domingo, 7 de janeiro de 2024

Privatização da ANA “não salvaguardou o interesse público”

 

Um relatório do Tribunal de Contas (TdC), aprovado a 21 de dezembro de 2023 e publicado a 5 de janeiro, conclui que a venda da ANA – Aeroportos de Portugal ao grupo francês Vinci, que arrancou em 2012, “não salvaguardou o interesse público” e foi assente em várias irregularidades e “deficiências graves”, tendo descurado a concorrência no setor aeroportuário.

Dez anos depois da privatização, sem que o processo tenha sido fiscalizado pelo TdC, foi, agora, divulgado o relatório que analisa se o processo de privatização da ANA – que decorreu entre 7 de setembro de 2012 e 22 de outubro de 2013 – “salvaguardou o interesse público”.

A fiscalização do TdC à venda da ANA à Vinci foi solicitada pelo Parlamento, em 2018, depois de ter sido aprovado um requerimento do Partido Socialista (PS).

A venda foi fechada com um valor que ficou 71,4 milhões de euros abaixo do que tinha sido “oferecido e aceite” e depois de uma “avaliação intempestiva” à empresa concessionária dos dez principais aeroportos nacionais, sem que tivesse sido realizada uma “avaliação prévia”, para cálculo de um preço base, como era “legalmente exigível”.

O TdC aponta “graves desconformidades e inconsistências” detetadas no caderno de encargos, para as quais a Parpública não tem explicação, e reveladoras de “risco material e falta de fidedignidade” dos documentos envolvidos no processo, “determinantes para escolha do comprador”.

O processo de privatização da ANA – que decorreu, como foi referido, entre 7 de setembro de 2012 e 22 de outubro de 2013 –, ocorreu em contexto de “urgência”, sem que estivessem asseguradas “todas as condições necessárias à sua regularidade e transparência”, o que colocou o Estado numa posição de “fragilidade” negocial.

No relatório, que arrasa o processo de venda, lê-se que, em 2012, o Estado “concedeu à Vinci” os dividendos da ANA desse ano, que ascendem a 30 milhões de euros, “quando a gestão ainda era pública” e “suportou o custo financeiro da ANA, para cumprir o compromisso assumido no contrato de concessão”, – os juros, comissões e impostos, no valor de 41,4 milhões, que foram pagos pelo empréstimo de 800 milhões, concedido à empresa, para pagar a primeira prestação do pagamento inicial pela concessão, o que fez baixar o preço da privatização para 1.127,1 milhões, ficando 71,4 milhões de euros abaixo dos 1.198,5 milhões de euros, valor que tinha sido “oferecido e aceite”.

Os juízes conselheiros, que tecem ainda críticas ao processo. no atinente à concessão dos aeroportos, sinalizando “desequilíbrio dos contratos a favor do comprador”, referem que o Estado “privilegiou o potencial encaixe financeiro” com a venda da empresa “no curto prazo”, em “detrimento” de garantir um “equilíbrio na partilha de rendimentos com a concessão de serviço público aeroportuário” a “longo prazo”.

Acresce que a privatização “comportou a concessão de um monopólio fechado por 50 anos”, prorrogável, com uma “proposta de Novo Aeroporto de Lisboa de direito exclusivo da concessionária” e num setor que é “estratégico, para a economia do país”, tendo havido um “desperdício da oportunidade” para “benefícios da concorrência”.

A prorrogação do prazo da concessão está, pois, associada à construção do novo aeroporto de Lisboa (NAL), daí resultando que o contrato de concessão seja “longo e incerto no seu termo”representando “riscos acrescidos” com uma “única entidade privada encarregue da gestão de todos os principais aeroportos por um período tão extensível e sem termo conhecido à partida”.

Por isto, os juízes sustentam que a privatização “não salvaguardou o interesse público”, não tendo sido “maximizado o encaixe financeiro” da venda da totalidade do capital social da ANA, por não ter sido “minimizada a exposição do Estado aos riscos” da venda e por não ter sido reforçada a “posição competitiva” da ANA, “em benefício do setor da aviação civil portuguesa, da economia nacional e dos utilizadores e utentes das estruturas aeroportuárias” geridas pela concessionária.

Até 2012, a ANA era detida na totalidade pelo Estado, através de uma participação direta da Direção-Geral do Tesouro e Finanças (DGTF), com 31,44% do capital, e de uma participação indireta da Parpública de 68,56%. Com o processo de privatização em curso, em janeiro de 2013, a Parpública comprou a participação da DGTF, pagando cinco euros por cada ação, com a operação a totalizar 363,78 milhões de euros.

A venda da ANA à Vinci aconteceu quando Portugal estava, desde 2011, sob resgate financeiro com o governo, então liderado por Passos Coelho, a lançar, por imposição da troika, um programa de privatizações. Nesse período, foram vendidas mais de 12 empresas públicas e participações detidas pela Caixa Geral de Depósitos (CGD), com o Estado a encaixar uma receita bruta que rondou os 10 mil milhões de euros.

Os juízes conselheiros salientam que a venda da ANA contraria a tendência “da maioria” dos países da União Europeia (UE), lembrando que, em 2010, dos 306 aeroportos da UE 237 (77%) eram geridos por entidades públicas, 43 (14%) por entidades com capital misto e apenas 9% (26) por privados. E, apesar de, em 2016, se assistir, na UE, ao “crescente envolvimento” de privados na gestão dos aeroportos, além de Portugal, só três países (Chipre, Hungria e Eslovénia) “tinham todos os seus aeroportos entregues a entidades privadas”.

O novo secretário-geral do PS Pedro Nuno Santos, ex-ministro das Infraestruturas, não comenta o relatório, que promete animar a pré-campanha para as eleições legislativas, mas, em 2020, em entrevista ao Expresso, qualificou a venda da concessionária dos aeroportos como o “negócio de privatização mais danosa de sempre”, para o Estado e para o interesse público.

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Na hora da votação do texto apresentado pelo relator, os juízes conselheiros dividiram-se, sobretudo na parte que aponta para a falta de controlo do Estado nas receitas da concessão e na recomendação ao governo para, num prazo de seis meses, deixar de “omitir das contas públicas a receita das taxas aeroportuárias”.

Do elenco de nove juízes conselheiros, incluindo o relator José Manuel Quelhas, que votaram o relatório, a 21 de dezembro de 2023, três votaram vencidos e apresentaram declaração de voto.

Foi o caso de Ana Margarida Furtado, juíza conselheira desde 2017, que tem responsabilidades na área da despesa e dívida pública e na coordenação do parecer sobre a Conta Geral do Estado e que, de acordo com o currículo publicado no site do TdC, entre 2012 e 2014, ou seja, durante o governo de Passos Coelho, ocupou funções como subdiretora-geral do Gabinete de Planeamento, Estratégia e Relações Internacionais do Ministério das Finanças.

Na declaração de voto, considera “não existir suficiente fundamentação” para o tribunal concluir que a privatização não garantiu o “reforço da posição competitiva, do crescimento e da eficiência da ANA, em benefício do setor da aviação civil portuguesa, da economia nacional e dos utilizadores e utentes das estruturas aeroportuárias geridas” pela concessionária. Além disso, entende que, nas conclusões, “em prol da completude e equilíbrio”, devia constar a referência sobre o mecanismo de partilha de receitas da concessão com o Estado, defendendo que, “por um lado, beneficia a receita pública no horizonte temporal negociado e contratualizado”, e, “por outro, a sua existência reforça a importância a dar ao respetivo controlo público eficaz”.

Luís Filipe Viana, juiz conselheiro do TdC desde junho de 2021, na sua declaração de voto, sustenta que as taxas aeroportuárias são receitas da concessionária, não podendo ser consideradas como receitas públicas, pois a ANA “está fora do perímetro das administrações públicas”, sendo “empresa com controlo acionista privado”. No entanto, salienta que a “partilha de receitas na concessão com o Estado é, sem qualquer margem de dúvida, receita pública”.

Luís Filipe Viana tem como área de responsabilidade a Saúde, Segurança Social, Emprego, Formação Profissional, Demografia, Organização e Gestão de Recursos na Administração Pública. Antes de chegar ao TdC, entre 2019 e 2020, esteve no Conselho de Finanças Públicas (CFP), depois de, durante sete anos, entre 2013 e 2019, ter ocupado funções no Ministério das Finanças como subdiretor-geral do Orçamento e como coordenador da Unidade de Implementação da Lei de Enquadramento Orçamental.

Por sua vez, Maria da Conceição Antunes, juíza conselheira desde 2017, votando contra, apontou a “inexistência” de “fundamentos sobre os quais se sustentam as apreciações” de incumprimento das normas legais necessárias para o processo de privatização, como é o caso da “falta de avaliação prévia”, para fixar um valor mínimo para a venda da ANA, e que era “legalmente exigível”, com a juíza a defender que as conclusões do TdC revelam “insuficiente precisão”.

Além disso, diz que se fez “apreciação de decisões políticas que não cabe ao tribunal apreciar”.

O relator José Manuel Quelhas, juiz conselheiro desde 2017, já foi responsável por vários relatórios de fiscalização a dossiês quentes. Foi o relator das duas auditorias ao Novobanco, que teceram duras críticas ao governo e ao Fundo de Resolução, por considerar que não foi salvaguardado o interesse público, na forma de lidar com a instituição bancária herdeira do Banco Espírito Santo (BES). E, no verão de 2023, foi ouvido pela comissão parlamentar de inquérito (CPI) à tutela política de gestão da TAP Air Portugal, chamado pelo Partido Comunista Português (PCP), por ter sido o responsável pela auditoria à privatização e recompra da TAP, na qual o TdC não apontou irregularidades ao uso dos fundos Airbus por David Neeleman.

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O Partido Social Democrata (PSD) reagiu, criticando a ausência de contraditório, o que não corresponde à verdade. Com efeito, nos termos do texto integralmente publicitado no site do TdC, foi solicitado o contraditório às várias entidades envolvidas no processo, sobre o que o tribunal fez a respetiva apreciação. A própria ANA, que foi ouvida, limita-se a referir que não concorda com algumas das conclusões.

Não digo que o relatório seja político, e não técnico, como atira o PSD, mas percebe-se o desconforto de alguns juízes conselheiros da 2.ª Secção (a que emitiu o relatório) que exerceram cargos no período da troika.

o PCP, como revelou, em primeira mão, o secretário-geral, a 6 de janeiro, num comício na Maia, no distrito do Porto, vai propor a realização de uma comissão parlamentar de inquérito (CPI) à privatização da ANA, logo após as eleições legislativas de 10 de março.

Paulo Raimundo salientou que, em nove anos, os donos da ANA ganharam 1.400 milhões de euros, mais do que o que tinham pago pela empresa. “Pior ainda, se nada for feito, até 2062, esta multinacional irá embolsar mais de 20 mil milhões de euros para os seus acionistas, 20 mil milhões que dariam para construir aeroportos, escolas, hospitais e que, em vez de ficarem no país, engrossarão a conta bancária de uns poucos”, atirou. Falando numa “vergonha, num crime e num assalto aos recursos nacionais”, considerou que se a privatização dos aeroportos foi um escândalo, escândalo maior seria permitir que esse “assalto ao país” continuasse até 2062, e defendeu que se impõe acabar com a “ruinosa privatização”, tendo o Estado português, não só o direito, mas o dever de agir para recuperar para o país o que nunca deveria ter sido entregue a uma multinacional.

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Penso que é necessário que o Parlamento inquira e dê a público o que se passou com esta privatização, para o que será útil uma CPI, pois quem não deve não teme e quem foi responsável deve restar contas. Porém, é de aguardar pelas conclusões de uma segunda auditoria, que o TdC vai iniciar, sobre a gestão de infraestruturas aeroportuárias e cujo relatório se prevê para o segundo semestre do corrente ano de 2024.

2024.01.07 – Louro de Carvalho

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