quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

O processo ruidoso Christine Ourmières-Widener – TAP

A ex-presidente da Comissão executiva (ex-CEO) da TAP Air Portugal intentou ruidoso processo judicial contra o grupo empresarial, rejeitando a “justa causa” para a sua demissão e sustentando que a saída se deve a motivos políticos, na tentativa de “abafar a total falta de coordenação entre tutelas”, nomeadamente na responsabilidade pela nomeação de Alexandra Reis para Secretária de Estado do Tesouro, com responsabilidade pelo acompanhamento da execução do Plano de Reestruturação (PdR). E repesca as audições na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) à TAP, para reclamar a indemnização de 5,9 milhões de euros.

A defesa reage contra-ataque, encastelando irregularidades.

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Inês Arruda, advogada da autora, alega que a narrativa construída pelas rés foi destapada, pois a autora não decidiu, autonomamente, alterar a comissão executiva e propor a Alexandra Reis um acordo. Ao invés, “teve autorização do representante do acionista e agiu em conformidade com todas as instruções que lhe foram sendo dadas”.

Devolve ao governo a acusação de que a ex-CEO desconhecia o Estatuto do Gestor Público (EGP) e a necessidade de ser a assembleia geral a demitir Alexandra Reis: também os ministérios das Finanças e das Infraestruturas pensavam que podiam exonerar ex-CEO com justa causa e com efeitos imediatos, como sucede a membros do governo. E, vendo que não é assim, forjaram “uma alegada motivação para a demissão”, para “se furtarem a pagar-lhe a indemnização prevista no EGP”, atitude “inqualificável e, no mínimo, pouco escrupulosa”.

Segundo o processo, há “erro nos pressupostos de facto” da demissão da ex-CEO. Por exemplo, a autora “não tem que ter conhecimentos para lavrar o acordo” de renúncia celebrado com Alexandra Reis ou para aferir da conformidade do mesmo face à legislação portuguesa aplicável, em tema “controverso”, como é a “renúncia onerosa de administradores” (com compensação).

A causídica sustenta que as rés, TAP e TAP SGPS, “ignoram, propositadamente, a intervenção do Ministério das Infraestruturas e Habitação” ao longo do processo, o que é escandaloso, pois “reconhecer que o mesmo interveio deixaria as rés sem argumentos”.

A ex-CEO fez o que “um gestor profissional criterioso faria” e o relatório da Inspeção-geral de Finanças (IGF) recomenda uma “avaliação da atuação dos administradores envolvidos, quanto à inobservância dos normativos aplicáveis”, não exoneração com justa causa “em praça pública”. E alega que “as deliberações unânimes não indicam factos concretos que permitam imputar à autora as conclusões ali extrapoladas”. E, a haver ilegalidade, era sanável, pois foi recuperado o montante que, alegadamente, não devia ter sido pago.

O processo vinca “a notória falta de fundamentação da gravidade da ilegalidade”, pois recai sobre interpretação errónea do ato praticado: chama-lhe demissão, ao invés de renúncia onerosa. É disso exemplo o facto de a “decisão ter sido sustentada em assessoria jurídica, no âmbito de enquadramento legal válido […], tomada com transparência para com o Estado, com o chairman (Manuel Beja), com o CFO (administrador financeiro, Gonçalo Pires) e com dois administradores não executivos e acautelando interesses financeiros”. Para a advogada, “não havendo culpa”, a ex-CEO só podia ser demitida “por mera conveniência”, como prevê o artigo 26.º do EGP. Porém, ela “agiu com total boa-fé, convicta da legalidade do ato e da razoabilidade do valor acordado”. Sem culpa, não existe juízo de imputabilidade, pelo que não há “fundamento para demitir a autora nos termos e com os fundamentos que constam das deliberações unânimes por escrito (DUE)”.

