segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

Celebração da Epifania do Senhor ou da universalidade da salvação

 

A Solenidade da Epifania do Senhor está umbilicalmente conexa com o Natal. Com efeito, não fazia sentido conceber a encarnação do Verbo de Deus sem o horizonte da sua revelação a todos os povos do Mundo, a maior parte dos quais era considerada pagã e tida, pelos Israelitas, como afastada da salvação.

A revelação do mistério do Natal inscreve, na perceção do desígnio divino, a dimensão da universalidade. Por um lado, o anúncio do Messias Senhor é feito pelo anjo, em primeira mão, aos pastores, grupo considerado marginal, rude e pobre; por outro lado, o coro angélico canta “glória a Deus nas alturas ou nos céus (in excelsis ou in altissimis, expressões latinas; en hypsístois, expressão grega) e paz aos homens na terra (in terra, expressão latina; epì gê, expressão grega) (cf Lc 2,8-14; 25-32), o que aponta à pluralidade. O cântico de Simeão vê, no menino apresentado no Templo, a Salvação preparada por Deus à vista de todos os povos, luz para se revelar às nações e, obviamente, glória do povo de Israel (cf Lc 2,25-32).     

Porém, desta feita, a liturgia celebra a manifestação de Jesus a todos os homens. O Menino do presépio é uma luz que se acende na noite do Mundo e atrai a si todos os povos da terra. Essa luz encarnou na nossa História e no nosso Mundo, iluminou os caminhos dos homens, conduziu-os ao encontro da salvação e da vida definitiva.

primeira leitura (Is 60,1-6) faz de Jerusalém o local aonde chegará a luz salvadora de Deus, que transfigurará o rosto da cidade, iluminará o regresso a casa dos exilados na Babilónia e atrairá os povos de todo o Mundo.

Os capítulos 56-66 do Livro de Isaías apresentam profecias de diversos autores pós-exílicos, que redigiram os textos ao longo de um arco de tempo relativamente longo (entre os séculos VI e V a.C.). A cidade que os Babilónios deixaram em ruínas, em 586 a.C., começa a reerguer-se. As marcas do passado veem-se nas pedras calcinadas da cidade; os filhos e filhas de Jerusalém regressados do exílio babilónico são em número reduzido; a pobreza obriga a que a reconstrução seja lenta e modesta; os inimigos espreitam e a população está desanimada. Porém, sonha-se com o dia em que Deus voltará à sua cidade a trazer a salvação. E Jerusalém voltará a ser a cidade bela e harmoniosa, o Templo será reconstruído e Deus habitará para sempre no meio do seu Povo.

O trecho em apreço é a glorificação de Jerusalém, a cidade da luz, a “cidade dos dois sóis”: o sol nascente e o sol poente. Com efeito, pela sua situação geográfica, no alto das montanhas da Judeia, a cidade é iluminada desde o nascer do dia, até ao pôr do sol.

A Jerusalém imersa na obscuridade é, de súbito, acordada pelo troar do grito da sentinela que anuncia a aurora. O sol, que aparece atrás das montanhas, a oriente, ilumina as pedras brancas do casario. A cidade está em reconstrução, mas é transfigurada pela luz matutina. É como se, tirados os vestidos negros de viúva, se vestisse de branco, qual noiva preparada para acolher o seu amado, revestida da veste da salvação, envolta no manto da justiça e adornada com as suas joias.

O profeta/poeta, divisando esta transformação, sente-se inspirado e sonha com a Jerusalém nova, iluminada pela luz salvadora de Deus. Quando a luz de Deus se levantar sobre Jerusalém e a iluminar, novamente, a cidade, que parecia viúva triste, sem marido (porque Deus já não reside no Templo, destruído e queimado) e abandonada pelos filhos (exilados), vestir-se-á de alegria, como a jovem resplandecente no seu vestido de noiva e adornada com belíssimas joias. Os filhos, exilados em terra estrangeira, regressarão em triunfo (“trazidos nos braços”), devolvendo a alegria e a vida à cidade. Além disso, a luz salvadora de Deus atrairá homens e mulheres de todas as etnias e nações, que convergirão para Jerusalém, inundando-a de riquezas (nomeadamente o incenso, para o serviço do Templo) e cantando os louvores de Deus.

