sábado, 27 de janeiro de 2024

É preciso atender ao paradigma da misericórdia divina

 

O Papa Francisco encontrou-se, a 26 de janeiro, no Palácio Apostólico do Vaticano, com os membros do Dicastério para a Doutrina da Fé (DDF), cujo prefeito, o cardeal Víctor Manuel Fernández, é o autor da declaração “Fiducia supplicans”, que provocou uma série de reações dos bispos e de numerosas conferências episcopais.

No seu discurso aos membros do DDF, após a conclusão da sua assembleia plenária, Francisco especificou que “a intenção das ‘bênçãos pastorais e espontâneas’ é mostrar, concretamente, a proximidade do Senhor e da Igreja a todos os que, encontrando-se em diferentes situações, pedem ajuda para continuar – às vezes, para começar – um caminho de fé”. “Gostaria de enfatizar, brevemente, duas coisas: a primeira é que essas bênçãos, fora de qualquer contexto e forma litúrgica, não exigem perfeição moral para serem recebidas”, vincou o Pontífice, explicando que, se um casal em situação irregular, face à doutrina da Igreja, se aproxima, espontaneamente, a pedir a bênção, não se abençoa essa união, mas as pessoas em causa.

“Não é a união, mas as pessoas, naturalmente tendo em conta o contexto, as sensibilidades, dos lugares onde se vive e as maneiras mais adequadas de o fazer”, insistiu.

Depois da publicação da “Fiducia supplicans”, a 18 de dezembro de 2023, o Papa fez sua primeira declaração sobre o tema durante uma reunião privada com mais de 800 padres da diocese de Roma, a 13 de janeiro. E, em consonância com o que disse desta vez, salientou que, na Igreja Católica, as pessoas são abençoadas, e o pecado não.

Disse ainda que “a África não aceita estas bênçãos, porque há diferentes sensibilidades e que isso foi esclarecido com o cardeal [Fridolin] Ambongo”, arcebispo de Kinshasa e presidente do Simpósio das Conferências Episcopais da África e Madagáscar (SECAM).

Durante uma entrevista na televisão italiana, a 15 de janeiro, Francisco disse que, quando se toma uma decisão deste tipo, “há um preço de solidão que tem de se pagar e, às vezes, as decisões não são aceites”. E, quando as decisões não são aceites, é porque não são conhecidas”. Por isso, exortou ao diálogo, ao esclarecimento de dúvidas e à discussão fraterna. E afirmou que, se alguém guarda preconceito e ressentimento no coração, “faz uma resistência feia”.

O Papa reiterou que “o Senhor abençoa todos os que são capazes de ser batizados, ou seja, todas as pessoas”. Portanto, no dizer do Santo Padre, “as pessoas devem entrar em diálogo com a bênção do Senhor e ver qual é o caminho que o Senhor lhes propõe”, mas “temos de as levar pela mão e de as ajudar nesse caminho, não as condenando desde logo. “É o trabalho pastoral da Igreja.”

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A 18 de dezembro de 2023, o prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé, com a aprovação de Francisco, publicou a declaração “Fiducia supplicans”, que permite (não obriga) que os padres católicos abençoem, de forma “pastoral” e não ritualizada, também casais irregulares e uniões de pessoas do mesmo sexo. O documento causou divisão entre bispos e padres em todo o Mundo, e episcopados inteiros, especialmente na África, foram contra a aplicação dessas bênçãos.

Apesar da “Fiducia supplicans” garantir que “não cabe esperar outras respostas sobre como regular os detalhes ou os aspetos práticos relativos a esse tipo de bênção”, a 4 de janeiro de 2024, o cardeal Fernández publicou uma nota de imprensa, para ajudar a esclarecer a receção do documento, garantindo que as bênçãos pastorais propostas são breves, “de poucos segundos, sem Ritual de Bênção”, e que não se pretende justificar “algo que não é moralmente aceitável”.

A 11 de janeiro, com aprovação do Papa e do prefeito do DDF, o SECAM declarou que as bênçãos extralitúrgicas propostas na declaração ‘Fiducia supplicans’ não podem ser realizadas na África.

