sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

A propósito da chamada “lei malandra” e de meandros da política

 

Foi promulgado e publicado o Decreto-Lei n.º 10/2024, de 8 de janeiro, que procede à reforma e simplificação dos licenciamentos no âmbito do urbanismo, ordenamento do território e indústria, em torno do qual está nas pantalhas do debate a conveniente polémica.

O governo, designadamente o primeiro-ministro e o ex-ministro das Infraestruturas, estão a ser apontados de, com este diploma, incorrer em crime de prevaricação por favorecimento ao grupo empresarial responsável pelo Data Center de Sines e quejandos.

O Ministério Público (MP), em sede de recurso sobre as pedidas de coação decretadas pelo juiz de instrução (JIC) da Operação Influencer, aponta João Galamba, ex-secretário de Estado da Energia e ex-ministro das Infraestruturas de ser o mentor e o responsável de todo o conluio. Por outro lado, o processo em curso no Supremo Tribunal de Justiça (STJ), que visa o PM, iniciou-se a 17 de outubro, quando o referido diploma foi apresentado ao Conselho de Ministros a 19 de outubro, para discussão e aprovação, o que deixa entrever fuga de informação para o MP.

O diploma foi aprovado pelo governo no uso da autorização legislativa concedida pela Lei n.º 50/2023, de 28 de agosto, no desenvolvimento do regime jurídico estabelecido pela Lei n.º 31/2014, de 30 de maio. Porém, alguns observadores sustentam que a norma que azou a polémica não consta do teor da lei de autorização legislativa. Ou eles ou eu não estamos a ler bem essa lei e o decreto-lei em causa. É óbvio que a letra da lei de autorização legislativa é mais contida do que o teor do decreto-lei produzido ao abrigo dessa lei da Assembleia de República (AR). 

O ponto de discussão é a alínea h) do n.º 1 do decreto-lei, que estabelece a “flexibilização dos termos em que pode ser aceite o pedido do prazo de execução das obras, através da eliminação de que este apenas possa correr por uma única vez e do limite de a prorrogação não poder ser superior a metade do prazo inicial”. Diz o Presidente da República (PR) que esta norma foi corrigida, face à apresentada no texto original, pelo que o diploma, na versão original (cujo teor não se conhece), fora objeto de veto político. Não obstante, mantém-se o preâmbulo, que explicita o sentido do articulado. Quero dizer que são responsáveis todos os intervenientes: governo, AR e PR. 

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O jornal Público, de 10 de janeiro, publicou um artigo de opinião de Vitalino Canas, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, a comentar esta matéria na ótica académica, começando por dizer que, em exames de Direito, os professores equacionam problemas práticos, de realidade e ficção, que os alunos devem resolver, sendo, não raro, a realidade mais criativa do que a imaginação, como demonstra a “lei malandra”, expressão que resulta de uma suposta conversa escutada entre alegados preparadores do decreto-lei em causa.

Diz Vitalino Canas que se trata de um decreto-lei do governo, aprovado em Conselho de Ministros (CM), no exercício da função legislativa, sujeito a promulgação pelo PR, e que o processo legislativo, no governo obedece a trâmites e formalidades decorrentes da Constituição e do Regimento do Conselho de Ministros, sendo possível refazer, a posteriori, o que foi proposto pelo membro do governo que teve a iniciativa e a versão apreciada na reunião de Secretários de Estado e na reunião do CM, que a apreciou e aprovou.

Contudo, é difícil compreender o que sucede nos intervalos desses momentos formalizados: quem foi o promotor de alterações, com que fundamento, como foram discutidas e aceites. E podem ocorrer alterações após a aprovação pelo CM. Tal falta de transparência no exercício de um poder soberano deve ser corrigida, para garantia de que o processo legislativo do governo será tão translúcido como o da AR, pelo menos a posteriori.

Segundo o Professor, a obscuridade adensa-se, quando o decreto transita para Belém, para promulgação, nos termos do artigo 136.º, n.º 4, da Constituição. Com efeito, é usual entre os serviços do PR e a Presidência do Conselho de Ministros (PCM), se o decreto é controverso, tentar-se evitar o veto presidencial, com o diálogo sobre esclarecimentos e emendas que o decreto deve sofrer para superar dúvidas do PR.

