quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

Santa Sé reitera bênçãos a casais irregulares e a homossexuais

 

O Dicastério para a Doutrina da Fé (DDF) publicou, a 4 de janeiro, uma nota, em resposta aos “compreensíveis pronunciamentos” de Conferências Episcopais sobre a Declaração “Fiducia supplicans” – por exemplo, a Conferência Episcopal de Moçambique resolveu não conceder bênção a casais irregulares, porque seria, naquele território, confundida com o matrimónio –, que permite bênçãos informais a casais em situação irregular e uniões homossexuais. O objetivo é ajudar a esclarecer a receção da “Fiducia supplicans”, recomendando, ao mesmo tempo, a leitura completa e atenta do documento, para compreender melhor o significado da sua proposta.

O texto é do prefeito do DDF, cardeal Víctor Manuel Fernández, e do secretário da Seção Doutrinária da mesma organização, monsenhor Armando Matteo.

Quanto às advertências expressas pelas diferentes Conferências Episcopais relativas ao conteúdo doutrinal da declaração, o DDF considera que, apesar de “evidenciar a necessidade de um período mais longo de reflexão pastoral”, o documento “não pode ser interpretado como uma oposição doutrinal”, porque “é claro e clássico a respeito do matrimónio e da sexualidade”.

A nota acrescenta que, “não há espaço para se tomar distância doutrinal desta Declaração ou para considerá-la herética, contrária à Tradição da Igreja ou blasfema”. E reconhece que a “Fiducia supplicans”, “nos seus aspetos práticos”, pode necessitar de tempo “para a sua aplicação, segundo os contextos locais e o discernimento de cada bispo diocesano com a sua Diocese”. Assim, reconhece que o bispo tem “sempre o poder do discernimento in loco, isto é, naquele lugar concreto que ele melhor que outros conhece, porque é o seu rebanho”.

“A prudência e a atenção ao contexto eclesial e à cultura local poderiam admitir diversas modalidades de aplicação, mas não uma negação total ou definitiva deste caminho que é proposto aos sacerdotes”, continua.

A nota da DDF centra-se, em particular, na situação dos países em que o facto de alguém se declarar homossexual é penalizado com prisão “e, em alguns casos, com tortura e até à morte”. Nesses casos, “seria imprudente uma bênção”. Não obstante, “permanece importante que estas Conferências Episcopais não sustentem uma doutrina diferente da da Declaração aprovada pelo Papa, enquanto é a doutrina de sempre, mas sobretudo que proponham a necessidade do estudo e do discernimento para agir com prudência pastoral em um tal contexto”, continua o texto.

Em relação aos países que, “em diversa medida, condenam, proíbem e criminalizam a homossexualidade”, o Dicastério defende que, “além da questão das bênçãos, existe uma tarefa pastoral de grande amplitude, que inclui formação, defesa da dignidade humana, ensinamento da Doutrina Social da Igreja e diversas estratégias que não admitem pressa”.

A nota convida a descobrir “a verdadeira novidade” da “Fiducia suplicans”, que requer “um esforço generoso de receção” e é “o convite a distinguir duas formas diferentes de bênção: ‘litúrgicas ou ritualizadas’ e ‘espontâneas ou pastorais’”.

“Como pano de fundo, encontra-se a avaliação positiva da ‘pastoral popular’, que aparece em muitos textos do Santo Padre. Neste contexto, o Papa convida-nos a valorizar a fé do Povo de Deus, que, mesmo em meio dos seus pecados, sai da imanência e abre o seu coração para pedir a ajuda de Deus”. “Por esta razão, mais do que pela bênção a casais irregulares, o texto do Dicastério adotou a elevada forma de uma “Declaração”, que representa muito mais do que um responsum ou do que uma carta”, diz o texto.

Assim, defende-se que o tema central é “a compreensão mais ampla das bênçãos e a proposta de aumentar as bênçãos pastorais” e, por consequência, “além da polémica, o texto requer um esforço de reflexão serena, feita com coração de pastor, livre de toda a ideologia”.

A nota dedica uma secção para responder à pergunta: “Como se apresentam, concretamente, estas ‘bênçãos pastorais’?” Dela podem ser extraídas sete caraterísticas:

- Devem ser “muito breves”, o que implica que sejam feitas durante “poucos segundos, sem uso do Ritual de Bênçãos”.