Este anúncio acende a esperança nos corações cansados e abatidos. Todos ficarão à espera do dia festivo em que começará a brilhar a luz salvadora e transformadora. Mateus liga esta profecia à vinda de Jesus, primeiro, a Belém, e, mais tarde, a Jerusalém, onde se realizará a epifania total, no alto do Calvário, e donde irradiará o grupo dos discípulos para todo o Mundo, não sem que, antes, acorra a Jerusalém, no Pentecostes, gente de todos os confins da Terra então conhecida.

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No Evangelho (Mt 2,1-12), vemos a concretização da promessa isaítica: ao encontro de Jesus vêm uns magos do Oriente, que representam todos os povos da terra. Atentos aos sinais da chegada do Messias, os magos procuram-No, com a esperança até O encontrar, reconhecem n’Ele a salvação de Deus e aceitam-No como “o Senhor”. A salvação rejeitada por Jerusalém torna-se o dom que Deus oferece a todos os homens, sem exceção.

O belo episódio da visita dos magos ao Menino de Belém, narrado no evangelho de Mateus, rapidamente se tornou popular entre os cristãos. E a piedade do povo foi-o embelezando com acrescentos que, na maior parte dos casos, não encontram eco no texto mateano.

O relato encaixa no género do midrash haggádico, método de leitura e de exploração do texto bíblico utilizado pelos rabis de Israel, que incluía o recurso a histórias fantasiosas para ilustrar um ensinamento. Mateus, mais do que a visita de personagens importantes ao Menino do presépio, pretende apresentar Jesus como o enviado de Deus Pai, que vem oferecer a salvação de Deus aos homens de toda a Terra.

Na base da inspiração mateana, estará a crença generalizada, na região do Crescente Fértil, de que a criança que nascia tinha a sua estrela e de que uma nova estrela pressagiava um acontecimento mudaria a História humana. É provável que o evangelista se tenha inspirado, para esta narrativa, num texto do livro dos Números onde o profeta Balaão, “o homem de olhar penetrante” (Nm 24,15), anuncia “uma estrela que sai de Jacob e um cetro flamejante que surge do seio de Israel” (Nm 24,27), anúncio que teve, para os teólogos de Israel, claro sabor messiânico.

Além disso, Mateus faz uma referência ao rei que governava a Palestina, aquando do nascimento de Jesus: Herodes, “o Grande”, falecido no ano 4 a.C., cerca de dois anos após o nascimento de Jesus. Embora notável pelas grandes obras que realizou, foi cruel e despótico, pronto a matar para defender o seu trono.

A análise dos detalhes do relato confirma que a preocupação de Mateus é catequética.

Antes de mais, o hagiógrafo insiste no facto de Jesus ter nascido em Belém de Judá. Para se entender esta insistência, é de recordar que Belém era a terra natal do rei David e que era a Belém que estava ligada a família de David. Afirmar que Jesus nasceu em Belém é ligá-Lo aos anúncios proféticos que falavam do Messias como o descendente de David, que havia de nascer em Belém e restaurar o reino de seu pai.

Depois, vem a referência à estrela que apareceu no céu e guiou os magos a Belém. A interpretação desta referência como histórica levou a cálculos astronómicos complicados para concluir que, no ano 6 a.C., uma conjunção de planetas explicava o fenómeno da estrela refulgente mencionada por Mateus; outros falavam de um cometa que, ao tempo, teria sulcado os céus do antigo Médio Oriente. Todavia, é inútil procurar nos céus a estrela ou o cometa em causa, pois Mateus não está a narrar factos históricos, no sentido hodierno. Simplesmente nos diz que o Menino de Belém é a “estrela de Jacob” de que falava o anúncio profético de Balaão (cf Nm 24,17) e que se concretiza, com o seu nascimento, a chegada aluz salvadora, focada na primeira leitura, que brilhará sobre Jerusalém e atrairá à cidade santa os povos de toda a Terra.

