sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

Já nos habituámos à Justiça-espetáculo para crise política

 

Após ter emergido na Região Autónoma dos Açores (RAA) e no Continente, a crise abateu-se sobre a Região Autónoma da Madeira (RAM). O presidente do governo regional renunciou e o Partido Social Democrata (PSD) ficou com o ónus da apresentação do sucessor, que será aceite pelo representante da República, Ireneu Cabral Barreto, a quem compete exonerar e nomear o governo regional, e também pelo Presidente da República (PR), que não pode dissolver a Assembleia Legislativa Regional (ALR), por não terem passado seis meses desde a última eleição.
Isto resulta do facto de a Polícia Judiciária (PJ) ter feito, às 14h45 de 24 de janeiro, três detenções, durante a megaoperação na RAM e no Continente, que tem como principal suspeito o presidente da RAM, Miguel Albuquerque. Porém, já foram detidos o presidente da Câmara Municipal do Funchal (CMF), Pedro Calado, o empresário Avelino Farinha, dono do Grupo AFA, de construção civil, e Custódio Correia, sócio de Avelino – para serem ouvidos, em primeiro interrogatório judicial, em Lisboa, no Tribunal Central de Investigação Criminal (TCIC), com vista à aplicação das côngruas medidas de coação.
Todavia, Miguel Albuquerqueque foi presidente da CMF, era chefe do governo regional desde 2015 e ganhou as eleições de 2023 –, não se encontra entre o trio de detidos.
Estão em curso três inquéritos e foram feitas 130 buscas domiciliárias e não domiciliárias: 45 na RAM (no Funchal, em Câmara de Lobos, no Machico e na Ribeira Brava); na Grande Lisboa (em Oeiras, em Linda-a-Velha, em Porto Salvo, em Bucelas e em Lisboa); e em Braga, no Porto, em Paredes, em Aguiar da Beira e em Ponta Delgada. Os crimes em causa são corrupção ativa e passiva, participação económica em negócio, prevaricação, recebimento ou oferta indevidos de vantagem, abuso de poderes e tráfico de influência.
A investigação da PJ incide na adjudicação de contratos públicos de aquisição de bens e serviços, em troca de financiamento de atividade privada; em suspeitas de patrocínio de atividade privada, tendo por contrapartida o apoio e a intervenção na adjudicação de procedimentos concursais a sociedades comerciais determinadas; e na adjudicação de contratos públicos de empreitadas de obras de construção civil, em benefício ilegítimo de concretas sociedades comerciais e em prejuízo dos restantes concorrentes, com grave deturpação das regras de contratação pública, em troca do financiamento de atividade de natureza política e de despesas pessoais.
Segundo o comunicado do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), as investigações, ligadas à RAM, incidem, sobretudo, na contratação pública, essencialmente no elevado número de contratos de empreitada celebrados pelo governo regional e por entidades públicas da RAM com empresas da região. Estão sob investigação, desde 2015, dezenas de adjudicações em concursos públicos, envolvendo várias centenas de milhões de euros.
Suspeita-se de que titulares de cargos políticos do governo regional e da CMF tenham “favorecido, indevidamente, algumas sociedades/grupos, em detrimento de outras ou, em alguns casos, de que tenham exercido influência com esse objetivo”. E suspeita-se que as sociedades visadas tenham tido conhecimento prévio de projetos e dos critérios definidos para a adjudicação, bem como acesso privilegiado às propostas e valores apresentados pelas concorrentes diretas nos concursos, “o que lhes terá possibilitado a apresentação de propostas mais vantajosas e adequadas aos requisitos pré-determinados”.
Investiga-se um conjunto de projetos aprovado, recentemente, na RAM, “ligados às áreas do imobiliário e do turismo, que envolvem contratação pública regional e/ou autorizações e pareceres a serem emitidos por entidades regionais e municipais, relativamente aos quais se suspeita de favorecimento dos adjudicatários e concessionários selecionados, de violação de instrumentos legais de ordenamento do território e de regras dos contratos públicos, nalguns casos com o único propósito de mascarar contratações diretas de empresas adjudicatárias”.