- “Se se aproximam juntas duas pessoas para pedir a bênção, simplesmente implora-se ao Senhor paz, saúde e outros bens para estas duas pessoas que as pedem”.

- A bênção pastoral deve incluir um pedido para que “possam viver o Evangelho de Cristo em plena fidelidade” e que o Espírito Santo “as livre de tudo o que não corresponde à vontade divina e de tudo que requer purificação”.

- Esta forma de bênção “não pretende justificar algo que não seja moralmente aceitável”, pelo que não é “um matrimónio, nem mesmo uma ‘aprovação’, nem a ratificação de coisa alguma, mas unicamente a resposta de um pastor a duas pessoas que pedem a ajuda de Deus”, não querendo o sacerdote pôr condições, nem querendo conhecer “a vida íntima dessas pessoas”.

- A nota dá o exemplo de um casal de “divorciados em nova união” que pede ao padre, numa grande peregrinação, que lhe dê uma bênção, que Deus os ajude, pois não conseguem encontrar trabalho, um deles está muito doente, não têm uma casa ou a vida está a tornar-se muito pesada. Assim, propõe-se uma oração: “Senhor, olha estes teus filhos, concede-lhes saúde, trabalho, paz e ajuda recíproca. Livra-os de tudo aquilo que contradiz o teu Evangelho e concede-lhes viverem segundo a tua vontade. Amém.” E conclui com o sinal da cruz sobre cada um deles.

- Para evitar confusão com o sacramento do matrimónio ou com a cerimónia de união civil, além de não usar roupa que possa induzir tal ideia, ressalta-se que a bênção pastoral “não deve acontecer em lugar importante do edifício sacro ou diante do altar, porque isso causaria confusão”.

Cada bispo, na sua diocese, é autorizado pela Declaração “Fiducia supplicans” a ativar este tipo de bênçãos simples “com todas as recomendações de prudência e de atenção”, o que implica, “em nenhum modo”, autorização “a propor ou a ativar bênçãos que possam assemelhar-se a um rito litúrgico”.

O último ponto da nota do DDF, em resposta aos bispos e às Conferências Episcopais que expressaram relutância sobre o seu conteúdo ou aplicação doutrinária, é dedicado a expressar a necessidade de implementar “uma catequese que ajude a todos a entender que este tipo de bênção não é ratificação da vida que levam os que a imploram. Menos ainda é uma absolvição, enquanto “estes gestos estão longe de ser um sacramento ou um rito”.

“Deveremos habituar-nos todos a aceitar o facto que, se um sacerdote dá este tipo de bênçãos simples, não é um herético, não ratifica nada, não está a negar a doutrina católica”. Porém, esta catequese ajudará “o Povo de Deus a descobrir que este tipo de bênção é um simples canal pastoral que ajuda as pessoas a manifestar a própria fé, ainda que sejam grandes pecadores”. “Não as estamos a consagrar, nem nos estamos a congratular com elas, nem estamos a aprovar o seu modo de união”, destaca o texto, para concluir: “Se isto é esclarecido graças a uma boa catequese, podemos livrar-nos do medo de que as nossas bênçãos exprimam algo de inadequado.”

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“A Declaração Fiducia supplicans’, com um novo ‘embora’, redimensiona o absolutismo da forma canónica e reabre o espaço para uma Igreja profética também no âmbito matrimonial e sexual. É o começo e uma mudança de paradigma que não deve ser negligenciado”, diz o teólogo italiano Andrea Grillo,

Chegou de Roma,  há 460 anos, um documento cuja estrutura assenta num “concessivo”, não tão explícito e perturbador como o Decreto “Tametsi” (embora), de 1500, mas igualmente claro.

Dantes, havia que pôr um controlo formal sobre t os casamentos entre pessoas batizadas, “mesmo que os casamentos clandestinos sempre tenham sido considerados válidos”; hoje trata-se de poder abençoar toda a união sexual “mesmo que a doutrina do matrimónio seja reafirmada”.