As DUE que formalizam a demissão imputam à ex-CEO o desconhecimento das imperativas regras legais para a cessação de funções de gestores públicos, mas as rés “não alegam quais as normas em causa”. E a renúncia operou-se “nos termos que, nem a lei comercial, nem o EGP vedam: acompanhada da atribuição de uma compensação”. Assim, não se tratou de (hipotético) “desconhecimento que possa ser considerado especialmente censurável à luz do elevado padrão dos deveres de cuidado legalmente exigidos a estes gestores públicos”.

O Ministério das Finanças desconhecia o processo que levou à renúncia de Alexandra Reis até ser noticiado o valor da indemnização, há pouco menos de um ano. E a demissão da ex-CEO é sustentada no “desconhecimento e omissão continuada dos deveres de informação [às tutelas] e reporte sobre matérias centrais ao funcionamento” da TAP. No processo, é lembrada a mensagem de Hugo Mendes a Christine Ourmières-Widener: “O ministro aceita os valores, por favor fecha tudo”. Ou, depois, na CPI: “O ponto é, não foi a CEO que, de repente, se lembrou. Ela teve uma autorização do acionista, ou do representante do acionista”.

Destaca-se a presunção do ex-ministro das Infraestruturas e Habitação sobre a coordenação com a tutela das finanças, ao referir, na CPI, que, “quando deu à autora o consentimento para avançar com a proposta de reestruturação e autorização para fechar o acordo, pelo valor que resultava do email de 02/02/2021, estava convicto de que o secretário de Estado, com poderes delegados, estava coordenado com o secretário de Estado do Ministério das Finanças”.

A ação nota que a ex-CEO informou o presidente do conselho de administração e o administrador financeiro: “O acionista das rés é o Estado. E o Estado não é bicéfalo! Se existe uma descoordenação entre as tutelas, e se uma das tutelas atua em nome e representação do acionista, não pode depois o próprio Estado beneficiar dessa mesma descoordenação e prejudicar terceiros de boa-fé.” Daí se conclui que a gestora “não violou nenhum dos deveres que vêm mencionados na respetiva fundamentação da demissão com ‘justa causa’”.

A advogada também desmonta o argumento da “desconsideração pela repartição de competências entre órgãos sociais” da TAP, geradora de “intolerável quebra das relações de integridade, lealdade, cooperação, confiança e transparência com o acionista”, pois a autora continuou, durante mais de um mês, a exercer funções de CEO, participando nas reuniões da Comissão Executiva, em que votava, e tendo de lidar, diariamente, com temas urgentes.

“A acusação de que a autora é responsável pelas consequências negativas” sobre a reputação e boa gestão das rés”, ou de que “as consequências negativas sobre a reputação e boa gestão das rés” advêm do acordo com Alexandra Reis, “é revelador de uma má-fé e de um total desrespeito pela autora e pelo seu percurso profissional”, afirma o processo. “O que trouxe, eventualmente, consequências negativas sobre a reputação e boa gestão das empresas públicas foi a evidente falta de coordenação das tutelas”, a que a ex-CEO é alheia, considera a causídica.

Concluindo, a destituição da ex-CEO “não se fundou em justa causa” e há atuação ilícita e culposa da sociedade e “ataque difamatória à honra ou reputação profissional” da administradora.

A demissão ocorreu na sequência da polémica indemnização de 500 mil euros brutos paga a Alexandra Reis para renunciar ao cargo, tida como ilegal pela IGF. O anúncio foi feito, a 6 de março, pelos ministros das Finanças e das Infraestruturas, em conferência de imprensa. O Ministério das Finanças justificou a demissão com a “violação grave, por ação ou por omissão, da lei ou dos estatutos da empresa”, conforme previsto no artigo 25.º do EGP, o que não dá direito a qualquer indemnização. O seu mandato de ex-CEO terminou, formalmente, a 12 de abril, quase 22 meses depois de tomar posse. Além de Christine Ourmières-Widener, também foi demitido o chairman (presidente do conselho de administração), Manuel Beja.

