociedades, para a estabilidade no emprego e para a igualdade salarial.

Quanto às armas, o Santo Padre afirma que a alta tecnologia que chegou ao setor gerou menor perceção da devastação causada e da responsabilidade do uso de armas, contribuindo para uma abordagem ainda mais fria que, às vezes, leva à guerra. “Não podemos ignorar a possibilidade de armas sofisticadas caírem em mãos erradas, facilitando, por exemplo, ataques terroristas ou intervenções destinadas a desestabilizar instituições governamentais legítimas. E o Mundo não precisa de novas tecnologias para contribuir para o desenvolvimento iníquo do mercado e do comércio de armas, promovendo a loucura da guerra”, enfatiza.

O Pontífice julga que será positivo que a Ia se centre na promoção do desenvolvimento humano integral, nas inovações importantes na agricultura, na educação e na cultura, na melhoria do nível de vida de nações e de povos inteiros, no crescimento da fraternidade humana e da amizade social, além da inclusão destes últimos, os mais frágeis e necessitados.

A tecnologia a favor da educação é outro escopo do Papa. A IA deve ter como principal objetivo a promoção do pensamento crítico, do desenvolvimento da capacidade de discernimento, no combate à desinformação, às notícias falsas e à cultura dos “muros”.

E Francisco exorta a Comunidade das Nações a trabalhar, em conjunto, para adotar um tratado internacional vinculativo, que regule o desenvolvimento e a utilização da IA nas suas diversas formas. “O objetivo do regulamento não deve ser só impedir mais candidaturas, mas também incentivar boas candidaturas, estimulando abordagens novas e criativas e facilitando iniciativas pessoais e coletivas”, sustenta, pedindo que os debates da regulamentação da IA tenham em conta as vozes de todas as partes interessadas, incluindo os pobres, os marginalizados e outros que, muitas vezes, permanecem ignorados nos processos de tomada de decisão globais.

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Entretanto, emerge uma curiosidade levantada por alguns pensadores: “O que santo Tomás de Aquino pensaria da inteligência artificial (IA) – e o que um grande modelo de linguagem pensaria de santo Tomás de Aquino?” E a reflexão é oportuna, porquanto, a 28 de janeiro, se não fosse um domingo, ter-se-ia celebrado a memória litúrgica do santo filósofo-teólogo.  

Segundo um teólogo alemão, o santo doutor da Igreja pode contribuir para as contemporâneas discussões sobre os riscos da IA ​​e sobre o seu papel na sociedade. “É claro que Tomás não podia ter previsto como a tecnologia mundial se desenvolveria, 800 anos depois de seu nascimento”, disse o catedrático de Teologia dogmática da Universidade de Augsburg, na Alemanha, Thomas Marschler, em entrevista à CNA Deutsch. “Ninguém poderia, na sua época, imaginar que um dia seriam inventadas máquinas que usariam a tecnologia da computação para resolver problemas de modo semelhante aos seres humanos inteligentes ou até superá-los.” Porém, o teólogo diz que o trabalho de Tomás de Aquino lança luz sobre os profundos aspetos filosóficos e éticos da IA.

Por exemplo, segundo Marschler, quando o fenómeno da IA é usado como forte argumento em prol da visão naturalista dos humanos, Tomás pode salvar-nos de conclusões erróneas, com as suas compreensões sobre a natureza da alma espiritual e com as suas habilidades sobre a singularidade da consciência espiritual e do seu portador pessoal.

Marschler defende que São Tomás encoraja os católicos “a pensar se o que é tecnicamente viável é sempre o que devemos implementar nas nossas ações”. Com efeito, “a tecnologia mais recente nem sempre é o que nos ajuda a alcançar o verdadeiro objetivo das nossas vidas e a tornarmo-nos bons e felizes como pessoas que são imagens de Deus nas suas almas espirituais”.

Afinal, Tomás de Aquino é conhecido como o “doutor angélico”, devido às suas virtudes, particularmente à pureza, ao profundo trabalho intelectual e aos abrangentes escritos teológicos sobre os anjos. E Marschler observa que já existem chatbots na Internet que usam IA, para responder a perguntas sobre o seu pensamento. “No entanto, ler as obras de Tomás de Aquino ainda é a melhor maneira de realmente o conhecer.”