Esta Declaração mantém-se firme na doutrina tradicional da Igreja em relação ao casamento, não permitindo qualquer tipo de rito litúrgico ou bênçãos semelhantes a rito litúrgico que possa criar confusão. O valor deste documento, porém, é oferecer uma contribuição específica e inovadora ao significado pastoral das bênçãos, o que nos permite ampliar e enriquecer a compreensão clássica estritamente ligada a uma perspetiva litúrgica.”

Um exame cuidadoso desta passagem permite compreender o seu significado e limites.

A “doutrina tradicional da Igreja sobre o casamento” é reafirmada e, ao fazê-lo, não permite “qualquer tipo de rito litúrgico ou bênção semelhante a um rito litúrgico, que possa criar confusão”. Isto, parece dizer o texto, está em continuidade com aquela compreensão que o Decreto “Tametsi” inaugurou, atribuindo ao “rito litúrgico eclesial” o caráter constitutivo da sacramentalidade do matrimónio. Isto, em 1563, parecia escandaloso, pois introduziu uma “nova habilidade”, que, de uma só vez, superou a longa experiência de liberdade ritual, que marcou a tradição durante quase 1.500 anos.

Embora o que acaba de ser afirmado permaneça válido, o texto passa a dar uma “contribuição específica e inovadora”: trata-se de uma consideração pastoral e litúrgica da bênção, que abre outra consideração dos factos existenciais e das tarefas eclesiais. Isto implica um alargamento e um enriquecimento da experiência da “bênção eclesiástica”, o que constitui uma clara “reviravolta”, em relação à decisão tridentina. Para compreender o significado desta contribuição inovadora, devemos observar como o ponto de observação mudou, em comparação com a “Responsum” de há dois anos. Nessa resposta negativa, o cerne do argumento era que a bênção de um casal do mesmo sexo não só criaria confusão, mas aplicaria a bênção a uma condição que “não pode ser abençoada”.

Agora, a Declaração Fiducia supplicans” responde ao duplo argumento com um esclarecimento inicial: “a bênção é dita de muitas maneiras”. A perspetiva com que foi definida a resposta para 2021 é demasiado estreita e míope ou “mesquinha”, citando a expressão da “Amoris laetitia”, n.º 303. Daí emerge a nova possibilidade, que surge de um uso da “bênção” não interno à lógica formal do sacramento, mas que se move entre o coração e a margem externa da vida eclesial. A bênção é a capacidade de “reconhecer o bem que existe” e que deve ser ativada, precisamente nas condições em que as margens de reconhecimento social e pessoal são mais precárias.

Esta abertura liberta energias eclesiais em, pelo menos, três direções principais: restitui à “palavra profética” uma dignidade pastoral, que, no contexto matrimonial, corre o risco de permanecer esmagada sob o registo régio da validade e da legitimidade, ao passo que a bênção diz ao bem onde ele está, segundo as regras, sem as regras e até apesar das regras; permite articular a linguagem da Igreja, de forma menos rígida, restabelecendo o equilíbrio entre o registo sacerdotal, o régio e o  profético; e o “reconhecimento dos factos” constitui um alargamento das perspetivas da teologia matrimonial, evitando o curto-circuito entre sacramento e contrato, que obriga, às vezes, os profetas e os sacerdotes a falar e a raciocinar como burocratas.

Decreto Tametsi”, há 460 anos, inaugurou um papel oficial para a Igreja que, ao longo dos séculos, se tornou, simultaneamente, demasiado e pouco. A Declaração em apreço, com um novo “embora”, redimensiona o absolutismo da forma canónica e reabre o espaço a uma Igreja profética no âmbito matrimonial e sexual – começo e mudança de paradigma a não negligenciar.

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Em suma, é lícito aos bispos e às Conferências Episcopais, tendo em conta os respetivos contextos territoriais e sociológicos, protelar a aplicação dos procedimentos previstos na Declaração Fiducia supplicans”, desde que empreendam uma formação catequética conducente à criação de condições de pôr em prática os referidos procedimentos. Porém, não lhes será lícito recusar ou obstaculizar a aplicação do teor do documento, que, aliás, não se cinge às bênçãos a casais irregulares e de pessoas do mesmo sexo, mas abrange todas as bênçãos não rituais.   

2024.01.04 – Louro de Carvalho       

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