Há suspeitas de pagamento pelo governo regional a uma empresa de construção e engenharia da região de “elevados montantes, a coberto de uma transação judicial num processo em que foi criada a aparência de um litígio entre as partes, bem como suspeitas sobre adjudicações pelo governo regional de contratos públicos de empreitadas de construção civil relativamente aos quais o Tribunal de Contas [TdC] suscitou dúvidas e pediu esclarecimentos”.
A investigação incide também sobre atuações que visariam condicionar/evitar a publicação de notícias prejudiciais à imagem do governo regional em jornais da região, em moldes suscetíveis de consubstanciarem “violação da liberdade de imprensa”, e sobre benefícios obtidos por titulares de cargos políticos, por causa dessas funções, que ultrapassam o socialmente aceitável.
A megaoperação está relacionada com alegados favorecimentos “megalómanos” ao Grupo AFA, o maior de construção civil na Madeira e presidido por Avelino Farinha, que emprega quatro mil pessoas e tem obras no arquipélago, bem como em Angola, onde o grupo tem vindo a crescer.
Em março de 2023, aquele empresário da Calheta, ouvido na ALR, garantiu que todas as obras feitas na Madeira foram “ganhas por concurso internacional” e pelo preço mais baixo.
O empresário foi ouvido depois de o ex-secretário regional Sérgio Marques ter confessado ao Diário de Notícias que havia “obras inventadas”, para favorecer “grandes grupos”. Na altura, Avelino Farinha falou da relação com Pedro Calado, presidente da CMF e outro alvo da PJ nestas buscas. “Não teve qualquer papel nas negociações” entre a câmara e o grupo AFA por causa de atrasos no pagamento de obras”, garantiu.
O processo que está a ser investigado pelo DCIAP tem como alvo principal Miguel Albuquerque por ter vendido, em 2017, a Quinta do Arco, onde estava plantado um famoso roseiral, a um fundo com ligações comerciais ao universo do Grupo Pestana, um dos maiores da região e que tem negócios e parcerias com Cristiano Ronaldo, futebolista natural da Madeira.
Também em 2017, depois desta venda, foi renovada a concessão do Centro Internacional de Negócios ao Grupo Pestana, passando o Estado a ser o sócio maioritário. E Pedro Calado, que tinha sido, em 2013, assessor da administração do Grupo AFA, era, no ano de 2017, o vice-presidente do governo regional.  
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O caso, de que já se vinha falando em surdina, veio para a ribalta mercê de uma espetacular operação conduzida pelo DCIAP e servida por cerca de duas centenas de inspetores da PJ, com a “desejada” e talvez “requisitada” comunicação social.
Não me cabe duvidar de que haverá indícios de crimes, mas tudo dá a entender que, mais do que apurar factos e responsabilidades (e eventuais condenações), o efeito será britar as instituições políticas stricto sensu e fritar, no lume brando da Justiça por fazer e na ousadia crítica da opinião pública, os atingidos pelos inquéritos. O Ministério Público (MP) e as polícias de investigação criminal (PIC) não têm agenda política partidária, mas as coincidências são frequentes. O látego policial fustiga no momento mais oportuno. São conversas escutadas a longo prazo, que dão efeitos, são denúncias anónimas ou de correligionários desavindos. Enfim, as causas são várias.
Do meu ponto de vista, como sucede em alguns países, os suspeitos numa investigação, sobretudo se ocupam cargos de governação, não deviam ser publicitados, até ser deduzida acusação, não ser em caso de crimes de pena maior e surpreendidos em flagrante delito; e, logo que, terminadas as diligências exploratórias de investigação, se passasse à fase de inquérito, devia ser-lhes dado o ensejo de acompanhar os diversos passos processuais. É claro, à mínima suspeita fundada de perturbação do inquérito, de perigo de fuga ou de alarme social (que não deve ser criado pelas autoridades), deviam ser presentes a juiz de instrução criminal (JIC), para eventual aplicação de medidas de coação, obviamente depois de as entidades competentes procederem ao levantamento da imunidade, havendo lugar a ela.  