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Segundo os advogados da Uría Menéndez Proença de Carvalho, a demissão da ex-CEO assenta na violação grosseira dos estatutos da TAP, da legislação aplicável ao setor público e dos deveres de cuidado e diligência a que estava obrigada, pelo que não tem direito a compensação indemnizatória. O vínculo com a ex-CEO era precário, podendo cessar a todo o momento, pois não foi assinado contrato de gestão com os ministérios das Infraestruturas e Habitação e das Finanças, em violação do EGP (artigo 18.º) e não foi trabalhadora de nenhuma das empresas da TAP (TAP SA e TAP SGPS), pois não foi celebrado contrato de trabalho.

O seu vínculo com a companhia era um Contrato de Administração (Directorship Agreement), de 24 de junho de 2021, não ratificado em Assembleia Geral ou por uma Comissão de Vencimentos. E o seu salário também estava à margem da lei. Tendo a TAP sido classificada como empresa em “situação económica difícil” não podia ter aumentado o vencimento dos órgãos sociais (artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 353-H/77, de 29 de agosto). Ora, a ex-CEO passou a auferir a remuneração fixa anual de 504 mil euros, quando a do antecessor era de 490 mil euros.

A TAP suspeita que a ex-CEO poderá ter cometido crimes de “tráfico de influência, de oferta indevida de vantagem ou mesmo de corrupção”. Em causa está a tentativa do seu marido, Floyd Murray Widener, de vender à TAP uma “solução tecnológica que permitia a validação de dados dos passageiros”, da empresa israelita Zamna, onde assumiu funções três meses depois da tomada de posse da esposa (junho de 2021). Em dezembro de 2021, “havia já um projeto-piloto em curso” daquele programa tecnológico, “à revelia do conselho de administração” da TAP, um “manifesto conflito de interesses”, com “graves riscos reputacionais” à companhia. A contratação da Zamna foi travada pela ex-administradora Alexandra Reis. E, sobre a conduta da ex-CEO, a defesa aponta, ainda, a tentativa de despedimento de um dos motoristas da administração, depois de este se ter queixado de ser solicitado em situações pessoais da ex-CEO e dos familiares, onde “se incluíam, por exemplo, idas ao cinema e jantares em restaurantes”.

Desde dezembro de 2019, Christine Ourmières-Widener é “fundadora, acionista e administradora da O&W Partners, com sede em Londres”, “empresa de consultoria de viagens e aviação (travel & airline consulting)”. Porém, não “informou ou sequer solicitou qualquer autorização” à TAP e aos acionistas para manter o cargo de administradora da O&W Partners, enquanto líder da transportadora portuguesa. E exerceu cargos remunerados como administradora da ZeroAvia e do MetOffice. Ora, a acumulação de cargos é incompatível à luz do EGP, pelo que a gestora “violou clamorosamente o regime de exclusividade”, sendo motivo de demissão por justa causa. “Em rigor, a autora deveria ter sido imediatamente destituída, logo em 2021, por violação do dever de exclusividade. O que desde logo afastaria qualquer pretensão indemnizatória.”

O processo da ex-CEO contra a TAP refere um currículo “imaculado”, “determinante para a sua contratação”. Porém, a defesa questiona os danos reputacionais alegados por ela, contrapondo “que as duas experiências da autora como CEO de uma companhia aérea foram tudo menos um sucesso”, referindo-se à sua passagem pela CityJet e a Flybe, empresas que foram vendidas “por perto de nada” ou falidas. A contestação fala em currículo “tumultuoso”, avaliação contrastante com os elogios do ex-ministro das Infraestruturas, o responsável pela escolha da gestora para a liderança da TAP, em 2021.