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No início do discurso de 26 de janeiro, Francisco recordou as recentes mudanças implementadas no DDF, cujo objetivo é “ajudar o Romano Pontífice e os Bispos no anúncio do Evangelho em todo o Mundo, promovendo e tutelando a integridade da doutrina católica sobre a fé e a moral, como a recebe do depósito da fé e resulta do entendimento cada vez mais profundo do mesmo, face às novas questões”. Enfatizou “a importância da presença de profissionais competentes na Secção Disciplinar, para garantir a atenção e o rigor na aplicação da legislação canónica vigente, particularmente no tratamento de casos de abuso de menores por parte de clérigos, e a fim de promover iniciativas de formação canónica para Ordinários e para profissionais do direito”. Além disso, insistiu “na urgência de dar mais espaço e atenção ao âmbito próprio da Secção Doutrinal, onde não faltam teólogos formados e pessoal qualificado”. E frisou que o DDF “se vê comprometido com a compreensão da fé em face das mudanças que caraterizam nosso tempo”.

Em seguida, Francisco, voltando a sua atenção para a importância dos sacramentos, afirmou que “a vida da Igreja é nutrida e cresce graças a eles”. Por essa razão, lembrou que “é necessário um cuidado especial dos ministros ao administrá-los e ao revelar aos fiéis os tesouros de graça que eles comunicam”. E pontuou que “o nosso tempo tem uma necessidade particularmente urgente de profetas de vida nova e de testemunhas da caridade”.

Depois, refletiu sobre a dignidade do ser humano e observou os cristãos não se devem cansar de “insistir no primado da pessoa humana e na defesa da sua dignidade, independentemente das circunstâncias”. Revelou que os membros do DDF estão a trabalhar num documento sobre o tema. E destacou o valor da fé, ao mesmo tempo em que assinalou que, durante o próximo Jubileu de 2025, “renovaremos a fé em Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, a esperança da História e do Mundo”.

Também lembrou as palavras de Bento XVI, quando lamentou que a fé “acaba, frequentemente, até negada, zombada, marginalizada e ridicularizada”. Por isso, Francisco exortou os membros do DDF a comprometerem-se e a “refletirem, novamente e com maior paixão, sobre alguns temas: a proclamação e a comunicação da fé no Mundo de hoje, especialmente para as gerações mais jovens; a conversão missionária das estruturas eclesiais e dos agentes da Pastoral; as novas culturas urbanas, com a sua carga de desafios e de questões de significado sem precedentes; e, finalmente e acima de tudo, a centralidade do kérigma na vida e na missão da Igreja”.

Para o Papa, “manter a fé” traduz-se hoje “em compromisso de reflexão e em discernimento, para que toda a comunidade se empenhe na verdadeira conversão pastoral, missionária e kerigmática, que ajude o caminho sinodal em andamento”. “O que para nós é essencial, mais belo, mais atraente e, ao mesmo tempo mais necessário é a fé em Cristo Jesus”, considerou.

Por fim, disse que todos são chamados a proclamá-la a todos os homens e mulheres da Terra. “Essa é a tarefa fundamental da Igreja”, concluiu.

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Entretanto, Maria Fischer, comentando uma entrevista do prefeito do DDF ao jornal espanhol ABC, realça as seguintes palavras do entrevistado por Javier Martínez-Brocal: “Quem interprete a bênção como uma legitimação do casamento entre pessoas do mesmo sexo ou não leu o documento ou tem más intenções.”

A 18 de dezembro, quando foi publicada a “Fiducia supplicans”, alguns pensaram: “Finalmente.”. Outros: “É demasiado tarde, as pessoas já partiram.” E outros temeram o fim da Doutrina da Fé sobre o matrimónio ou sobre a sexualidade humana. Contudo, uma palavra da recente Jornada Mundial da Juventude ressoou em muitos: “Todos”. Na Igreja, há lugar para todos, todos, todos.

Sem entrar em questões teológicas e pastorais, se fizermos nossa a recomendação implícita do cardeal Fernandez na entrevista, teremos de ler e de querer entender o documento, antes de opinar. Porém, a comentadora evoca uma oração escrita há quase 30 anos, no início humilde e muito simples dos “Dez Minutos Juntos no Presépio”, intitulada “O paradigma da misericórdia”:

Todos podem vir a Ti, Jesus, bebé na manjedoura. Anjos e ovelhas pastores e reis, ricos e pobres, famosos e desconhecidos, velhos e crianças, felizes e tristes, fortes e fracos, habilidosos e não habilidosos, culpados e santos… e eu também.

