terça-feira, 2 de janeiro de 2024

Jesus, a bênção de Deus para toda a Humanidade

 

Quando se completou o tempo, Deus enviou seu Filho, nascido de uma mulher...” (Gl. 4,4)

Na Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus – o maior título atribuído a Maria, mãe de Jesus –, na oitava do Natal (1 de janeiro), por desejo do Papa São Paulo VI, rezamos pela paz no Mundo, a partir de 1968, com todos os homens de boa vontade.

Assim, no Dia Mundial da Paz, a liturgia da solenidade da Santa Mãe de Deus leva-nos a contemplar a figura da mulher que, ao escutar o plano salvífico de Deus, deu à Humanidade o tão almejado libertador, a maior de todas as bênçãos. E ao render graças pelo primeiro dia do ano civil, as leituras bíblicas transportam como centrais as palavras “bênção, filiação e salvação”, ensinando que, no início de uma caminhada, é necessário permanecer com as mãos dadas com o Deus que nos ama e deseja, em cada dia, dar-nos a sua bênção e a vida em plenitude.

A primeira leitura (Nm 6,22-27) ensina que, no Antigo Testamento (AT), a relação entre Deus e o ser humano era sempre intermediada, ou seja, a bênção divina só era concedida por meio de um mediador indicado por Deus. Eram os sacerdotes quem exercia a mediação. A fórmula aqui apresentada ficou conhecida como a “Bênção de Aarão” – que, séculos mais tarde, São Francisco de Assis amplamente usou e difundiu, no Ocidente. A bênção apresentada em três proclamações revela três desejos ou sonhos essenciais do ser humano: proteção, perdão e paz.

Bênção protetora: “O Senhor te abençoe e te guarde!” Marca a necessidade de cuidado e de proteção divina ante os perigos causados pelo pecado. Bênção do perdão: “O Senhor faça brilhar sobre ti a sua face e se compadeça de ti!” Mostra que o pecador é privado da face divina. Contemplar a face de Deus é voltar à comunhão com Ele e receber o seu perdão. Bênção da paz: “O Senhor volte para ti seu rosto e te dê a paz!” É a paz judaica (“shalom”) a significar abundância de colheita e pagamento de todas as dívidas. O pecado surge como a dívida impagável que foi contraída pelo ser humano. Apesar disto, Deus não recusa ofertar a sua perene paz.

Recordando o apóstolo Paulo, que afirma que, a partir da encarnação, Cristo Se torna o único e verdadeiro mediador entre Deus e a Humanidade, porque une, em Si, as duas naturezas – divina e humana –, entendemos que Jesus, na paixão e ressurreição nos garantiu, que todo aquele que viu o seu rosto contemplou o Pai (Jo 14,7-14). E, na sua cruz, todas as dívidas foram pagas e chegou, para nós, a Paz. Em Jesus, a bênção que, antes, era pronunciada de forma imaterial, tornou-se materializada, pois Ele é a manifestação encarnada da graça de Deus Pai.

Na segunda leitura (Gl 4,4-7), recordamos que a encarnação é a revelação plena de Deus, que, no seu amor, enviou o seu Filho ao encontro da Humanidade, para a libertar da escravidão de tudo o que a privava da vida em plenitude. Ao amar e obedecer irrestritamente a Deus Pai, Jesus segue a sua vontade salvífica, ama toda a Humanidade e ensina-nos que, longe da perdição, a vontade do Pai é oferecer-nos uma nova e inesperada condição: a filiação. Ao usar o termo “Abbá” (Papá, Paizinho) – expressão utilizada pelo próprio Jesus e que denota a sua condição filial –, Paulo expressa a novidade da fé cristã: a relação íntima com Deus, semelhante à da criança com o seu pai e que revela a confiança absoluta, a entrega total e o amor sem limites. Assim, entendemos que, de facto e de verdade, em Jesus somos herdeiros, e já não mais escravos. Somos filhos, somos livres e amados. Com Ele, Nele e por Ele, o amor torna-se a nossa lei.

