quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

A intolerância religiosa não conhece geografias, nem políticas

 

Todos os países ditos civilizados fazem questão de promover e de respeitar os direitos humanos, em que se inclui a liberdade de religião. E, se se aponta, frequentemente, o dedo a vários Estados que atropelam a dignidade humana no atinente a direitos, liberdades e garantias (vida, segurança física e social, educação, trabalho, defesa, saúde, cultura, expressão, associação, reunião e participação na vida pública), deve vincar-se que o atropelo à liberdade religiosa acontece, muitas vezes, ou pelo ódio à fé ou pela contestação a teses defendidas pelas religiões.

O ataque à liberdade religiosa é explícito, se temos a perseguição e a agressão violenta (que pode levar à morte), bem como a ridicularização pública; é implícito, se quer reduzir a crença à esfera individual e à prática em espaços restritos, sem visibilidade pública, e proibir a permanência ou a simples mostra de símbolos religiosos (incluindo indumentárias) em espaços públicos. Além disso, faz recair sobre as religiões a culpa dos males de que enfermam as sociedades.       

***

Um relatório da Conferência dos Bispos Católicos dos Estados Unidos da América (EUA) (USCCB, na sigla inglesa), divulgado a 16 de janeiro, conclui que ataques a locais de culto são a “maior ameaça à liberdade religiosa, em 2024”, podendo ameaçar “a própria vida dos fiéis”.

Um relatório intitulado “Estado da Liberdade Religiosa nos Estados Unidos” é divulgado, anualmente, pelo Comité para a Liberdade Religiosa da USCCB. E, embora o tenha criado para responder às crescentes ameaças legais ao livre exercício da religião, a USCCB sentiu-se obrigada a condenar as ameaças previsíveis à vida das pessoas de fé nos EUA. “Não há maior ameaça à liberdade religiosa do que o facto de o local de culto de alguém se tornar um local perigoso. E o país, infelizmente, encontra-se num ponto em que o perigo é real”, diz a USCCB.

O relatório baseia-se em dados recolhidos pelo Comité para a Liberdade Religiosa, liderado por Kevin Rhoades, bispo de Fort Wayne-South Bend, em Indiana, para quem o relatório, que “buscou aumentar a consciência sobre as nossas preocupações com a liberdade religiosa”, é “mais um recurso para ajudar todos os católicos que procuram viver a sua fé neste grande país”. “Este relatório descreve as principais questões que ocuparam o Comité para a Liberdade Religiosa no ano passado”, disse, frisando: “Isso revela ampla gama de preocupações, como o uso indevido de leis destinadas a ajudar mulheres grávidas por agências federais para promover o aborto, ameaças à segurança dos nossos vizinhos judeus e muçulmanos e a suspeita do FBI [Federal Bureau of Investigation] a católicos que frequentam a missa tradicional em Latim.”

“Nos últimos anos, assistimos a uma taxa alarmante de vandalismo, de incêndios criminosos e de outras destruições de propriedades em locais católicos”, diz o relatório.

Desde a anulação da sentença do caso Roe v. Wade, pela Suprema Corte, em 2022, que liberalizou o aborto no país, os ataques contra a Igreja Católica e contra organizações pró-vida, aumentaram consideravelmente. Os bispos dizem que as estatísticas anuais de crimes de ódio recolhidas pelo FBI, em 2022, relataram que a taxa de crimes anticatólicos foi quase 75% mais alta do que a de qualquer outro. Tudo isto é agravado por um “fracasso geral” da parte do “governo federal em prender e processar os autores de tais ataques”, como sustenta a USCCB.

Segundo o documento, se a ameaça se limitasse à continuação dos crimes contra a propriedade que têm sido perpetrados nas igrejas católicas, nos últimos anos, talvez não fosse a principal preocupação. Porém, as tensões crescentes sobre o conflito entre Israel e Hamas aumentaram as probabilidades de ataque terrorista a uma sinagoga ou mesquita. A “atmosfera altamente carregada em torno das eleições de 2024 pode levar os extremistas de extrema-esquerda a aumentar a gravidade dos ataques às igrejas católicas; e os extremistas de extrema-direita podem ver as igrejas católicas e as instalações de caridade católicas como alvos do sentimento anti-imigrante, ou, pior, de ação violenta.”

