sábado, 13 de janeiro de 2024

Marcelo sugere comissão estatal para investigar abusos na Igreja

 

O Presidente da República (PR) recebeu, em audiência, no Palácio de Belém, a 13 de janeiro, representantes da associação Coração Silenciado, perante quem sustentou a conveniência da criação de uma comissão independente tutelada pelo Estado para a investigação de casos de abuso sexual sobre menores, sem a participação da Igreja Católica, devendo esta fazer também a sua parte. Com efeito, de acordo com as declarações dos representantes da associação à comunicação social, o chefe de Estado disse que não se pode “dizer à Igreja para investigar a Igreja”.

“A sugestão do senhor Presidente foi muito clara: não vamos dizer à Igreja para investigar a Igreja. Basicamente foi o que ele nos disse. As comissões que existem têm como patrocínio e como iniciativa a Igreja e o que nós vínhamos aqui sugerir era exatamente isso, mas, felizmente, o senhor Presidente teve muita empatia pela nossa causa e as primeiras palavras foram dele”, afirmou Cristina Amaral, da Coração Silenciado e uma das vítimas da Igreja Católica, citada pela Rádio Renascença.

De acordo com os representantes da associação, o PR defende que, além da Igreja, é também responsabilidade do Estado pagar as indemnizações às vítimas destes crimes. “Há aqui uma responsabilidade do Estado. Vínhamos nós com essa ideia, mas foi o Presidente a sugeri-la primeiro”, adiantou, à saída da audiência com o chefe de Estado, António Grosso, outro dos representantes da associação e vítima de abusos pela Igreja Católica.

Segundo explicou este representante, o chefe de Estado assegurou que vai aconselhar o próximo governo e Assembleia da República (AR) a investigar os casos de abuso sexual sobre menores.

António Grosso disse que o PR defendeu, ainda, que “é responsabilidade do Estado o problema das indemnizações, não deixando de reconhecer que a Igreja tem de tratar do assunto também”.

Cristina Amaral e António Grosso disseram que a sugestão deles e do chefe de Estado tem por base o modelo seguido em Espanha de nomeação de um defensor público para investigação ao nível do Estado, sem interferência ou participação da Igreja, partiu do PR.

A justificação para uma responsabilidade estatal nesta matéria, explicou António Grosso, referindo-se ao entendimento do chefe de Estado, deriva da responsabilidade política perante um dever constitucional de proteção das crianças.

Já quanto à Igreja católica, nomeadamente a Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), com quem a Associação Coração Silenciado se reúne a 14 de janeiro, António Grosso e Cristina Amaral dizem querer sensibilizá-la para o dever de assumir responsabilidade idêntica, ao reconhecer a sua “responsabilidade coletiva enquanto instituição para indemnizar materialmente”.

Deixando críticas à Igreja católica, António Grosso acusou a instituição de estar “numa de esmolas”, ao “pagar comprimidos e consultas”, o que o responsável rejeita como solução, pedindo “atitude mais forte”. “A Igreja Católica pouco se tem mexido para ajudar as vítimas. Foi preciso muita insistência para que, finalmente, nos recebesse e vai ser só no domingo, mas a Igreja tem de abrir os cordões à bolsa e o Estado tem de assumir a sua responsabilidade enquanto constitucional protetor de crianças e jovens, coisa que não foi durante as últimas décadas”, disse.

“É preciso que haja alguma atitude mais forte, que a Igreja se chegue à frente e traga um plano de indemnizações, para o qual não é preciso grande criatividade: as indemnizações pagas pela Igreja Católica já foram realizadas em muitas partes do Mundo. Há milhares de pessoas que precisariam de ser compensadas materialmente, porque não há outra forma”, vincou.

António Grosso recordou o “papel brilhante” da comissão independente (CI) liderada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht, que apresentou, há cerca de um ano, um relatório com 512 testemunhos validados de crianças e jovens vítimas de abuso em Igreja, desde 1950.