Em palavras simples, escrita para uma iniciativa missionária no presépio da Igreja da Adoração, a partir da experiência que tocou o coração, a oração fala da mudança de paradigma. Durante séculos, a Igreja atuou a partir do esquema do ‘poder sobre a pertença’, do poder de decidir quem devia entrar e quem não devia, ou quem era expulso, excluído da pertença plena, do poder sobre quem, depois de fazer ou oferecer algo, devia voltar e quem nunca devia.

A mudança de paradigma, o grande tema de Francisco e dos seus, hoje, é o de “todos”. Antes de mais, todos. E, depois, veremos como evolui o paradigma da misericórdia nas pessoas. Nada de revolucionário, porque Jesus, menino pobre nascido em Belém, pregava o mesmo. Bem, sabemos como acabou. Os que não queriam perder o poder de aceitar e de excluir crucificaram-No. Porém, ressuscitou e, desde então, procura aliados para o Reino do Pai, o Reino de Misericórdia, a Igreja de todos, “onde todos podem vir a ELE: anjos e ovelhas, pastores e reis, ricos e pobres, famosos e desconhecidos, velhos e crianças, alegres e tristes, fortes e fracos, hábeis e não hábeis, culpados e santos, … e eu também.” Esta Igreja dá a resposta do pastor, não a resposta do juiz.

O cardeal dá um exemplo: “Imaginemos que, numa grande peregrinação, um casal divorciado em nova união diz ao padre: ‘Por favor, abençoe-nos. Não conseguimos encontrar trabalho e ele está muito doente, a vida está a tornar-se muito difícil para nós, que Deus nos ajude. Negarias esta bênção? E, se eles fossem homossexuais, negarias?”

“Os Bispos locais e as Conferências Episcopais devem fazer um exercício de discernimento sobre a aplicação da “Fiducia supplicans”, disse o prefeito do DDF, comentando as reticências expressas por muitos Bispos em todo o Mundo sobre o documento que autoriza bênçãos não litúrgicas para casais “irregulares”. De facto, o documento distingue entre bênçãos litúrgicas e outras bênçãos informais e encoraja as bênçãos para pessoas em “situações irregulares” e “casais do mesmo sexo”, estipulando que não devem ser confundidas com a aprovação de comportamentos ou de circunstâncias contrárias aos ensinamentos da fé.

O cardeal argentino respondeu às críticas e opiniões divergentes expressas por outros cardeais, bispos e conferências episcopais, vincando que, “se se ler o texto com a devida disposição, se vê que apoia com grande clareza e simplicidade o eterno ensinamento católico sobre o matrimónio e a sexualidade humana”. E sublinhou: “Quem interpretar a bênção como legitimando o casamento entre pessoas do mesmo sexo ou não leu o documento ou tem má intenção.” “A declaração afirma, clara e consistentemente, que se trata de bênçãos não ritualizadas e, por conseguinte, não são interpretadas como casamento”, insistiu.

Estas bênçãos “são simplesmente a resposta de um pastor a duas pessoas que pedem a ajuda de Deus”, e não um “casamento”, a “aprovação do estilo de vida que levam” ou a “absolvição”.

Nos últimos dias, vários cardeais, bispos e conferências episcopais de todo o Mundo, mas especialmente em África, questionaram a clareza do texto ou afirmaram não o quererem aplicar. Algumas críticas, segundo o cardeal, exprimem “a inoportunidade de dar bênçãos nos seus contextos regionais, já que poderia, facilmente confundir-se com a legitimação da união irregular.

Em particular, reconhece a dificuldade de a aplicar num país onde, como em África, há “uma legislação que pune com prisão o simples facto de se declarar homossexual”. Cabe, pois, “a cada Bispo local fazer esse discernimento ou, em todo o caso, dar orientações complementares”.

Porém, os bispos não podem discordar desta doutrina. “Teremos de nos habituar a compreender que, se um padre dá este tipo de bênção simples, não está a ser herege, não está a ratificar nada e não está a negar a doutrina católica sobre o casamento”, concluiu.

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Enfim, deve triunfar a misericórdia sobre o preconceito e sobre a confusão de ideias e de termos.

2024.01.27 – Louro de Carvalho

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