Assim, a USCCB exorta os fiéis a “fazerem a sua parte para promover uma sociedade livre de ódio”, defendendo a igualdade de dignidade de todas as pessoas, prestando testemunho público do apelo de Cristo ao cuidado e à compaixão pelos vulneráveis e rezando pela paz. E pede aos fiéis que estejam cônscios das ameaças, enquanto estiverem em locais de culto, e que encorajem os pastores a usarem os recursos chamados “Protegendo os locais de culto”, disponibilizados pelo Departamento de Segurança Interna dos EUA.

O relatório acompanha tendências que afetam as pessoas de fé, nas esferas política, legislativa, jurídica e cultural, tendo, no âmbito da última, aumentado o sentimento antissemita e antimuçulmano e os atos de vandalismo e intimidação contra católicos e outros cristãos.

A USCCB mencionou a decisão do time de beisebol Los Angeles Dodgers de homenagear publicamente um grupo de ódio anticatólico chamado “Irmãs da Indulgência Perpétua”, durante o jogo do “Mês do Orgulho”, em junho de 2023.

Ao combinar a esfera política e a jurídica com a cultural, a USCCB registou a controvérsia crescente nas escolas em torno da identidade de género, debate que “se manifestou mais intensamente nas escolas do que em qualquer outra área”. “As controvérsias sobre a adoção da ideologia de género pelas escolas públicas deram impulso a pressões pela escolha de escolas pelas famílias, à medida que os pais religiosos procuram ambientes escolares que sejam compatíveis com as suas crenças”, reza o documento.

Todavia, isso resultou em mais batalhas legais, pois alguns Estados, como o Colorado, e grupos como a União Americana pelas Liberdades Civis e outros agiram para impedir que as escolas religiosas recebessem qualquer financiamento, pois, alegadamente, as escolas discriminam com base na orientação sexual e na identidade de género. Além disso, “pelo menos três Estados – Washington, Vermont e Delaware – apresentaram projetos de lei para eliminar o privilégio entre clérigo e penitente”, potencialmente forçando os padres a quebrar o sigilo da confissão ou a enfrentar consequências legais.

***

Também, a 16 de janeiro, o arquimandrita da igreja apostólica arménia na Europa Ocidental, padre Tirayr Hakobyan, natural de Vanadzor, na Arménia, denunciou, a partir de Roma, onde se estava de passagem, a “situação dramática” dos cristãos arménios expulsos de suas casas, em Nagorno-Karabakh, cercados pelo governo do Azerbaijão, nos últimos meses.

A Arménia e o Azerbaijão estão em conflito por causa do Nagorno-Karabakh desde 1988 (os Arménios étnicos de Nagorno-Karabakh) reivindicam independência. A região é reconhecida internacionalmente como parte do Azerbaijão, embora quase totalmente habitada por cristãos arménios. O conflito agravou-se desde 19 de setembro de 2023, quando o governo azerbaijano lançou uma ofensiva militar, depois de um bloqueio de nove meses. Mais de 100 mil pessoas deslocaram-se, nos últimos dias, para a fronteira da Arménia, em busca de refúgio.

O sacerdote lamentou que o conflito “tenha sido esquecido” e que o único objetivo do Azerbaijão seja expulsar os Arménios das suas terras e “subjugá-los sob as suas regras”. “Não há mais Arménios em Nagorno-Karabakh, [que] está totalmente vazio”, lamentou, denunciando que o Azerbaijão, onde 95% da população é muçulmana, está a converter igrejas em mesquitas e quer “eliminar qualquer vestígio da Arménia em Nagorno-Karabakh, para “redefinir a História”.

Segundo o arquimandrita, a igreja apostólica arménia em Nagorno-Karabakh tem um património muito grande e há muitas igrejas arménias dos séculos V e VI que foram totalmente destruídas. O Azerbaijão paga muito dinheiro a países, até a países europeus, para falsificar a História. Hoje, segundo o padre, é muito fácil falsificar algo e é preciso denunciar essa mentira. “Querem arruinar tudo e reconstruir uma nova terra, dizendo que ela fazia parte do Azerbaijão”, denunciou.