“Existem 512 provas testemunhais do que foram os crimes sórdidos, hediondos e imorais – e, do ponto de vista da religião, pecados mortais – sobre crianças e jovens, durante as últimas décadas. No entanto essas provas testemunhais de nada têm servido, para a Igreja nem para o Estado”, disse, tendo ironizado, mais tarde, sobre a ausência de provas materiais: “Em 1950, [em] 1960, [em] 1970, esquecemo-nos de levar o telemóvel para o confessionário para filmar.”

António Grosso defendeu que a “prova testemunhal” tem de ter consequências, criticando a Igreja por se refugiar em crimes prescritos, clérigos entretanto falecidos ou na necessidade de avaliar caso a caso, para adiar a assunção de responsabilidades.

“Para nós não é assim, o caso é só um, a instituição chama-se Igreja Católica portuguesa. O crime não foi apenas cometido por aqueles que o realizaram, mas também por aqueles que o encobriram”, sublinhou.

Para lá da sensibilização e da apresentação de ideias, na reunião do dia 14 com a CEP, a associação reivindica o fim das prescrições destes crimes na lei canónica, o que também pretende na lei civil, considerando a existência de prazos “um absurdo” quando se sabe que uma vítima de abusos sexuais pode precisar de quatro a cinco décadas para conseguir revelar o que sofreu.

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O PR recebeu a associação de vítimas no Palácio de Belém, sensivelmente 11 meses depois de ser conhecido o primeiro relatório nacional sobre este tema, realizado pela Comissão Independente para o Estudo de Abusos Sexuais contra Crianças na Igreja Católica.

Os representantes da Coração Silenciado não quiseram prestar declarações públicas antes do encontro com o chefe de Estado, mas indicaram à Lusa que esperavam poder apresentar a Marcelo Rebelo de Sousa ideias novas para impedir que possam ocorrer mais abusos na Igreja e questionar o que está a ser feito para ajudar as vítimas e a forma como este processo tem decorrido mais recentemente, agora através do Grupo VITA.

Está em agenda a receção à Coração Silenciado pela Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), num encontro anunciado, em final de dezembro, para a Casa de Retiros de Nossa Senhora do Carmo, no Santuário de Fátima, com a participação, pelo episcopado português, do presidente e do vice-presidente da CEP, D. José Ornelas e D. Virgílio Antunes, respetivamente, e do secretário da Conferência, padre Manuel Barbosa.

O relatório apresentado a 13 fevereiro de 2023 pela Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica, liderada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht, validou, ao longo de quase um ano de trabalho, 512 testemunhos de casos ocorridos entre 1950 e 2022, apontando, por extrapolação, para um número mínimo de 4.815 vítimas.

Foi por iniciativa e a expensas da CEP que a CI investigou os casos de abuso sexual sobre menores no contexto da Igreja Católica, nos últimos 70 anos e, a 13 de fevereiro de 2023, apresentou o relatório final, após um ano de trabalho, no qual validou 512 testemunhos, estimando um número de 4815 vítimas, entre 1950 e 2022, e entregou aos responsáveis católicos de Portugal uma lista com nomes de alegados abusadores, no dia 3 de março.

A investigação de casos de abuso sexual na Igreja Católica foi continuada com a constituição do Grupo Vita, que, a 12 de dezembro de 2023, apresentou o primeiro relatório, em que identificou 64 vítimas de violência sexual e um agressor, desde o início dos trabalhos, a 22 de maio de 2023.

Em Espanha, a investigação de casos de abuso sexual sobre menores foi realizada por iniciativa do Estado, tendo a Provedoria da Justiça de Espanha apresentado, a 27 de outubro de 2023, um relatório com dados sobre abusos sexuais na Igreja e na sociedade, após um inquérito a 8.013 pessoas. O documento, intitulado “Uma resposta necessária”, indica que 11,7% dos inquiridos disse ter sofrido abusos sexuais antes dos 18 anos de idade, sendo 0,6% na Igreja Católica, número que sobe para 1,13%, quando se incluem instituições de ensino pertencentes à Igreja Católica.

Sobre o caso espanhol, é de relevar, além da surpresa e da estupefação Conferência Episcopal Espanhola (CEE), a pronta disponibilidade de cooperação com as autoridades estatais e de assunção das próprias responsabilidades, bem como a revelação de que estava a decorrer um estudo encomendado pela própria CEE e cujos resultados ainda não eram conhecidos, porque a entidade encarregada do mesmo estudo havia solicitado a prorrogação do prazo.