Evangelho (Lc 2,16-21) continua a cena proclamada na noite de Natal: após o anúncio do “anjo do Senhor”, os pastores dirigiram-se a Belém e encontraram o menino, deitado na manjedoura e rodeado por animais. Com tantos e diversos grupos sociais que constituíam a sociedade na vila de Belém, foram os pastores os primeiros a receber o anúncio da chegada da Salvação, porque são a imagem de todos os desprovidos da graça de Deus. Eram analfabetos, logo não conheciam a Lei e o resto da Sagrada Escritura. Sempre sobrecarregados com os rebanhos, não iam à sinagoga ouvir a Palavra de Deus. Isto levava-os a ser tidos como pecadores pelos que se outorgavam o direito de posse sobre a salvação.

Todavia, os pastores, apesar de desprezados e menosprezados pelos poderosos, tinham em si as qualidades dos que esperavam ansiosamente pela salvação: os pobres, marginalizados e os profetas. Como os pobres, ao ouvirem atentamente o anúncio do anjo, demonstram estar dispostos a acolher a boa Notícia do nascimento de Deus. E, como os profetas, alegram-se por receberem o anúncio e glorificam a Deus, ao verem, no menino, a concretização da promessa. E, mesmo analfabetos, ao anunciarem a chegada da salvação, tornam-se anunciadores da Palavra de Deus.

Nas poucas linhas usadas para apresentar Maria, o evangelista contempla-A como modelo de fé, pois, ao proporcionar o nosso encontro com Jesus Cristo, Ela demonstra sensibilidade ao plano salvífico de Deus. Conservar os factos e as palavras em seu coração significa a capacidade de ler os sinais divinos na História, bem como a abertura para aceitar e acolher a vontade divina, na vida, e disposição para colaborar, de modo singular, com Deus na realização da salvação. Esta disponibilidade de coração para acolher a sua proposta é a primeira coisa que Deus pediu, pede e pedirá a todos a quem chama ao longo da História da salvação.

As duas atitudes apresentadas: a meditativa-contemplativa (Maria) e a missionária (pastores) definem as duas atitudes essenciais para os discípulos de Cristo. Todos nós somos igualmente chamados, em nossa vocação de filhos de Deus, pelo Batismo que nos foi dado, a permanecer em atitude de abertura e acolhimento da vontade divina e de ativa e servidora ação missionária. Só assim permaneceremos ao longo do ano civil que se inicia, com a certeza de caminharmos com Jesus Cristo cuja vida nos traz: bênção, filiação e salvação.

***

Ainda em tempo de Natal, é na alegria desta celebração, que marca o virar de página do nosso calendário, que está presente a mulher singular que saudamos e veneramos como Santa Maria, Mãe de Deus. Deus decidiu tornar-se homem entre os homens, nascendo de uma mulher. Quis habitar, não num templo de cedro ou de pedras, mas no ventre e no colo de uma mulher casada e virgem. Quis habitar entres os homens, no meio do Povo e no coração de cada crente.

O título de Mãe de Deus enaltece a fé de Maria, mas é conseguido no quadro do mistério de Cristo. Mais do que mariano é um título cristológico. Alguns clamavam que é a mãe de Jesus, mas não de Deus. Dividiam Jesus em dois: homem, de que Maria era a mãe; e Deus, de que Ela não seria a mãe. Os padres do Concílio de Éfeso (ano 431), sustentando que Jesus Cristo não pode ser dividido, mas é, ao mesmo tempo, Deus e homem, pela encarnação, concluíram que Maria é a mãe do Cristo total (homem e Deus), a Mãe de Deus (“Theotókos”). Esta proclamação foi vivamente saudada pelo Povo de Deus que acorreu em massa, com velas e com archotes, a saudar os padres conciliares (os bispos). Ora, como a Igreja faz parte do Cristo total, só faltava proclamá-La Mãe da Igreja, o que veio a fazer o Papa São Paulo VI em declaração paralela às do Concílio Vaticano II, mas perante os padres conciliares.