Quanto às figuras dos magos, é de referir que a palavra “mágos” (talvez de origem persa) abarca vasto leque de significados e é aplicada a personagens diversas: mágicos, feiticeiros, charlatães, sacerdotes persas, propagandistas religiosos. Aqui, poderá designar astrólogos mesopotâmios, em contacto com o messianismo judaico. Em todo o caso, representam, nesta catequese, os povos estrangeiros referidos na primeira leitura, que se põem a caminho de Jerusalém com as suas riquezas (ouro, incenso e mirra), para encontrar a luz salvadora de Deus que brilha sobre a cidade santa. Jesus é, no senso de Mateus e da Igreja primitiva, essa luz.

Além da catequese sobre Jesus, o relato recolhe, paradigmaticamente, duas atitudes repetidas ao longo do Evangelho: Israel rejeita Jesus, enquanto os magos do Oriente (pagãos) O adoram; Herodes e Jerusalém ficam perturbados ante da notícia do nascimento do menino e planeiam a sua morte, enquanto os pagãos sentem grande alegria e reconhecem em Jesus o salvador.

Assim, Mateus anuncia que Jesus será rejeitado pelos seus, mas será acolhido pelos pagãos, que integrarão o Povo de Deus. O itinerário dos magos reflete a caminhada dos pagãos para encontrar Jesus: atentos aos sinais, percebem que Jesus é a luz que traz a salvação, põem-se a caminho para O encontrar, perguntam aos judeus – conhecedores das Escrituras – o que fazer, encontram Jesus e adoram-No como “o Senhor”. É possível que grande número de pagano-cristãos da comunidade de descobrisse, neste relato, as etapas do seu caminho em direção a Jesus.

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segunda leitura (Ef 3,2-3a.5-6) apresenta o desígnio libertador de Deus como realidade que atingirá toda a Humanidade, congregando judeus e pagãos na mesma comunidade de irmãos – a comunidade de Jesus.

Paulo, apóstolo como os Doze, também foi recebedor da revelação do mistério, o mistério que o apóstolo dos gentios desvela aos crentes da Ásia Menor. Insiste que, em Cristo, chegou a salvação para os homens, a qual não se destina, exclusivamente, aos judeus, mas a todos os povos da Terra, sem exceção. Paulo é, por chamamento divino, o pregoeiro desta novidade, pelo que se fez o grande arauto da boa nova de Jesus entre os pagãos. Agora, judeus e gentios são membros do mesmo e único corpo (o corpo de Cristo ou a Igreja), partilham o mesmo desígnio que os faz, em igualdade de circunstâncias com os judeus, filhos de Deus; e todos partilham a promessa de Deus a Abraão (cf Gn 12,3), cuja realização Cristo levou a cabo.

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A imagem de Deus como luz que se acende na nossa vida, a iluminar as vias que temos de palmilhar, aquecendo os corações abatidos e transformando o pessimismo e o derrotismo em esperança e em vida nova, leva-nos a ultrapassar a sensação de que o Mundo onde peregrinamos se tornou lugar sombrio, com o ódio a poder mais do que o amor, com a guerra a impor-se aos esforços de paz, com o egoísmo a ser mais apreciado do que a comunhão. De facto, quando parecemos perdidos em beco sem saída, a luz de Deus vem iluminar o mapa dos caminhos que devemos percorrer para encontrar Vida.

Ligamos a vinda da luz de Deus a Jerusalém com o nascimento de Jesus. O plano de libertação que Jesus veio trazer aos homens é a luz que vence as trevas do pecado e da opressão e que dá ao Mundo um rosto mais brilhante de vida e de esperança. Mas precisamos de acolher essa luz e de dar testemunho dela, tornando-nos também luz.

Na catequese cristã dos primeiros tempos, a Jerusalém nova, que já não precisa de sol nem de lua, porque é iluminada pela glória de Deus, é a Igreja – a comunidade dos que aderiram a Jesus e acolheram a luz salvadora que Ele veio trazer. Por isso, é importante que as nossas comunidades cristãs deixem brilhar a luz libertadora de Jesus e que ninguém ouse substituir-se a ela, como importa que ninguém se deixe imobilizar pelo comodismo, nem pelas desavenças provindas da diversidade que deveria ser fonte de enriquecimento pessoal e comunitário.