Miguel Albuquerque é conselheiro de Estado por inerência, pelo que só pode ser detido por autorização do Conselho de Estado (ver artigo 15.º da Lei n.º 31/84, de 6 de setembro: Estatuto dos membros do Conselho de Estado), o que deixa de acontecer, quando cessar as funções de presidente do governo regional. Defende que a renúncia, que evitou, por julgar ter condições políticas para continuar no cargo e que, pelos vistos, serenou o seu partido na região e no Continente, foi levada, agora, a cabo, para bem da Madeira, que precisa de estabilidade, para conseguir os objetivos que se propôs no início da legislatura.     
O PR falou do caso em dois momentos: primeiro, a dizer que não de devia confundir a crise política da Madeira com a campanha eleitoral; depois, a esclarecer que não era este o seu tempo, pois não podia dissolver a ALR, por não terem passado seis meses desde a última eleição (ver Constituição da República Portuguesa artigos 133.º, alínea j) e 172.º), dando a entender que era aceitável a nomeação de um novo governo, pelo representante da República, liderado pelo partido mais votado e formado por pessoas não comprometidas com o executivo sob suspeita, pois todos os atos em questão foram discutidos e aprovados em conselho do governo regional. Não obstante, deixa em aberto, para março, a probabilidade de dissolução da ALR da Madeira.
O líder do Partido Social Democrata (PSD), na esteira dos comentadores políticos, ao invés do que sentenciou em circunstâncias similares, reconheceu que ninguém está acima da lei, mas que não era o momento de tirar consequências políticas e que mantinha a confiança política em Miguel Albuquerque. Porém, o Partido Socialista (PS) entende que o governo devia cair e ser dada voz ao eleitorado (ao arrepio do que defendeu anteriormente, em relação ao governo da República, esquecendo que a ALR não pode ser dissolvida neste momento). Por sua vez, o partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN), enquanto a Iniciativa Liberal (IL) assobia para o lado, mostrou-se disponível para viabilizar um novo elenco governamental e para reajustar o acordo com o PSD da Madeira. Porém, isto só acontecerá com outro presidente do governo regional, pois foi o PAN que rompeu o acordo parlamentar.  
Parece, pois, que o PSD e o partido do Centro Democrático Social (CDS) chegaram a acordo para o encontro de um líder do novo governo regional, escolha que precisa de ser ratificada nos respetivos órgãos partidários.
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Alberto João Jardim, o barão do PSD Madeira, antigo e longevo presidente do governo regional, tece duras críticas à investigação do Ministério Público (MP), frisando que os Madeirenses não se deixam “perturbar com operações policiais tornadas mediáticas” e que são “coincidentes com eleições”. E diz que a investigação visa políticos e empresários que “personificam cortes com o passado colonialista” e que é feita “por quem não julga [e] cujo documento-base vindo a público até um estagiário de advocacia desmonta”. Por isso, em seu entender, o futuro da Madeira passa por “mais autonomia” e pelo “fim da mediocridade”.
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Como sempre, defendo que tudo deve ser investigado com celeridade e com mais discrição, para melhor eficácia e justeza; e que todos os indiciados em bases sustentadas devem ser julgados. Porém, a Justiça feita na praça pública não é eficaz e não é justiça. Não nos habituem a isto.
Admitamos que o MP resolve passar a pente fino todos os departamentos do Estado e todas as autarquias, nos termos em que o vem fazendo cirurgicamente. É possível que não precisemos de um programa leitoral para “limpar Portugal”, mas, deste jeito, cairia o Carmo e a Trindade, talvez nem as magistraturas se salvariam e nada se resolveria. Espetáculo, não; Justiça, sim, claro!

2024.01.26 – Louro de Carvalho


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