O evangelista vinca a reação da Mãe, face ao nascimento do Filho com as palavras: “Maria conservava todas estas palavras, meditando-as em seu coração.” De facto, Maria considera os acontecimentos de Belém como sinais que anunciam o sentido da vida de Jesus, sobretudo o mistério pascal. E, ao longo da sua vida, guardava no coração, no mais íntimo da sua pessoa, esforçando-se por entender esses sinais cada vez melhor.

“Deram-lhe o nome de Jesus…”. Todos temos nome, o que nos distingue na relação que estabelecemos com outrem. Quando fazemos algo em substituição de outra pessoa, dizemos que o fazemos em seu nome. Quando iniciamos as nossas orações, fazemo-lo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. O uso de dar um nome às pessoas vem das origens. Na Bíblia, Adão e Eva marcam esse início e ficaram encarregados de dar nome a todas as criaturas.

Advirta-se que Adão e Eva podem não ser nomes próprios de seres humanos em concreto, mas nomes que representam o género humano na sua componente masculina e feminina. Levando à letra os nomes hebraicos destas personalidades, ressalta que elas são oriundas da terra, do barro, mas elevadas à categoria de “imagem e semelhança de Deus”. Porém, já segundo o AT, os seres humanos recebem nome próprio e nomeiam todos os seres: animais, vegetais e minerais

Lucas refere que, na cerimónia da circuncisão, ao filho de Maria deram o nome de Jesus, como fora anunciado pelo Anjo. Ou seja, o nome de Jesus não foi escolha ou capricho dos pais, dos avós ou dos padrinhos, mas escolha de Deus, para significar e designar a sua missão. O nome ‘Jesus’ significa ‘Deus salva’ ou ‘Salvação de Deus’. Na Bíblia, os nomes das pessoas não surgem por acaso. Normalmente, estão associados a uma missão.

Também hoje, como discípulos de Jesus Cristo, temos o nome de ‘cristãos’. É nome que vem do começo do cristianismo, em Antioquia (At 11,26). Se assumimos esse nome, devemos dignifica-lo em todos os âmbitos da vida. Não nos chamamos apenas cristãos, somos cristãos; não nos chamamos apenas filhos de Deus, somos filhos de Deus. Temos algo de Deus, como se de uma herança genética se tratasse. Assim, tomamos parte da missão de Cristo, uma missão salvadora.

O primeiro dia do ano civil é o dia da esperança, do sonho, do futuro. Ante uma criança recém-nascida, todos os sonhos são legítimos. E, mais ainda, quando a criança tem o nome de Jesus, o Príncipe da Paz. Por isso, no início de cada ano, voltamos a sonhar com aquilo de que mais precisamos: a PAZ. E desejamo-la uns aos outros: “O Senhor volte para ti os seus olhos e te conceda a paz”. Sabemos que a paz é possível, mas depende de nós. É dom a realizar.

Não há paz sem a cultura do cuidado. E isso traduz-se no compromisso comum de proteger e de promover a dignidade e o bem de todos, enquanto disposição a interessar-se, a prestar atenção, disposição à compaixão, à reconciliação e à cura, ao respeito mútuo e ao acolhimento recíproco.

Portanto, pedimos a Deus que nos dê a paz e que faça de cada um de nós testemunha e arauto da paz e da reconciliação.

Evangelho mostra como a presença de Deus na História é fonte de alegria e de esperança para todos os homens e mulheres, mas particularmente para os pobres e os marginalizados. E sugere que Maria, a mãe de Jesus, é o modelo do crente que, em silêncio e sem espalhafato, acolhe o desígnio de Deus, o guarda no coração e se deixa guiar por ele.

A perícopa da Carta aos Gálatas recorda algo de fundamental: Cristo veio ao Mundo para nos libertar, em definitivo, do jugo da Lei; a consequência da ação redentora de Cristo é que os homens deixaram de ser escravos e passaram a ser filhos que partilham a vida de Deus.

A palavra-chave é “filho”, aplicada tanto a Cristo como aos cristãos. Cristo, o Filho, foi enviado ao Mundo pelo Pai com a missão de libertar os homens de uma religião de ritos estéreis e inúteis, que não potenciava o encontro entre Deus e os homens; e Cristo, identificando os homens com Ele, levou-os a um novo tipo de relacionamento com Deus e fê-los filhos de Deus. Por ação de Cristo, os homens deixam de ser escravos (que cumprem obrigatoriamente regras e leis) e passam a relacionar-se com Deus como filhos livres e amados, herdeiros com Cristo da vida eterna.