O padre Tirayr Hakobyan sublinhou que “não é certo destruir igrejas” e apontou que a cúpula da catedral de Ghazanchetsots, conhecida como a catedral de Cristo Salvador e a catedral de Shushi, uma das principais igrejas apostólicas arménias que foi destruída após um bombardeio, “foi substituída por uma cúpula mesquital, pois o intuito é tomar a cultura arménia. Os Arménios sempre viveram em paz com os muçulmanos e respeitaram os seus lugares sagrados. E a religião, para os Arménios, é componente da identidade: “Ser Arménio é ser cristão.”

Dos 12 milhões de Arménios no Mundo, três milhões vivem na Arménia. “Como cristãos, os Arménios sempre respeitaram outras nações e viveram em paz noutros países. No Irão, no Dubai, no Líbano ou na Síria, sempre viveram juntos, sem nenhum problema, porque respeitam os muçulmanos e seu modo de vida”. “Porém, se um povo vem para absorver outro povo, isso é um perigo. Eles dizem que nossa cultura é a cultura deles”, denunciou o sacerdote.

O padre vincou que o Azerbaijão se encontra num enclave “onde os interesses de grandes países se confrontam” e sublinhou que “o gás da Rússia passa pelo Azerbaijão, que revende esse gás, e é por isso que nenhum país quer ofender o Azerbaijão”. Enfatizou que “o Mundo condena a Rússia pela invasão. O Azerbaijão fez o mesmo e o Mundo aceita”. “Estamos a sentir-nos sozinhos.”

Acentuou: “todas as casas foram esvaziadas e roubadas, ninguém levou nada consigo, tiveram apenas um dia depois do ataque. Os seus pertences foram levados pelos soldados.”

O sacerdote disse ter testemunhado o desespero dos cristãos expulsos de suas casas. “Pude visitar várias famílias e não encontrei um pingo de esperança.” “Em Nagorno-Karabakh, começaram do zero, construíram tudo, esperando um belo futuro e, agora, têm de começar tudo de novo, não há esperança. É uma situação muito triste, que tem a ver com dificuldades económicas, mas também psicológicas, e eles precisam de ajuda imediata”, salientou.

Entre as famílias deportadas, havia cerca de 30 mil crianças que ficaram “dez meses sem infância”, enfatizou o padre. “É um sofrimento contínuo. Não queriam ir para longe da fronteira, para estarem o mais próximo possível de suas casas, mas ninguém está a falar sobre o retorno deles, talvez eles nunca mais possam voltar.”

***

A Libreria Editrice Vaticana, editora da Santa Sé, publicou “La Lama e la Croce” (A lâmina e a cruz), sobre católicos martirizados por se oporem ao nazismo, evidenciando “as vicissitudes e o martírio dos católicos que desafiaram Hitler em nome da consciência”.

Adolf Hitler foi o ditador que chefiou um governo racista na Alemanha, de 1933 a 1945, e levou o Mundo à Segunda Guerra Mundial, que causou mais de 50 milhões de mortes.

O autor, Francesco Comina, diz que são histórias “para serem contadas aos jovens, para que possam ser intérpretes de uma memória viva”. “Trata-se de religiosos, leigos, jovens, mulheres que tiveram a coragem de dizer um sonoro ‘não’ ao nazismo e que agiram em nome duma fé e dum Evangelho lançados nas profundezas da História”, disse ao “Vatican News”.

O livro inclui mártires beatificados, como o camponês austríaco Franz Jägerstätter e o membro da Ação Católica alemã, Josef Mayr-Nusser, bem como outros que permaneceram na sombra: “Histórias ainda enterradas na memória do antinazismo na Alemanha”. “Foi um trabalho de escavação: andei a vasculhar documentos que já tinham sido publicados, mas sempre em pequenos grupos e, por isso, em grande parte desconhecidos”, disse Francesco Comina.