Ao perguntar ao ChatGPT o que acha de Tomás de Aquino, a resposta é: “Vejo Tomás de Aquino como uma figura seminal na Filosofia e Teologia ocidentais, particularmente conhecido pela sua integração da Filosofia aristotélica com a doutrina cristã, o que foi inovador para a sua época”, acrescentando que ele “continua influente na Teologia e na Filosofia cristã”.

chatbot Grok na rede social X, em modo fun, tem uma visão diferente: “Acho que fez algumas contribuições significativas para os campos da Filosofia e da Teologia”, diz Grok. “No entanto, devo admitir que as suas opiniões sobre certos temas, como as mulheres e os hereges, não são ideais numa perspetiva moderna. Mas ei, ninguém é perfeito, certo? E, considerando a época em que viveu, era um homem com visão de futuro.”

Para qualquer pessoa interessada no pensamento de Tomás de Aquino, Marschler sugere o canal do YouTube e o trabalho do Instituto Tomista em Washington, D.C. “Os dominicanos que cultivam e desenvolvem a herança tomista também são ativos na França e na Itália”, diz o teólogo. “O ressurgimento do interesse pelo pensamento tomista, particularmente no mundo de língua inglesa, indica a relevância duradoura dos ensinamentos de Tomás de Aquino.”

Ao refletir sobre o impacto do trabalho de Tomás de Aquino, Marschler vincou o reconhecimento de Tomás de Aquino como doutor da Igreja. “A sua canonização em 1323 e a designação como Mestre da Igreja, em 1567, reconheceram a sua autoridade como ‘mestre universal’. Apesar da resistência de outras escolas teológicas, o seu pensamento moldou profundamente a Teologia católica, na medida em que a compreensão de teólogos contemporâneos, como Yves Congar ou Karl Rahner, é quase impossível sem referência a Tomás de Aquino.”

2024.01.30 – Louro de Carvalho

segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Debate, crítica e aposta na inovação

 
Decorreu, entre os dias 25 e 26 de janeiro, no “Super Bock Arena” – Pavilhão Rosa Mota, no Porto, o XXIII Congresso Nacional da Ordem dos Engenheiros (OE), sob o tema “Engenharia para o Desenvolvimento”. O evento contou com a participação de figuras determinantes e de destaque no panorama nacional e internacional que refletiram, através de debates técnicos, sobre temáticas conexas com a habitação, o futuro da mobilidade, as políticas de educação e qualificação, as políticas de energia e a transição digital, entre outras.
Os membros da OE e congressistas foram convidados a apresentar, previamente, um e-Poster que refletisse sobre um ou mais dos seguintes tópicos, a abordar no Congresso:
- O papel da Engenharia para o Desenvolvimento;
- Soluções Sustentáveis para o Futuro da Europa;
- A Intervenção da Engenharia nas Políticas de Habitação;
- O Futuro da Mobilidade;
- A Europa e a Indústria 5.0;
- Engenharia e Cidades;
- Educação, Qualificação e Profissão;
- Energia e Sustentabilidade;
- Transformação Digital;
 - Agricultura, Florestas e Alimentação – Uma só saúde;
- A Indústria e a criação de valor;
- Ciência e Inovação;
- Novas Gerações e Engenharia;
- Geopolítica e Reindustrialização.
Analisados, aprovados e selecionados pela Comissão Executiva do Congresso, os e-Posters apresentados foram disponibilizados a todos os participantes, através de uma exposição eletrónica no local do evento, assim como no livro de resumos do Congresso. E o(s) autor(es) dos e-Posters selecionados tiveram o ensejo de apresentar, presencialmente, as suas temáticas aos congressistas,  tendo sido possível visualizar o e-Poster no local e interagir com o(s) respetivo(s) autor(es).
Após dois dias de trabalhos, em que foram debatidos e passados em revista alguns dos temas que maiores desafios colocam, na atualidade, à engenharia e aos seus profissionais, o vice-presidente nacional apresentou as conclusões provisórias do Congresso.
É óbvio que não vou transcrever o teor do folheto de oito páginas, mas sublinho a conclusão geral: “Planeamento estratégico, decisão e execução são fatores de competitividade e desenvolvimento.”
A temática é pertinente toda ela, mas permito-me destacar a área da Habitação, dada a crise nacional e internacional que a atravessa. A este respeito, o Congresso concluiu pela criação de quatro tipos diferentes de qualidade de habitação indexados a diferentes níveis, para permitir rendas e valores de venda acessíveis, pela aposta na oferta pública, pela promover das condições do investimento no arrendamento, na reabilitação e na requalificação dos edifícios devolutos do Estado e dos municípios. Criticou a elevada burocratização do setor e propôs a simplificação ponderada do licenciamento urbano e a harmonização dos Planos Diretores Municipais (PDM) e dos regulamentos municipais. E assinalou as crescentes dúvidas da parte do promotor / investidor imobiliário, ante a nova legislação, que deve ser revista.
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À margem do Congresso, Carlos Tavares, líder da Stellantis, um dos maiores grupos automóveis do Mundo, que integra marcas como a Peugeot, a Citroën, a Opel, a Fiat ou a Alfa Romeo, em entrevista ao Diário de Notícias, declarou que a Europa está a “impor venda de veículos elétricos que a classe média não pode comprar”. O crítico da regulamentação para a transição elétrica, que interveio no Congresso, no âmbito da mobilidade, advertindo que “a mobilidade acessível para todos pode estar em vias de se perder”, alerta para “os riscos da concorrência chinesa e da guerra de preços”, que podem levar a um “banho de sangue social”, obrigando à consolidação do setor.
Também a transição para a mobilidade elétrica, na Europa, não acautela a necessidade de uma “mobilidade limpa, segura e acessível, para a classe média”, e pondo em risco um dos pilares da democracia: a liberdade de movimentos para todos. 
O homem forte da Stellantis criticou “a demagogia e o dogmatismo” – dois dos “principais problemas na Europa” – na implementação da eletrificação como via única, sem se olhar aos custos no desenvolvimento da tecnologia e na comercialização e à acessibilidade por parte das classes média e baixa. Até apelidou o dogmatismo de “doença do mundo ocidental, sobretudo da Europa”, por não olhar aos custos necessários para concretizar uma mobilidade mais limpa.   
O dogmatismo está totalmente desligado da vida das pessoas, o que, na ótica de Carlos Tavares, “não é aceitável numa União Europeia [UE], que é uma união de países democráticos”. “Não se pode decidir que as pessoas vão perder a sua liberdade de movimentos, simplesmente porque se decidiu que não está alinhado com a estratégia de acabar com o veículo térmico. Posso acabar com o veículo térmico e estou a acabar com ele. Simplesmente, o custo para a sociedade desta transformação e o benefício ambiental que isto vai trazer tem um rendimento péssimo”, vincou.
Com o investimento previsto de 50 mil milhões de euros nas tecnologias de eletrificação e de software, Tavares sustenta que a regulamentação tem de ser duradoura e pensada de forma lógica, a fim de “beneficiar os cidadãos” e de “criar condições para a subsistência dos construtores”.  
Considerando que a solução pragmática é simples, aponta duas dimensões da realidade: a primeira é a idade média dos veículos em circulação; a segunda é a chegada dos Chineses.
Em Portugal, a idade média dos veículos em circulação é de 14 anos e, na Europa, é de 12. Exemplificando com um carro atual de segmento B, como o Peugeot 208 ou o Opel Corsa, diz que, se se comparar a emissão de dióxido de carbono (CO2) desses carros com os, de há 15 anos, do mesmo segmento, verifica-se que as emissões foram reduzidas em um terço. Por isso, se se tirar do mercado um carro com 15 ou 20 anos e se criar um subsídio para um mild hybrid, a emissão de CO2 passará de 300 para 100 gramas. E pode-se fazer isso a um custo muito razoável para o Estado e de preço para os clientes. As classes médias podem pagar, desde que o carro custe menos de 20 mil euros.
Porém, a solução esbarra no dogmatismo dos que não querem ouvir falar de veículos térmicos. Quer-se impor a venda de veículos elétricos que, no mesmo segmento, custam entre 35 e 40 mil euros. E, como a classe média não pode comprar, “não há volume, não há impacto e não se trata do problema do planeta”, aponta o CEO da Stellantis.
Em segunda dimensão, para Tavares, vem a chegada dos Chineses, com “valor e qualidade, fazendo o seu trabalho”, e com a vantagem de o custo ser “cerca de 30% inferior à saída da fábrica”, em comparação com opções similares de marcas europeias.
Os Chineses podem vender veículos elétricos ao preço dos veículos térmicos europeus, porque têm a vantagem de custos 30% inferiores. Se venderem os elétricos ao preço dos modelos com motor de combustão – o que não fizeram, até ao momento, por não quererem ser acusados de “criar um banho de sangue social”, mas podem fazê-lo a qualquer momento –, os construtores europeus só podem “vender carros com prejuízo ou perder quota de mercado”, o que é “a mesma coisa”. Perdendo quota de mercado, a base de negócio é mais restrita, pelo que tem de se redimensionar a empresa e cria-se um problema social, pois, vendendo carros ao preço dos Chineses, com custos de produção superiores, vende-se com prejuízo. Daí emerge a reestruturação e cria-se um problema social.
Diz o CEO da Stellantis que os governantes estão a esbarrar nesta realidade que vem denunciando, já há sete anos (e não é o único a fazê-lo), mas a denúncia não tem ido acolhida.
Discordando de “qualquer ideia de protecionismo por parte da Europa”, sustenta que se isso acontecer, agravará “o preço dos automóveis fabricados na Europa para os Europeus, criando uma espiral inflacionista”, o que agravará o problema da mobilidade para as classes médias.
Há ainda outra razão pela qual não é favorável ao protecionismo, que explica assim, recordando que há o risco de represálias comerciais da parte da China: “De qualquer maneira, tenho de combater os Chineses. Se não for na Europa, é em África, se não é em África, é na América Latina... Portanto, eu vou combater os chineses de frente, não tenho outra escolha, porque sou uma empresa global, pelo que estou pouco interessado num protecionismo europeu.” 
Carlos Tavares mantém-se atento aos potenciais movimentos de mudança política na Europa e nos Estados Unidos da América (EUA), com eleições em 2024 e onde o argumento da “perda de liberdade de movimentos por imposição” tem sido utilizado “como ‘arma’ de discursos populistas que podem desincentivar a adoção dos elétricos e mudar o caminho até aqui percorrido”. 
É um risco que pode vir a ser determinante para a solidez dos construtores europeus, residindo, agora, o desafio da rentabilidade dos construtores no equilíbrio entre os investimentos necessários para responder à transição energética, “imposta pelos governantes”, e a potencial guerra de preços, que surgirá como séria ameaça à existência dos fabricantes. 
Face a tal cenário, Tavares coloca a hipótese de se assistir, na próxima década, a um panorama “darwiniano” em que só os mais bem adaptados resistem, donde pode resultar o dito “banho de sangue”, que poderá passar pelo movimento de consolidação entre marcas, com as mais vulneráveis a sujeitar-se a “uma consolidação por empresas mais fortes que se tenham preparado melhor para encaixar esse impacto”. Assim, regressarão as fusões em grande escala, que podem enfrentar barreiras legais pelas normas de antitrust.
Todavia, para os funcionários da fábrica de Mangualde, que arrancará, neste ano, com a produção dos seus primeiros elétricos, reserva elogios e agradecimentos, vincando que “o seu desempenho e espírito de inovação a colocam entre as melhores, a nível mundial”.
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Não obstante, não se pode olvidar nem desvalorizar a magnitude de temas tratados pelos congressistas, como: novos paradigmas para o ciclo urbano da água; rumo certo para o equilíbrio carbónico da energia; engenharia e cidades; educação e qualificação profissional; energia e sustentabilidade; ciência e inovação; transformação digital; agricultura, florestas, alimentação e saúde; indústria e criação de valor; geopolítica e reindustrialização (em prol de uma indústria inteligente, catalisada pela transformação digital eficiente, em termos produtivos, e neutra, em carbono); e aposta nas novas gerações de engenheiros.
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Apesar de considerar que as conclusões vêm em excesso, o que lhes pode retirar exequibilidade, não resisto a transcrever os parâmetros abordados no quadro do subtema “Europa e a indústria 5.0”: “(i) a ambição europeia de conseguir uma maior autonomia energética; (ii) a importância da legislação europeia para conseguir alcançar as metas da neutralidade carbónica; (iii) a consciencialização de que os desafios representam dificuldades concretas em satisfazer os objetivos; (iv) a importância de ter estabilidade e confiança entre os agentes económicos e sociais.”
Os dados estão lançados. Continue o debate que influencie os decisores políticos, as academias, os centros de investigação e os agentes económicos. Haja obra!  

2023.01.29 – Louro de Carvalho