Envolvem-se no diálogo os membros do governo diretamente interessados, em razão da matéria, membros da PCM e, eventualmente o PM. O diploma, em princípio, não volta ao CM, implicando que a versão que sai no Diário da República, dada como aprovada em CM, promulgada pelo PR e referendada pelo governo, é diferente da que foi submetida a Conselho de Ministros. Isto, que não devia acontecer (todo o decreto-lei deve provir do CM e não de alguns como com Salazar) levanta uma questão ao MP: “Como é que se pode provar, neste contexto, um eventual crime de prevaricação?” E levanta uma questão aos alunos: “Essa prática é conforme com a Constituição?”

Porém, no caso em apreço, não aconteceu bem assim. O PR deu a conhecer que vetou o decreto. Se assim foi, ocorreu o que determina o artigo 136.º, n.º 4, da Constituição: o PR terá comunicado ao governo, por escrito, o sentido do veto, estando tal facto, documentado e datado. E o governo aprovou, em CM, como é imperativo constitucional, novo decreto, correspondendo às observações do PR, remetendo-lho para promulgação. E a questão para os alunos é: “Se assim não tiver acontecido, o decreto-lei publicado é constitucionalmente válido?”

Todavia, mais relevante, do ponto de vista constitucional, é o seguinte: a produção de um decreto-lei é da competência legislativa do governo. A função legislativa é uma função soberana que se exerce livremente, apenas limitada pela Constituição e, excecionalmente, por lei reforçada. Daí resulta que a única censura a dirigir ao processo de elaboração, aprovação, conteúdo e forma de uma lei é a sua desarmonia com a Constituição. Se há favor a alguém, pode haver violação do princípio constitucional da igualdade. Porém, tal desarmonia cabe aos tribunais e, em última análise, ao Tribunal Constitucional (TC), em sede de fiscalização da constitucionalidade.

Assim, é de questionar como pode um órgão legislativo (neste caso, o governo, mas podiam ser a AR e as assembleias legislativas regionais) “ser investigado, indiciado, acusado e eventualmente condenado por qualquer crime de responsabilidade, designadamente o de prevaricação, no exercício da função soberana de legislar”. E, ao mesmo tempo, é de perguntar como pode um membro de órgão legislativo colegial ser investigado, indiciado, acusado e, eventualmente, condenado por um crime, designadamente de prevaricação, no exercício de um poder que lhe cabe formalmente, enquanto membro do órgão legislativo.

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O constitucionalista Vital Moreira, no blogue “Causa nossa” chama a atenção para a relevância do artigo de Vitalino Canas sobre o diploma de simplificação do procedimento de licenciamento administrativo na área da habitação e do urbanismo, que se tornou famoso, por o MP o ter invocado como prova na Operação Influencer. Limita o comentário ao procedimento legislativo, pois sabe-se que a versão originária do diploma foi  objeto de veto presidencial, mas não se conhece a versão aprovada em CM, por tais textos não serem publicados, como não se conhece o teor do veto, nem a sua fundamentação (os vetos de diplomas governamentais não são publicados). Além disso, é provável que, seguindo prática instituída desde há muito, a versão final, resultante de alteração na sequência do veto, não tenha ido ao CM.

Diz Vital Moreira, como Vilarinho Canas, que, além da inconstitucionalidade da aprovação da versão final à margem do CM, este modelo de aprovação dos diplomas governamentais “ afronta a regra da transparência e da publicidade do procedimento legislativo num Estado de direito constitucional, que o distingue, essencialmente, da arcana praxis legislativa própria do ‘Estado Novo’ (e do ‘Antigo Regime” pré-constitucional)”.  

É provável que, seguindo outra prática, de há muito, a versão definitiva tenha sido “negociada” entre a PCM e Belém, após reservas do PR à versão inicial, não expressas através de veto formal.

