segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Os corações não podem ficar surdos à escuta da voz do Senhor

 

É irreversível a decisão de Deus de oferecer a Vida e a salvação aos homens, em cada etapa do caminho que percorrem na História, pelo que o Senhor utiliza as melhores estratégias para vir ao encontro dos homens e para lhes apresentar os seus desafios. Isto é patente na Liturgia da Palavra da Celebração Eucarística do 4.º domingo do Tempo Comum no Ano B.

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primeira leitura (Dt 18,15-20), partindo da personalidade de Moisés, a antonomásia do legislador veterotestamentário, oferece-nos um motivo para reflexão sobre a missão profética. O profeta é aquele que Deus escolhe, chama e envia, para ser a sua “palavra” viva entre os homens, manifestando-lhes, em linguagem entendível, as indicações e as propostas divinas.

A finalidade da Teologia dos catequistas deuteronomistas era levar o Povo de Deus ao compromisso firme com a Lei de Deus, proclamada no Sinai. É convite sério ao Povo de Deus no sentido de abraçar a aliança com Javé e de viver na fidelidade aos compromissos assumidos.

Literariamente, o Livro do Deuteronómio – “Livro da Lei” ou “Livro da Aliança”, descoberto no Templo de Jerusalém no 18.º ano do reinado de Josias (622 a.C.) – apresenta-se como um conjunto de três discursos que Moisés proferiu nas planícies de Moab, antes da entrada na Terra Prometida. Pressentindo a morte, Moisés deixa ao Povo um testamento espiritual, em que lembra os compromissos assumidos para com Deus e insta à renovação da aliança com Javé.

O trecho em referência é parte do segundo discurso de Moisés e integra um conjunto legislativo sobre as estruturas de governo do Povo de Deus e, mais concretamente, a estrutura do profetismo.

O fenómeno profético não é exclusivo de Israel. Entre os Cananeus, os movimentos proféticos apareciam com frequência, normalmente ligados à adivinhação, ao êxtase, a convulsões, a delírios (provocados por instrumentos sonoros, gritos, danças, etc.). Por isso, deve equacionar-se o problema do discernimento entre a verdadeira e a falsa profecia. A grande caraterística do verdadeiro profeta é falar em nome de Deus. O problema colocava-se, particularmente, no Reino do Norte, no tempo de Acab (874-853 a.C.) e de Jezabel, em que os profetas de Baal dominavam. As tradições de Elias traçam o quadro de confronto diário entre a verdadeira e a falsa profecia.

O catequista deuteronomista refere, na passagem em causa, os critérios da distinção entre o verdadeiro e o falso profeta.

Os teólogos deuteronomistas – originários do Norte (Israel) mas, refugiados no Sul (Judá), após as derrotas dos reis do Norte, frente aos assírios – elencam os pontos fundamentais da Teologia: há um só Deus, que deve ser adorado por todo o Povo num único local de culto (Jerusalém); Deus amou e elegeu Israel, libertou-o da escravidão do Egito e fez com Ele uma aliança eterna, acompanhou-o na caminhada pelo deserto, deu-lhe a Terra Prometida; o Povo de Deus, com quem Deus se comprometeu é o Povo eleito, propriedade pessoal de Javé; e Moisés é o exemplo e o modelo do verdadeiro profeta. Assim, na origem e no centro da vocação de Moisés está Deus. Moisés não se candidatou, por sua iniciativa, à missão profética, nem conquistou, pelas suas ações ou qualidades, o direito a ser profeta. A iniciativa foi de Deus que, gratuitamente, o escolheu, o chamou e o enviou em missão. A consagração do profeta resulta, sempre, da ação gratuita de Deus que, segundo critérios, muitas vezes ilógicos na ótica humana, escolhe esta ou aquela pessoa em concreto, com as suas qualidades e defeitos, para a enviar aos irmãos.

Moisés sempre disse e testemunhou as palavras que Deus lhe pôs na boca e que lhe ordenou que dissesse. A mensagem não era de Moisés, mas de Deus. O verdadeiro profeta não é o que transmite uma mensagem pessoal ou que diz o que os homens gostam de ouvir; é aquele que, com coragem e frontalidade, testemunha fielmente o desígnio de Deus para os homens e para o Mundo.