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O Estado tem responsabilidade no âmbito da proteção de todas as crianças e jovens, obviamente também na das crianças e jovens junto dos quais a Igreja Católica interage. Não deveria, porém, ser necessário vir o PR a terreiro lembrar as obrigações do Estado. Talvez o chefe de Estado pareça o topo de um sistema presidencialista de governação, porque outros se demitem das suas responsabilidades, e não só por excessivo uso dos seus poderes constitucionais. Na verdade, é caso para nos interrogarmos sobre o que anda fazer as comissões concelhias de proteção de crianças e jovens em risco, o Ministério Público (MP) e os tribunais de família e menores.

Entendo que o Estado tem o dever de investigar estes crimes que se passem na Igreja Católica, assim como noutros setores da sociedade: escolas, clubes desportivos, famílias, empresas, associações, etc. – o que fez a Espanha. Nem se pode acusar do Estado de interferência abusiva ou de perseguição, se o fizer, logo que surjam suspeitas fundadas e se apenas for à cata do crime, e não da investigação de ideologia, de opinião ou de crença. Cheguei a esclarecer que só se pode falar de martírio, se o ataque ao cristão (clérigo ou leigo) resultar do ódio à fé, aos sacramentos e à caridade, e não se for só porque houve desavença, por exemplo, em negócio.

Não obstante, devem fazer-se inquéritos internos, sempre que necessário.

Os crimes em apreço são gravíssimos e não deviam prescrever, pelo que os agressores devem ser julgados; e, provados os factos e a culpa, devem ser objeto de pena justa e proporcionada, exceto, se já tiverem morrido. Porém, quanto a indemnizações, no caso de haver lugar a elas, só os agressores falecidos é que podem ser dispensados delas. Em minha opinião, a haver lugar a indemnização, ela deve impender, antes de mais, sobre o agressor culposo; subsidiariamente, deve ser chamada a instituição sob cuja responsabilidade foi praticado o crime, seja a Igreja, seja outra; e, supletivamente, o Estado, se e ou enquanto os demais não forem capazes de cumprir.

O que fez a Igreja noutros países (ou o que a obrigaram a fazer) serve de inspiração, mas pode não ser observado ao pé da letra, uma vez que pode não ter sido decidido da forma mais adequada.

Não percebo a justeza de a Igreja pagar, a troco de recibo, consultas, medicação e terapias. Isso não é caridade nem justiça. Isso é dependência.

Também não entendo a dúvida do presidente da CEP relativamente à perceção do quadro jurídico. Se há vítima e os factos são comprovados, a única hipótese de não haver lugar a indemnização é a renúncia da vítima à mesma. A indemnização a acordar ou a decretar há de ser justa e proporcionada. Se as partes acordarem no montante, fica o problema resolvido; caso contrário, deverá recorrer-se a tribunal arbitral ou judicial.

Por fim, uma palavra sobre o tratamento dado aos agressores. A Igreja Católica é apontada por encobrir e por se limitar a mudar de lugar o agressor. É verdade que, em alguns casos, a hierarquia encobriu, por desvalorização, por receio de perder a imagem pública, por acreditar que a mudança de circunstância alterava comportamentos, por comodismo, etc. Porém, não pode ser acusada de não ter possuído, atempadamente, uma ciência que outras entidades também não tiveram e cujo comportamento não é beliscado. Aliás, só em caso de suspeita fundamentada, é que a hierarquia deve atuar, inquirindo e comunicando às autoridades estatais e eclesiásticas, sem expor vítima e ou agressor e promovendo a justa reparação, incluindo a terapia conveniente.

Por outro lado, há que estar com atenção ao risco de denúncia caluniosa e de interesseirismo. A prudência postula o discernimento. Depois, nem todos os agressores são incorrigíveis. Dizer o contrário é aceitar a falência inexorável da antropagogia. Além disso, importa que a atuação da hierarquia não se revista de contornos inquisitoriais nem leve à desconfiança dos servidores.

2024.01.13 – Louro de Carvalho

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