Paulo utiliza a palavra “abbá”, apesar de os Judeus nunca designarem Deus desta forma. Expressa uma relação muito íntima, do género da que a criança tem com o seu pai: exprime a confiança absoluta, a entrega total, o amor sem limites. A insistência de Paulo nesta palavra tem a ver com o Jesus histórico: Jesus adotou-a para expressar a confiança filial em Deus e a entrega total à sua causa. É esta a relação que os cristãos, identificados com Cristo, devem estabelecer com Deus.

Gl 4,4 é o único lugar, nos escritos paulinos, com referência à mãe de Jesus; “Deus enviou o seu Filho, nascido de uma mulher”. Nesta passagem, Paulo parece mais interessado em marcar a solidariedade de Cristo com o homem do que em deter-se em Maria. Porém, esta afirmação breve e densa marca, na sua plenitude, a glorificação de Maria como Mãe de Jesus. Pelo seu “sim” a Deus, Ela tornou possível a presença do Filho de Deus na nossa História. Temos a possibilidade de ser filhos de Deus, porque Maria ousou dizer “sim” ao desígnio de Deus.

Com a chegada de Jesus, atingimos o âmago do projeto salvífico de Deus. No Menino do presépio de Belém, a proposta libertadora que Deus tinha para nos oferecer veio ao nosso encontro e materializou-se no meio dos homens. Aliás, o nome que foi dado ao Menino, por indicação do anjo que anunciou o seu nascimento, aponta nesse sentido (“Jesus” significa “Javé salva”). O Menino do presépio é o “Salvador”, “o Messias Senhor”.

É estranho que a “boa notícia” da chegada de “um Salvador”, seja dada, em primeira mão, a gente improvável: os pastores que a sociedade palestina tinha em pouca monta e considerava longe de Deus. Lucas afirma, assim, que a proposta libertadora que Jesus traz se destina, em especial, aos pobres e marginalizados, aos que a teologia oficial excluía e condenava. Deus aproxima-se deles, em primeiro lugar, para nos dizer que os mais desgraçados, os mais abandonados, os mais esquecidos têm um lugar privilegiado no seu coração de Pai e de Mãe.

Lucas vinca a forma como os pastores respondem à chegada de Jesus, o Salvador. Diz-nos que, tendo escutado a boa nova do nascimento do libertador, se dirigem apressadamente ao encontro do Menino. O termo “apressadamente” sublinha a ânsia com que os pobres e os marginalizados esperam a ação libertadora de Deus em seu favor. Os que vivem em situação intolerável de sofrimento e de opressão reconhecem Jesus como o único Salvador e apressam-se a ir ao seu encontro. É só d’Ele que brota a libertação por que os oprimidos anseiam. A disponibilidade de coração para acolher a sua proposta é a primeira coisa que Deus pede.

Depois, Lucas mostra como os pastores reagem ao encontro com Jesus. Glorificam e louvam a Deus por tudo o que viram e ouviram: é a alegria pela libertação que se converte em ação de graças ao Libertador. E o louvor torna-se testemunho: quem faz a experiência do encontro com o Deus tem de dar testemunho, para que os outros participem da mesma experiência gratificante.

A atitude de Maria é exemplar: mantém-se em silêncio, mas escuta e guarda. Lê os sinais da presença amorosa de Deus na História dos homens, acolhe no coração o desígnio de Deus, procura entender os acontecimentos maravilhosos que testemunha e acomodar a vida aos desafios de Deus. A atitude meditativa de Maria, que interioriza os acontecimentos, complementa a atitude missionária dos pastores, que testemunham, com exuberância, a ação salvadora de Deus expressa na encarnação. Estas duas atitudes definem as coordenadas essenciais da vida do crente.

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Esta solenidade dá-nos muito que assumir para atuar. Deus o quer!

2024.01.01 – Louro de Carvalho

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