Também aqui há desvio das regras constitucionais sobre o exercício do poder legislativo, de que o PR não é cotitular, só lhe cabendo o poder de veto fundamentado politicamente, e não o de propor alterações aos diplomas governamentais, tornando-se colegislador e corresponsável por eles, à margem da separação de poderes. Como não lhe cabe intrometer-se no exercício do “poder executivo” do governo, nem no poder legislativo da AR, muito menos o poder moderador não lhe confere credencial política para interferir no poder legislativo da AR ou do governo, a não ser através do poder de veto, exercido nos termos da Constituição.

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Entretanto, a 8 de janeiro, um dia depois de ter sido fortemente atacado no Congresso do Partido Socialista (PS), o PR revelou que, a 5 de novembro, dois dias antes do pedido de demissão do PM, o governo tentou que a “lei malandra” (que alegadamente favorecia o licenciamento da Start Campus em Sines) fosse promulgada com esse conteúdo, mas que Belém a “devolveu” à PCM. Depois, acabou por a promulgar porque o governo alterou o diploma.

Marcelo Rebelo de Sousa revela, em comunicado, que recebeu, depois, a 27 de dezembro, nova versão – já depois do anúncio da dissolução da AR e das eleições diretas do PS –, “que reduz, significativamente, as questões mais controversas do diploma”, agora “limitadas a simplificações com repercussão direta na promoção de mais habitação, matéria de grande prioridade”. Ou seja, com a nova versão deixa de ser possível que a empresa de Sines seja criada sem licenciamento, como acontecia na anterior versão. Assim, o PR deixa claro que não deixou passar a lei malandra, tendo promulgado uma lei sem o conteúdo polémico. Esta lei, ou seja, o Simplex do licenciamento urbanístico e industrial, foi aprovada inicialmente pelo CM, a 19 de outubro de 2023.

O PR explicou que, só a 9 de novembro (contradição de datas), é que recebeu, em Belém, a primeira versão aprovada em CM. Entretanto, acrescenta que, dentro deste processo, o governo decidiu “autonomizar” a parte do diploma que se referia à transposição de uma diretiva europeia e que não afetava em nada a questão do data center, salientando que a promulgou a 5 de dezembro, tendo sido publicada em Diário da República, no mesmo dia.

Quanto à outra parte do diploma, a que está sob suspeita no âmbito da Operação Influencer, o PR revela que a devolveu à PCM, a 15 de dezembro. “Tendo em conta [...] as dúvidas e controvérsias relativamente ao diploma, em particular as partes relativas ao licenciamento industrial, este foi devolvido à Presidência do Conselho de Ministros (PCM)”, refere o comunicado, acrescentando: “A 27 de dezembro de 2023, deu entrada na PR uma nova versão do diploma, em relação à qual o governo informou que foi expurgada a parte relativa à diretiva, a matérias relativas a processos em curso, ao licenciamento industrial, mantendo, apenas, as relativas ao urbanismo e ao ordenamento do território. Mantinha assim, designadamente, a parte da simplificação relativa às operações urbanísticas particularmente relevantes no domínio da habitação.”

O PR esclarece que a nova versão mantém a possibilidade de isenção para operações urbanísticas em parques industriais, desde que feitas por “entidades públicas”. Significa isto que, segundo o Presidente, nesta versão, foi excluída a possibilidade de uma empresa privada ter isenção de pedido de licenciamento, como tentou o PS na sua versão. E o site da Presidência da República: considera: “Tendo o governo submetido uma nova versão que reduz, significativamente, as questões mais controversas do diploma, que ficaram, agora, limitadas a simplificações com repercussão direta na promoção de mais habitação, matéria de grande prioridade, o Presidente da República, aguardando o anunciado futuro Código da Construção, promulgou o diploma do governo, que procede à reforma e simplificação dos licenciamentos no âmbito do urbanismo.”

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Bonito serviço! Num regime presidencialista, o PR não faria melhor: interferir no processo legislativo, ser porta-voz do legislativo e do executivo e fazer a transparência que incumbe aos outros órgãos de soberania, sem que as revelações que faz tenham qualquer utilidade, pois os meandros da governação ficam por desvendar e por corrigir. É só falar.

2024.01.11 – Louro de Carvalho

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