Segundo Paulo, a salvação de Deus e revelada em Jesus não se destina só a Jerusalém, mas a todos os povos, sem distinção de raça, de cor, de cultura ou de estatuto social. Todos os homens e mulheres são filhos e filhas queridos de Deus. A todos Deus ama, todos fazem parte da família universal. Por isso, temos de ver em cada pessoa, para lá das diferenças e particularismos, um irmão ou uma irmã e apreciar a beleza de pertencer a uma família onde as diferenças não dividem, mas são valor acrescentado. Com efeito, a fraternidade implica o amor sem limites, a partilha, a solidariedade, bem como a responsabilidade pela sorte de todos os nossos irmãos e irmãs.

A Igreja, corpo de Cristo, é a comunidade dos que acolheram o mistério, é o espaço privilegiado da revelação do desígnio salvador de Deus em oferta a todos os homens. É a oferta que não podemos desbaratar, mas que devemos acolher e cultivar, para que frutifique.

Há que atentar nas atitudes das várias personagens que Mateus apresenta em confronto com Jesus, a “luz salvadora” enviada por Deus: os magos, Herodes, os príncipes dos sacerdotes e os escribas do povo. Estas distintas personagens assumem atitudes diversas, que vão da adoração (os magos), à rejeição total (Herodes), passando pela indiferença (os sacerdotes e os escribas: nenhum se preocupou em ir ao encontro do Messias que eles conheciam bem dos textos sagrados). Importa que reflitamos sobre com qual destas personagens nos identificamos. Será inconsequência e hipocrisia haver “cristãos praticantes”, envolvidos nas atividades da comunidade cristã e, simultaneamente, a passar-lhes ao lado as propostas de Jesus.

Os magos, como “homens dos sinais”, sabem ver na estrela o sinal da vinda da luz libertadora de Deus. Talvez hoje, dada a pressão da vida nos coloca, não tenhamos tempo para olhar para o céu, à procura dos sinais de Deus. Todavia, a aventura da existência terá mais sentido, se arranjarmos tempo para parar, para meditar, para falar com Deus, para escutar as suas indicações, para tentar ler os sinais que Ele vai pondo ao longo do nosso caminho.

O relato mateano vinca a desinstalação dos magos: descobriram a estrela e, imediatamente, deixaram tudo para procurar Jesus. O risco da viagem, a incomodidade do caminho, o confronto com o desconhecido, nada os impediu de partir. Hoje, muitos cristãos estão instalados e não decidem sair da sua zona de conforto, para responderem aos apelos de Jesus, sobretudo os do Jesus presente nos irmãos que necessitam da nossa ajuda e do nosso cuidado.

Os magos representam os homens de todo o Mundo que vão ao encontro de Cristo, que acolhem a libertação que Ele traz e que se prostram diante d’Ele. São a imagem da Igreja – a família de irmãos, constituída por gente de muitas cores e raças, que adere a Jesus e que O reconhece como o Senhor. Porém, vergonhosamente, em muitas realizações eclesiais, Cristo é expulso do centro, que é ocupado por alguns líderes que dizem representar a Igreja. Ora, não se representa a Igreja, sem se praticar, a sério, o cristocentrismo.  

Os magos, depois de encontrarem Jesus e de O reconhecerem como o Senhor, “regressaram ao seu país por outro caminho”. Também, hoje, encontro com o Menino do presépio deve ter sido um momento de confronto que nos leva a reequacionar a nossa vida, os nossos valores e opções, e a enveredar por um caminho novo, mais simples, mais humilde, mais fraterno, mais humano.

De facto, celebrar a Epifania implica não nos pormos no lugar de Cristo, assumirmos indevido protagonismo na comunidade, mas ser cristocêntricos. E a Igreja não pode ser autorreferencial, mas colocar Jesus Cristo acima e antes de tudo. Só assim pode servir verdadeiramente os homens.

2024.01.07 – Louro de Carvalho

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