A defesa da contesta o papel decisivo da ex-CEO na recuperação da companhia e no regresso aos lucros, que autora invoca no pedido de indemnização. Os advogados alegam que o PdR é fruto do trabalho do Conselho de Administração e da Comissão Executiva em funções, durante o triénio 2018-2020 (até 24 de junho de 2021), liderados por Miguel Frasquilho e, na parte final, por Ramiro Sequeira. E “a melhoria dos resultados positivos da TAP”, em comparação com o PdR, deveu-se, não às suas expertises de gestão, mas à recuperação antecipada e surpreendente da economia mundial e à consequente recuperação da atividade das companhias aéreas precoce e acelerada”. Por isso, “as reais causas do recente sucesso do grupo TAP, não passaram, no essencial, pelo desempenho” da CEO.

A defesa recorre ao processo de saída de Alexandra Reis, que a IGF considerou ilegal e nulo. Foi, de resto, a auditoria da IGF que serviu de base à demissão com justa causa da ex-CEO.

A contestação alega que autora destituiu Alexandra Reis, por “animosidade pessoal”, agudizada por esta última a ter afrontado “em duas situações particulares”: tentativa de demissão do motorista e negócio com o marido da CEO. A necessidade de criar o cargo de Chief Strategy Officer, para o qual Alexandra Reis não teria perfil adequado, é apontada como “falso pretexto”. Tal como a IGF, a defesa da TAP aponta que o acordo de cessação viola o EGP, além de que a saída de Alexandra Reis não foi aprovada em assembleia geral, como impõe a lei.

A defesa da TAP considera, pelos argumentos expostos, “que não assiste qualquer razão à autora a respeito dos diversos prejuízos patrimoniais e não patrimoniais que esta alega ter sofrido em razão da sua destituição enquanto administradora” da TAP. Aponta que, não podendo o seu salário ultrapassar os 490 mil euros, “ficou em melhor situação do que aquela que a lei lhe permitia, enquanto administradora das rés, sujeita ao exercício das suas funções de administradora em regime de exclusividade”. E conclui que “ficou demonstrada a justa causa da destituição” da ex-CEO, e que a conduta por si adotada no contexto da destituição de Alexandra Reis como administradora, causou “impacto negativo na esfera reputacional” da TAP.

De toda a forma, o pedido indemnizatório “no que respeita aos alegados danos não patrimoniais causados revela-se absolutamente desadequado e desproporcional”.

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Pasmo ao ver a TAP – Conselho de Administração, Comissão Executiva e tutelas – esperar por um processo judicial contra si, para vir lavar toda a roupa suja; e não atuou antes, como era seu dever. Acusam a autora de crimes graves e não a processaram judicialmente. Se violou o artigo 7.º do DL n.º 353/77, as rés são cúmplices. Se quis correr com Alexandra Reis por incompatibilidades pessoais (sem aval do Conselho de Admsintração ou da assembleia geral), se quis despedir um motorista por recusar serviço particular e de família à ex-CEO e se fez negócios com o marido, deveriam ter atuado de imediato, pela sanidade eficácia e imagem da empresa pública e pelo prestígio do Estado. E, se foi gestora, em simultâneo, de mais duas empresas, sem autorização da TAP, deveria ter sido destituída de imediato.

Não vale alegar que não houve contrato de gestão. Se isso é verdade, tanta culpa tem a autora como as rés. E não se pode desligar, hipocritamente, a autora do mérito dos lucros da TAP.

Tudo isto devia ser objeto de processo administrativo e ou judicial contra a ex-CEO, não em sede de defesa, no estilo de contra-ataque, pois não vale tudo.

Penso que a ex-CEO devia ter sido destituída, pela assembleia geral e pela tutela, não com base em avaliação pedida, genericamente, pela IGF (não recomendou a destituição ex professo), mas com base em processo dirigido contra a ex-gestora sénior (Ela assim se designa), de modo a pagar pelos erros. Assim, é atirar poeira para um lado e lama para o outro. 

A TAP, o Estado e o povo mereciam melhor!

2024.01.17 – Louro de Carvalho


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