domingo, 21 de janeiro de 2024

Fentanil mata nos EUA e já fez dependências em Portugal

 

Em Portugal, já 12 pessoas pediram ajuda para tratamento por dependência de fentanil, um analgésico opioide altamente viciante e que está a causar uma “epidemia” de mortes por overdose nos Estados Unidos da América (EUA), o que está a preocupar os especialistas.

Segundo Jim Lee, copresidente do Gabinete de Terrorismo e Informações Financeiras (TFI, na sigla em Inglês) do Departamento do Tesouro, o fentanil é um potente opiáceo responsável por dezenas de mortes, por ano, nos EUA (ultrapassou as 100 mil, em alguns anos), aonde chega, fabricado a partir de produtos, muitas vezes, provenientes da China (segundo Washington), e introduzido por cartéis mexicanos.

Em Portugal, o Instituto para os Comportamentos Aditivos e para as Dependências (ICAD) revela que os casos ocorreram em 2023 e um em 2024. Entre as 12 pessoas referenciadas, oito usavam o opioide com outras drogas, enquanto as outras estavam exclusivamente viciadas nesta substância, que vem sendo cada vez mais prescrita pelos médicos, para o controlo da dor.

Um dos casos refere-se a um homem com cerca de 50 anos, sem histórico de abuso de drogas, a quem foi prescrito fentanil num hospital privado para alívio de dor lombar. Depois de algumas semanas a usar os adesivos comprados na farmácia, o doente, que não foi informado do risco de adição, chegou ao fim da embalagem sem ter nova receita. Entrou em privação imediata. “A dor que tinha não justificava o uso de fentanil. Foi-lhe prescrito à americana. Quando percebeu que estava dependente, procurou ajuda”, diz Miguel Vasconcelos, coordenador da Unidade de Desabituação do Centro das Taipas, em Lisboa. Noutro caso, o analgésico foi prescrito a um jovem com cerca de 30 anos que sofria de problema grave de, com dor intensa. Tentaram a desabituação física em ambulatório, mas teve de ficar internado cerca de 10 dias.

Recentemente, chegou à Unidade de Desabituação de Coimbra um pedido para tratamento de uma mulher que desenvolveu adição ao fentanil, que lhe fora receitado. “Não é um caso de consumo de rua”, salienta Emídio Rodrigues, coordenador da Divisão de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependên­cias da Região Centro.

Segundo o Infarmed, o fentanil é o quarto analgésico opioide mais prescrito em Portugal. Em 2022 (último ano de que há dados completos) foram vendidas, nas farmácias, mediante receita médica, 306.084 embalagens, o equivalente a cerca de 840 por dia. E, nos últimos 10 anos, o volume de vendas, que partiu de patamar muito baixo, comparativamente com o registado noutros países, aumentou sempre a ritmo constante, registando uma subida de 32%, nos últimos cinco anos, tudo indicando que vá aumentar. Entre janeiro e outubro de 2023 foram vendidas, em média, mais cerca de 50 embalagens, por dia, do que em 2022.

Nas farmácias, é vendido sob a forma de adesivos ou de comprimidos, podendo também ser injetável, em contexto hospitalar. Porque produz efeitos mais rapidamente do que outros opioides, como a morfina, faz com que seja frequentemente administrado ou prescrito em situações de dor intensa, aguda ou crónica. Porém, segundo Graça Mesquita, presidente do Colégio de Medicina da Dor da Ordem dos Médicos (OM), não há, em Portugal, nenhum mecanismo de monitorização ou de controlo de prescrição específico para o fentanil. Todos os médicos, independentemente da especialidade, podem receitá-lo, estando os médicos de família entre os que mais o prescrevem.

A última recomendação da Direção-Geral da Saúde (DGS) para a “utilização de medicamentos opioides fortes em dor crónica não oncológica” data de 2008 e desvaloriza os riscos. “Embora ainda não existam dados suficientes, parecem não se confirmar os receios de tolerância e da adição induzidos por estes medicamentos”, refere. Contudo, recomenda que sejam receitados só em último recurso “e sempre com monitorização apertada”, o que não parece acontecer.

João Goulão, presidente do ICAD, sustenta que o fentanil pode causar dependência física semelhante à heroína, provocando o mesmo tipo de sintomas de privação, mas que o seu consumo é mais perigoso: “A diferença entre a dose que proporciona o efeito procurado e a dose potencialmente letal é muito menor do que na heroína, o que significa que mais facilmente pode levar à morte por overdose.”

Nos EUA, que têm longo histórico de dependência de analgésicos opioi­des, cujos riscos de adição foram, inicialmente, omissos e, depois, desvalorizados pela indústria farmacêutica, vive-se, agora, uma verdadeira “epidemia” de fentanil, que se transformou na droga dominante traficada nas ruas, habitualmente sob a forma de pó branco, que pode ser fumado ou injetado. Segundo o Centro de Controlo e Prevenção de Doenças (CDC) norte-americano, esta substância sintética, totalmente fabricada em laboratório, é 50 vezes mais potente do que a he­roína. Só em 2022, segundo os últimos dados oficiais, provocou perto de 75 mil mortes, tendo-se transformado na principal causa de morte em pessoas com menos de 50 anos.

“A diferença entre a dose que proporciona o efeito procurado e a dose potencialmente letal é muito menor do que na heroína, o que significa que mais facilmente pode levar à morte por overdose”, alerta o presidente do ICAD. Nos EUA a droga já entrou no mercado negro, algo que parece não ter ainda acontecido em Portugal, já que não se têm registado casos de overdose.

Em Portugal, a substância ainda não parece estar a ser traficada no mercado negro, mas o presidente do ICAD admite que “é apenas uma questão de tempo”. Até agora, as equipas de rua que acompanham os utilizadores de droga não têm conhecimento de que esteja a circular, pois não se tem registado, nos últimos meses, aumento significativo do número de overdoses, que seria expectável, se o tráfico de fentanil estivesse a disseminar-se. Porém, há relatos pontuais de consumo fora de prescrição médica, quer por pessoas que acederam ao fármaco a partir de familiares a quem fora receitado, quer em contexto recreativo, por aquisição noutros países.

Todas as entidades que trabalham na área assumem que estão preocupadas. Por isso, têm vindo a reforçar a sensibilização junto dos consumidores de drogas, alertando-os para os riscos acrescidos desta substância. E foi aumentada a distribuição de naloxona, fármaco que serve de antídoto para overdoses, como adianta Andreia Alves, coordenadora da Associação Crescer.

A Ordem dos Médicos (OM) assinala que não há nenhum controlo ou monitorização específico para a prescrição de fentanil, e a última recomendação da Direção-Geral da Saúde (DGS), relativa à “utilização de medicamentos opioides fortes em dor crónica não oncológica” remonta a 2008 e desvaloriza o risco de ficar viciado quem o toma. E as associações que trabalham no terreno, como a Crescer, o Grupo de Ativistas em Tratamentos (GAT) e a Médicos do Mundo, lamentam que Portugal não tenha um sistema de testagem de drogas, porque o fentanil pode ser facilmente misturado com outras substâncias, sem os utilizadores saberem o que estão a consumir. A Kosmicare, a única organização que fazia testagem nas salas de consumo vigiado, suspendeu o serviço no início de 2023, por falta de financiamento.

A Polícia Judiciária (PJ) ainda não abriu nenhum inquérito sobre tráfico de fentanil, mas a unidade de combate aos estupefacientes está “muito atenta” ao fenómeno, sobretudo devido à facilidade com que esta droga pode ser vendida ilegalmente. “Basta um ou dois quilos para se produzirem milhares de doses”, refere fonte judicial, que acrescenta: “O ‘mercado’ norte-americano já começa a estar ‘saturado’ e os cartéis procuram sempre novas áreas de negócio.”

A DGS vai rever a circular relativa ao uso de medicamentos opioides fortes na dor crónica não oncológica, anunciou a instituição, no dia em que foi noticiado que já há em Portugal casos de dependência de fentanil. Contactada pela agência Lusa sobre a circular em vigor, referindo que, apesar de não haver dados suficientes, “parecem não se confirmar os receios de tolerância e da adição induzidos por estes medicamentos” – a DGS respondeu: “Tendo por referência os dados epidemiológicos e evidência científica disponíveis [...], vai rever a circular informativa.”

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Nos EUA, onde as mortes por overdose de fentanil já são uma “epidemia”, com cerca de 75 mil óbitos só em 2022, é já a principal causa de morte em pessoas com menos de 50 anos, foi criada, em novembro de 2023, uma força específica para o combate ao tráfico deste opioide, que será liderada pela divisão de Investigações Criminais e pelo TFI do Departamento do Tesouro, segundo a agência espanhola EFE. A este respeito, Janet Louise Yellen, secretária de Estado do Tesouro, afirmou, em comunicado, que a luta contra o fluxo de fentanil “é uma prioridade” para a qual o Departamento do Tesouro utilizará todos os instrumentos à sua disposição.

A nova força, segundo o subsecretário do TFI, Brian Nelson, atuará, de forma rápida e decisiva, com especialistas de alto nível, “para responder rapidamente às ameaças mais recentes”. Aproveitará as competências e a experiência do Departamento do Tesouro para identificar e combater os crimes financeiros relacionados com esta droga. Promoverá os objetivos da administração do presidente Joe Biden, na matéria, tal como atacar a cadeia de abastecimento ou colaborar com o México, nesta luta. E fará avançar o acordo entre Joe Biden e o homólogo chinês, Xi Jinping, para retomar a cooperação bilateral em matéria de luta contra o narcotráfico.

Ao alinhar estrategicamente as investigações e as informações dos principais intervenientes, a nova força aumentará o impacto financeiro das medidas já tomadas contra este comércio ilícito.

Segundo o comunicado do Departamento do Tesouro, o acordo, alcançado em novembro, incide em especial “na redução do fluxo de precursores químicos que alimentam o tráfico ilícito de fentanil e de drogas sintéticas”.

Desde que Biden assinou uma ordem executiva, em dezembro de 2021, a autorizar sanções contra estrangeiros envolvidos no tráfico de fentanil, 250 já foram impostas a indivíduos e empresas, com um foco particular na cadeia de abastecimento. Em novembro passado, Biden agradeceu às autoridades mexicanas pela detenção de “El Nini”, suspeito de tráfico de fentanil.

Biden e o homólogo mexicano, Andrés Manuel López Obrador, prometeram, numa reunião, em 17 de novembro, em São Francisco, cooperar mais estreitamente contra o tráfico de drogas e, em particular, o fentanil.

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fentanil, utilizado como medicação para a dor, pode ser usado com outros medicamentos para a anestesia. Funciona, em parte, pela ativação de recetores µ-opioides. Tem rápido início de ação e os seus efeitos duram menos de uma hora ou duas. É cerca de 50 vezes mais forte do que a heroína e 100 vezes mais forte do que a morfina. Pode ser administrado por injeção intravenosa, por penso transdérmico e por via oral. Os efeitos colaterais incluem náuseas, obstipação, sonolência e confusão. Porém, graves efeitos secundários podem gerar depressão respiratória, síndrome da serotonina, tensão arterial baixa ou dependência.

O fentanil foi feito pela primeira vez por Paul Janssen, em 1960, e aprovado para uso médico nos EUA, em 1968. Foi desenvolvido através de testes químicos semelhantes, em estrutura, à petidina (meperidina) para a atividade de opiáceos. Em 2015, foram utilizados 1,600 quilogramas (3,53 lb). Em 2017, foi o opiáceo sintético mais utilizado na medicina.

Pensos transdérmicos de fentanil estão na Lista de Medicamentos Essenciais da Organização Mundial de Saúde, lista dos mais eficazes e seguros necessários num sistema de saúde. 

O custo médio, em 2015, esteve entre 0,08 e de 0,81 dólares (USD), por frasco de 100 microgramas. Nos EUA, em 2017, esta quantidade custava cerca de 0,40 USD. 

O Fentanil é também produzido de forma ilegal e usado como uma droga recreativa, muitas vezes, misturado com heroína ou com cocaína. 

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Como é óbvio, não está em causa o medicamento, mas a aplicação sem controlo e a utilização como droga recreativa.

2024.01.21 – Louro de Carvalho

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