As palavras do profeta devem ser cuidadosamente escutadas e acolhidas, pois são palavras de Deus. O próprio Deus pedirá contas a quem fechar os ouvidos e o coração aos desafios que, através do profeta, Ele apresenta ao Mundo. Nestes termos, se um profeta diz palavras suas em vez das de Deus, será alvo da censura divina, mas quem, de boa-fé, lhe deu crédito não será censurado por Deus. Porém, se o profeta falar em nome de Deus e os homens não lhe derem crédito, serão objeto da censura divina, mas o profeta cumpriu o seu dever.   

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Evangelho (Mc 1,21-28) mostra como Jesus, o Filho de Deus, com a autoridade que lhe vem do Pai, transforma em homens livres todos aqueles que vivem prisioneiros do egoísmo, do pecado e da morte. Não é um simples profeta como Moisés, mas é senhor do que diz e do que faz. É o Messias, que será expressamente declarado como tal por Simão Pedro em Cesareia de Filipe.

A cena situa-nos em Cafarnaum (em Hebraico, Kfar Nahum, a “aldeia de Naum”), pequena cidade da costa noroeste do Lago Kineret (o Mar da Galileia). A sua importância advinha de estar ao lado da estrada onde passavam as caravanas provenientes da Síria. Segundo os Evangelhos Sinóticos, é aí que Jesus se instala durante o tempo do seu ministério na Galileia. Ali moravam vários dos discípulos – Simão e seu irmão André, Tiago e seu irmão João.

A cena acontece num sábado. A comunidade está reunida para a liturgia sinagogal. Jesus, chegado há pouco à cidade, entra na sinagoga, como bom judeu, para participar na liturgia sabática. A celebração comunitária começava, normalmente, com a “profissão de fé”, a que se seguiam orações, cânticos e duas leituras (uma da Torah e outra dos Profetas); depois, vinha o comentário e as bênçãos. Jesus terá sido convidado para comentar as leituras feitas. Fê-lo de forma original, diferente dos comentários que as pessoas estavam habituadas a ouvir dos escribas (peritos nas Escrituras). As pessoas ficaram maravilhadas com as palavras de Jesus, “porque ensinava com autoridade e não como os escribas”. Os escribas repetiam uma e outra vez as tradições rabínicas e as opiniões dos mestres antigos. Jesus não repete lições aprendidas dos mestres. Fala com autoridade. O que Ele diz vem-Lhe da sua experiência de Deus. É a palavra livre, sincera, convincente, que mexe com os corações. As pessoas que O escutam percebem que as suas palavras têm a marca de Deus. E a autoridade que se revela nas palavras de Jesus manifesta-se em ações concretas, como se a autoridade das palavras tivesse de ser caucionada pela ação.

Na sequência das palavras de Jesus, que transmitem aos ouvintes um sinal inegável da presença de Deus, surge “um homem com um espírito impuro”. Os Judeus pensavam que todas as doenças eram provocadas por espíritos maus que se apropriavam dos homens e os tornavam cativos.

As pessoas afetadas por esses males deixavam de cumprir a Lei (as normas de convivência social e religiosa) e ficavam numa situação de impureza, ou seja, arredadas de Deus e da comunidade.

Na ótica dos contemporâneos de Jesus, os espíritos maus tinham um poder absoluto que os homens não podiam ultrapassar. Acreditava-se que só Deus, com o seu poder e autoridade absolutos, podia vencer os espíritos maus e devolver aos homens a vida e a liberdade perdidas.

Marcos, pondo o espírito mau, que domina um homem, presente na sinagoga a interpelar violentamente Jesus, sugere que, ante a proposta libertadora que Jesus apresenta, em nome de Deus, os espíritos maus, responsáveis pelas cadeias que oprimem os homens ficam inquietos, pois sentem que o seu poder chegou ao fim. Por isso, o espírito impuro, por um lado, manifesta incómodo pela interferência de Jesus na vida “alheia”, porque veio para os perder (o mesmo sucede com alguns crentes, que ou caíram na indiferença ou veem Jesus como obstáculo ao seu progresso na vida egoísta). Por outro lado, confessa que Jesus é o Santo de Deus.

A ação da cura do homem com um espírito impuro constitui a prova inequívoca de que Jesus traz um desafio que vem de Deus. Pela ação de Jesus, Deus vem ao encontro da pessoa para a salvar de tudo o que a impede de ter vida em plenitude.

Para Marcos, este episódio é a apresentação do programa de ação de Deus: Jesus veio ao encontro dos homens para os libertar de tudo o que lhes rouba a vida. A libertação que Deus oferece à Humanidade já está a acontecer. O Reino de Deus instalou-se no Mundo. Jesus, cumprindo o projeto libertador de Deus, pela sua palavra e pela sua ação, renova e transforma em homens livres todos os que vivem prisioneiros do egoísmo, do pecado e da morte.

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segunda leitura (1Cor 7,32-35) convida os crentes a repensar as suas prioridades e a não deixar que as realidades transitórias sejam impeditivas do verdadeiro compromisso com as realidades perenes, nomeadamente o serviço de Deus e dos irmãos.

O mais importante, na vida de um cristão, é o amor e a adesão a Cristo. E, na ótica paulina, o celibato deixa mais espaço à pessoa para viver para Cristo: quem não é casado tem mais tempo e disponibilidade para se preocupar “com as coisas do Senhor” e para Lhe agradar.

O apóstolo Paulo é o missionário itinerante inteiramente dedicado ao serviço do Evangelho. Nos últimos anos, gastava a vida em viagens missionárias e em inúmeros trabalhos ao serviço de Cristo. Sente que, se tivesse de atender às necessidades de uma família e de dividir a sua atenção pelas realidades ligadas à vida quotidiana, estaria mais limitado na entrega à missão. Mas, sem família que dependa dele, está mais livre para o serviço do Evangelho e do Reino de Deus. Não se trata de desvalorizar a vida conjugal e a sexualidade. A reflexão de Paulo assenta noutra ordem. A insistência na bondade do celibato na linha da liberdade para o serviço do Reino.

Assim, os verdadeiros celibatários são “livres para servir”.

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Pela sua premência e oportunidade, aqui se deixa breve referência ao comentário do Papa ao Evangelho deste 4.º domingo do Tempo Comum, perante os fiéis e outros visitantes na Praça de São Pedro, alertando para as insídias de hoje do maligno, como as dependências, o consumismo e a idolatria do poder.

Na ótica de Francisco, o espírito impuro é equiparado ao diabo, que ambiciona possuir para “nos aprisionar a alma”. Ora, nós devemos estar atentos às amarras que nos sufocam a liberdade, pois o diabo sempre nos tira a capacidade de escolher livremente. E o Pontífice nomeou algumas correntes que podem prender o coração, como as dependências, os modismos e a idolatria do poder, “corrente muito ruim”. Todas essas insídias, que nos tornam escravos, sempre insatisfeitos, levam ao consumismo e ao hedonismo, que mercantilizam as pessoas e comprometem as relações, gerando inclusive conflitos armados.

Jesus veio para nos libertar de todas essas amarras, com um pormenor: jamais dialoga com o diabo (de facto, as poucas palavras que lhe dirige ou são sentenciosas sem possibilidade de contraditório ou são curtas frase imperativas). “Jesus liberta do poder do mal, mas – estejamos atentos –, expulsa o diabo, mas não dialoga com ele. Jamais Jesus dialogou com o diabo. E, quando foi tentado no deserto, as respostas de Jesus eram palavras da Bíblia, nunca o diálogo. Irmãos e irmãs, com o diabo não se dialoga! Cuidado: com o diabo não se dialoga, porque se começares a dialogar, ele vence.”

E, quando nos sentirmos tentados e oprimidos, indicou o Papa, é preciso invocar Jesus, invocá-Lo ali, onde sentimos que as correntes do mal e do medo apertam mais forte.

Também hoje, afirmou, o Senhor deseja repetir ao maligno: “Sai, deixa em paz aquele coração, não dividas o Mundo, as famílias, as nossas comunidades; deixa-as viver serenas, para que ali floresçam os frutos do meu Espírito, não os seus, assim diz Jesus. Para que entre eles reinem o amor, a alegria, a mansidão, e em vez de violências e gritos de ódio, haja liberdade e paz, respeito e cuidado para todos.”

E Francisco não deixou de lançar algumas pistas de reflexão pessoal aos fiéis: Quero realmente libertar-me das amarras que me apertam o coração? Sei dizer “não” às tentações do mal, antes que se insinuem na alma? Invoco Jesus e permito-lhe agir em mim, para me curar por dentro?

“Que a Virgem Santa nos proteja do mal”, foi a invocação final, que deve ser a nossa também.

2024.01.28 – Louro de Carvalho

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