Isto ajudou-o a recolher histórias como as do padre Max Josef Mezger e do padre palotino Franz Reinish. Por acaso, conheceu o caso do padre Heinrich Dalla Rosa, da província italiana de Lana, assassinado em 1945, na Áustria, por se opor ao nazismo. “Quando entrei numa igreja, perto de Merano, vi uma placa comemorativa dessa figura e fui investigar. Mas não se sabe quase nada sobre esta história no Alto Adige, região de grande presença de germanófonos no Norte da Itália”.

A obra inclui o testemunho da berlinense Eva Maria Buch, jovem de 21 anos, condenada à forca, com os companheiros, por causa do trabalho de resistência. A jovem repetiu as bem-aventuranças, quando estava a caminho da morte. “Numa carta aos pais, escreve que morre feliz por ter vivido essa história com dignidade e coragem, e que está pronta para fazer tudo o que fez novamente”, diz Comina, enfatizando que o elemento comum a todos esses testemunhos é o facto de terem colocado a defesa da sua consciência e os valores de sua fé em primeiro lugar.

***

O governo da Nicarágua libertou e deportou, a 14 de janeiro, para o Vaticano, dois bispos, 15 padres e seminaristas, presos por oposição ao regime de Daniel Ortega, ex-líder guerrilheiro de esquerda que soma 30 anos no poder. La Prensa e Confidencial, meios de comunicação nicaraguenses mencionaram o bispo de Matagalpa, Rolando Álvarez, e o bispo de Siuna, Isidoro Mora. E Silvio José Báez, bispo auxiliar de Manágua, exilado nos EUA, confirmou a notícia da libertação d bispos, padres e seminaristas: “Os nossos pastores estão livres.”

Segundo o “Vatican News”, os clérigos chegaram a Roma na tarde do dia 14 e foram recebidos como convidados da Santa Sé. E, em comunicado, o governo da Nicarágua agradeceu ao Papa e ao secretário de Estado da Santa Sé, cardeal Pietro Parolin, “pela coordenação muito respeitosa e discreta que tornou possível a viagem ao Vaticano de dois bispos, 15 padres e dois seminaristas”. “Já foram recebidos pelas autoridades da Santa Sé, em cumprimento de acordos de boa-fé e de boa vontade, que procuram promover o entendimento e melhorar a comunicação entre a Santa Sé e a Nicarágua, para a paz e o bem-estar”, explicita o comunicado.

Libertação análoga ocorreu em outubro de 2023, quando 12 padres presos foram enviados da Nicarágua para Roma. Em agosto de 2022, o bispo de Matagalpa, Rolando Álvarez, defensor dos direitos humanos e crítico do regime de Ortega, foi forçado a permanecer na sua residência oficial junto a vários padres, seminaristas e um leigo. Duas semanas depois, quase sem comida, a polícia da Nicarágua invadiu a casa, capturou Álvarez e levou-o para Manágua, capital do país, onde foi posto em prisão domiciliar. Em 10 de fevereiro de 2023, o bispo foi condenado a mais de 26 anos de prisão por traição à pátria. Desde então, estava detido na prisão conhecida como “La Modelo”, onde estão detidos presos políticos do regime.

Isidoro Mora foi preso pelas autoridades nicaraguenses a 20 de dezembro de 2023, em meio a uma onda de prisões de padres católicos que totalizou mais de 15 prisões, só naquele mês. O bispo havia celebrado a missa um dia antes em Matagalpa, na qual rezou por Rolando Álvarez.

A 1 de janeiro, o Papa disse ter preocupação com a situação do país, “onde bispos e padres foram privados da sua liberdade”. A 2 de janeiro, Matthew Miller, porta-voz do Departamento de Estado dos EUA, exigiu que o governo da Nicarágua libertasse, imediata e incondicionalmente, o bispo Rolando Álvarez, detido injustamente há 500 dias. “A liberdade de crença é um direito humano. A continuação da detenção de Álvarez é inadmissível”, disse Miller. E o deputado católico Chris Smith, republicano de Nova Jersey, disse ao Congresso, a 30 de novembro de 2023: “O bispo Álvarez é um homem inocente que suporta um sofrimento indescritível. Sua vida e ministério têm sido um exemplo inspirador de compaixão, bondade, integridade e serviço altruísta.”

***

Aponta-se o dedo a regimes comunistas, mas outros regimes também sabem perseguir!

2024.01.17 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário