terça-feira, 16 de janeiro de 2024

É preciso responder à chamada de Deus a todos e a cada um

 
A liturgia do 2.º domingo do Tempo Comum, no Ano B, incita-nos a descobrir que Deus nos chama, para que, tornando-nos seguidores de Jesus, constituamos o seu corpo. Com efeito, o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do Mundo, quer fizer de nós a sua morada.
Assim, Deus conta connosco para concretizar, no Mundo e na História, o seu desígnio. É preciso escutá-Lo e fazer a sua vontade.
primeira leitura (1Sm 3,3b-10.19) sugere que a resposta do jovem Samuel pode constituir o paradigma da nossa resposta ao Deus que nos procura e nos chama a todos e a cada um.
O Livro de Samuel situa-nos no período histórico que vai de meados do século XI a.C. até ao final do reinado de David (972 a.C.). É nesse horizonte temporal que diversas tribos da região, unindo-se à volta da realeza davídica estreitam laços, de modo a constituírem uma unidade política.
Os primeiros capítulos abordam a fase pré-monárquica, em que, por um lado, surge o crescente processo de sedentarização, de consolidação e de unificação das tribos em Canaã, a partir de elementos unificadores, como juízes, pactos de defesa ante os inimigos comuns, federações de tribos vizinhas e santuários que acolhem, periodicamente, a Arca da Aliança e assentam as bases da fé monoteísta; por outro lado, observa-se a precariedade das coligações defensivas ante os ataques inimigos, a escassa consciência unitária, o descrédito de alguns juízes, todo um conjunto de debilidades que geram instabilidade e incerteza. E o modelo monárquico dos povos vizinhos parece ser a solução para os novos desafios da História.
O livro apresenta Samuel, da tribo de Efraim, como um juiz, mas diz que foi educado no templo de Silo, onde estava depositada a Arca da Aliança – o que significará que também exercia funções litúrgicas. Mais tarde, será chamado a conduzir o Povo no combate contra os filisteus.
Samuel é, portanto, figura complexa e multifacetada: simultaneamente juiz, sacerdote e chefe dos exércitos. Faz ponte entre uma época de confusão e de escassa consciência unitária, para uma época onde começa a estruturar-se uma organização mais centralizada.
O trecho em apreço apresenta a vocação de Samuel no santuário de Silo, onde estava a Arca da Aliança. Samuel, consagrado a Deus por sua mãe, era servidor do santuário. Mais do que um relato de acontecimentos concretos, estamos perante uma catequese sobre o chamamento de Deus e a resposta do homem, redigida segundo o esquema típico dos relatos de vocação.
Desde logo, é de vincar que a vocação é sempre iniciativa de Deus (“o Senhor chamou Samuel”). É Ele que, por critérios que nos escapam, escolhe, chama, interpela e desafia. A indicação de que “Samuel ainda não conhecia o Senhor, porque, até então, nunca se lhe tinha manifestado a Palavra do Senhor” sugere que o chamamento de Samuel parte só de Deus e é iniciativa exclusiva de Deus, à qual Samuel é, a princípio, totalmente alheio. Ao mesmo tempo, é de anotar que Deus Se dirige a Samuel durante a noite. É o momento do silêncio, em que o barulho e a confusão se calaram. Na verdade, a voz de Deus torna-se mais percetível no silêncio, quando o coração e a mente do homem abandonaram a preocupação com os problemas do quotidiano e estão mais livres e disponíveis para escutar os apelos e os desafios de Deus.
O hagiógrafo sublinha a dificuldade de Samuel em reconhecer a voz do Senhor. Javé chamou-o por quatro vezes e, só na última vez, o jovem percebeu que voz era aquela. Com este pormenor, o catequista evidencia a dificuldade que o chamado experimenta em identificar a voz de Deus, no meio da multiplicidade de vozes que lhe atraem a atenção e o seduzem.
Depois, emerge o papel do sacerdote Heli na descoberta vocacional do jovem. É Heli que percebe “que era o Senhor quem chamava o menino” e que lhe ensina a abrir o coração ao chamamento de Javé (“Se fores chamado outra vez, responde: ‘Fala, Senhor; o teu servo escuta’.”). Quer dizer que os irmãos que nos rodeiam podem ter papel decisivo na perceção da vontade de Deus a nosso respeito e na nossa sensibilização para os apelos e desafios de Deus.
Por fim, releva-se a disponibilidade de Samuel para ouvir e para acolher a voz de Deus: “Fala, Senhor; o teu servo escuta”. No mundo bíblico, “escutar” não significa só ouvir com o ouvido, mas acolher no coração e integrar na vida o escutado. É com isso que Samuel se compromete. Totalmente disponível para o serviço de Javé, abraça a missão de ser um sinal vivo de Deus, a voz humana de Deus a ressoar na vida e na História do seu Povo.
***
Evangelho (Jo 1,35-42) relata o encontro de Jesus com os primeiros discípulos e esboça o caminho do discípulo: ir atrás de Jesus, estabelecer contacto com Ele, perceber que Ele é a fonte de Vida, aceitar viver em comunhão com Ele, tornar-se testemunha d’Ele junto dos irmãos.
Estamos junto do rio Jordão. No início, contracenam três personagens: João Batista e dois dos seus discípulos. Estes discípulos são homens que tinham escutado a pregação de João e recebido o seu batismo. Estavam disponíveis para romper com a vida velha e para acolher o Messias que Israel esperava ansiosamente e que, segundo João, estava para chegar.
Jesus entra em cena. João viu Jesus “que passava” e indicou-O aos dois discípulos, dizendo: “Eis o cordeiro de Deus.” João é figura estática, cuja missão é circunstancial e consiste em preparar os homens para acolher o Messias. Quando o Messias passa, a missão de João termina e começa a nova realidade. João, plenamente consciente disso, não prolonga o seu protagonismo nem conserva no seu restrito círculo os discípulos que, durante algum tempo, o escutaram e que beberam a sua mensagem. Sabe que a sua missão não é congregar à sua volta um grupo de adeptos, mas preparar o coração dos homens para acolher Jesus e a sua proposta libertadora. Por isso, indica Jesus aos seus discípulos e convida-os a segui-Lo.
A expressão “eis o cordeiro de Deus”, usada para apresentar Jesus, alude ao “cordeiro pascal”, símbolo da libertação oferecida por Deus ao seu Povo, cativo no Egipto, e define Jesus como o enviado de Deus, que vem inaugurar a nova Páscoa e realizar a libertação dos homens. A missão de Jesus consiste, portanto, em eliminar as cadeias do egoísmo e todas as estruturas e atos de pecado, que prendem os homens à escravidão e os impedem de chegar à vida plena.
Depois da declaração de João, os discípulos reconhecem em Jesus o Messias com proposta de vida e seguem-No. “Seguir Jesus” é uma expressão técnica que o autor do Quarto Evangelho aplica, com frequência, aos discípulos. Significa caminhar atrás de Jesus, percorrer o caminho de amor e de entrega que Ele percorreu, adotar os mesmos objetivos e colaborar na missão. A reação dos discípulos é imediata. Não há dúvidas, desculpas, considerações que protelem a decisão, pedidos de explicação, procura de garantias. Simplesmente, “seguem” Jesus.
A seguir, irrompe o diálogo entre Jesus e os dois discípulos. A pergunta de Jesus (“Que procurais?”) sugere que é importante a consciência do que esperam de Jesus, do que lhes pode Ele oferecer. O evangelista insinua haver quem segue Jesus por motivos errados, procurando n’Ele a realização de objetivos pessoais, muito longe da proposta de Jesus.
Os discípulos respondem com outra pergunta (“Rabi, onde moras?”), que implicita a vontade de aderir totalmente a Jesus, de aprender com Ele, de habitar com Ele, de estabelecer comunhão de vida com Ele. Ao chamar-Lhe “Rabi”, estão dispostos a seguir as suas instruções, a aprender com Ele um modo de vida. A referência à morada de Jesus revela a disposição de ficar perto de Jesus, de partilhar a sua vida, a viver sob a sua influência. É a adesão incondicional a Jesus e ao seu seguimento. E Jesus desafia-os: “Vinde ver.” Isto significa que aceita a pretensão dos discípulos e os convida a segui-Lo, a aprender com Ele, a partilhar a sua vida. Os discípulos devem ir ver, pessoalmente, pois a identificação com Jesus não é algo a que se chega por mera informação, mas que se alcança por experiência pessoal de encontro, de adesão e de comunhão.
Os discípulos aceitam o desafio e fazem a experiência da partilha da vida com Jesus. Essa experiência convence-os a ficar com Jesus (“ficaram com Ele nesse dia”). E nasce a comunidade do Messias, a comunidade da nova aliança. É a comunidade dos que encontram Jesus que passa, procuram n’Ele a vida e a liberdade, identificam-se com Ele, aceitam segui-Lo no caminho que Ele apontar, estão dispostos à vida de total comunhão com Ele.
Por fim, os discípulos tornam-se testemunhas. É o último passo do caminho vocacional: quem encontra Jesus e experimenta a comunhão com Ele, torna-se, imperativamente, testemunha da mensagem e da proposta. É experiência tão marcante que transborda os limites estreitos do eu e se torna anúncio libertador para os irmãos. O encontro com Jesus gera uma dinâmica missionária.
***
Na segunda leitura (1Cor 6,13c-15a.17-20), Paulo recorda à comunidade cristã as exigências da sua adesão a Cristo.
Pelo Batismo, os cristãos tornam-se membros de Cristo e formam com Ele um único corpo. A partir daí, os pensamentos, as palavras, as atitudes de cada cristão devem ser os de Cristo. E o cristão deve testemunhar Cristo no Mundo. Manifesta-se, pois, no corpo do cristão e no todo da comunidade, a realidade do corpo de Cristo.
Ao mesmo tempo, o cristão é templo do Espírito Santo. Para os judeus, o templo de Jerusalém era o lugar onde Deus residia no Mundo e se manifestava ao Povo. Assim, dizer que os cristãos são templo do Espírito significa que são o lugar onde reside e se manifesta a vida de Deus. No Batismo, o cristão recebe o Espírito de Deus, que o conduz, inspira os seus pensamentos, condiciona as suas ações e comportamentos.
Estão aqui os elementos fundamentais da antropologia cristã. O corpo é o lugar onde se manifesta, historicamente, a vida que inunda o crente, após a adesão a Cristo. Por isso, o corpo – ao invés do que defendiam algumas correntes nas escolas filosóficas de Corinto – não é desprezível, mísero ou condenado; mas tem uma dignidade suprema, pois nele que se manifesta a vida de Deus.
Paulo tira algumas consequências a aplicar à situação concreta dos crentes, às vezes, tentados a pouco edificantes comportamentos, particularmente ao nível da sexualidade: se os cristãos são membros de Cristo e vivem em comunhão com Ele, devem evitar comportamentos desregrados; se são templo do Espírito e os seus corpos são o lugar onde se manifesta a vida de Deus, atitudes e hábitos desordenados não são dignos dos crentes.
No corpo dos cristãos deve manifestar-se a vida de Deus. Ora, tudo o que é expressão de egoísmo, de procura desenfreada dos interesses pessoais ou de grupo, de realização descontrolada dos próprios caprichos, de comportamentos que usam e instrumentalizam o outro, contradiz a vida nova de Deus que é relação, entrega, compromisso, amor. Os crentes são livres, mas a liberdade cristã tem como limite o próprio Cristo: nada do que contradiz os valores e o plano de Jesus pode ser aceite pelo cristão. Aliás, os crentes devem ter consciência de que a liberdade levada ao extremo pode redundar em escravidão.
E o apóstolo deixa um convite: “Glorificai a Deus no vosso corpo.” É através de comportamentos e atitudes onde se manifesta a realidade da vida de Jesus que os crentes podem prestar culto a Deus, que não passa pela prática de um conjunto de ritos externos, mas pelo compromisso de vida que afeta a pessoa toda e que atinge a relação do crente com os outros irmãos ou irmãs e consigo próprio. É preciso que, em todas as circunstâncias – inclusive no campo da sexualidade –, a vida do crente seja entrega, serviço, doação, respeito e amor. É esse o culto que Deus exige.
***
Deus chama, desafia, acompanha e ajuda. Importa que a sua vontade se faça. Foi para isso que o Filho de Deus veio ao Mundo e para isso estão no Mundo os seus discípulos, seguidores e testemunhas. Não é justo que os cristãos zelem mais os seus interesses pessoais do que os de Deus. E os interesses de Deus coincidem, em grande parte, com a atenção ao sofrimento dos nossos irmãos, que devemos assumir como nossos.
Não é justo ocultar a nossa condição de cristãos com a mira no sucesso profissional ou político. Não é certo julgarmo-nos superiores aos demais, nem esquecermos a nossa dignidade de pessoas e de cristãos. Acima de tudo, está a vontade de Deus e o bem das pessoas.
É blasfemo renunciar a Deus, ignóbil fugir do Mundo e temerário expor-se ao pecado. Porém, os filhos de Deus são ousados, sensatos e frutíferos.

2024.01.15 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário