quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

“Não podemos prescindir da Palavra de Deus”

 

No Domingo da Palavra de Deus, a ideia-força que o Papa deixou aos fiéis é que “não podemos prescindir da Palavra de Deus, da sua força suave que – como num diálogo – toca o coração, se imprime na alma e a renova com a paz de Jesus, que nos desinquieta, em prol dos outros”. Ao mesmo tempo, a Palavra – é “o próprio autor da beleza”, por quem nos devemos deixar conquistar.

Na verdade, a liturgia do 3.º domingo do Tempo Comum no Ano B lembra que Deus nos chama e conta connosco, para sermos arautos da sua Vida e da sua salvação, no Mundo; e desafia-nos a acolher o chamamento que, nesse sentido, Deus nos dirige.

primeira leitura (Jn 3,1-5.10) é tirada do Livro de Jonas, livro de “ficção didática” escrito, provavelmente, na segunda metade do século V a.C., entre 440 e 410 a.C., e que nos conta uma história edificante, com a finalidade de ensinar e educar.

Estamos nos anos posteriores ao exílio babilónico, com a política dos líderes judaicos (Esdras e Neemias, em especial) a favorecer o nacionalismo e o fechamento do Povo de Deus aos outros povos. Vincava-se o facto de Judá ser o Povo Eleito de Deus e se considerar que todos os outros povos eram inimigos de Deus, pelo que deviam ser condenados e destruídos por Deus.

Reagindo contra essa ideologia, o hagiógrafo apresenta Javé como o Deus universal, cuja bondade e misericórdia se estendem a todos os povos, sem exceção. A escolha de Nínive como destinatária da ação salvadora de Deus não é casual. Sita na margem oriental do rio Tigre, era a capital do império assírio, a partir de Senaquerib, e ficara na consciência dos habitantes de Judá como símbolo do imperialismo e da crueldade contra o Povo de Deus. E é esta cidade que Deus quer salvar. Por isso, chama Jonas e envia-o a Nínive a pregar a conversão. Porém, a Jonas, como aos contemporâneos, não interessa que Javé perdoe aos opressores, pelo que se escusa a cumprir o mandato. Em vez de se dirigir para Nínive, no Oriente, toma o barco para Társis, no Ocidente. Devido a uma tempestade, é atirado ao mar e engolido por um peixe. Mais tarde, o peixe deposita-o em terra firme. Jonas é, de novo, chamado por Deus para a missão em Nínive.

O trecho em apreço começa com Jonas a receber o segundo mandato de Javé para ir a Nínive. Jonas, desta feita, aceita a missão, vai a Nínive e anuncia aos Ninivitas a destruição da cidade. Contra todas as expectativas, escutam-no e fazem penitência. Pela boa vontade dos Ninivitas e pelo modo como acolhem o convite à conversão, Deus desiste do castigo.

A primeira lição é a da universalidade do amor de Deus. Deus ama todos, sem exceção, e sobre eles quer derramar a sua bondade e misericórdia. Deus ama até os maus, os injustos e opressores e oferece-lhes a salvação. Deus não ama o pecado, mas ama os pecadores, cuja morte não quer, mas deseja que se convertam e vivam.

A segunda lição é a da resposta ao desafio de Deus. Ao descrever a imediatez e a radicalidade da fé dos Ninivitas em Deus e da sua conversão, o hagiógrafo sugere que os pagãos, tidos por maus, prepotentes, injustos e opressores são capazes de estar mais atentos aos desafios de Deus do que o Povo eleito. Assim, denuncia a visão nacionalista e xenófoba, tal como desafia o Povo a aceitar que Javé é um Deus misericordioso, que oferece o seu amor e a sua salvação a todos. E pretende que os habitantes de Judá assumam a lógica de Deus – lógica de bondade, de misericórdia, de perdão, de amor sem limites – e não vejam, nos outros, inimigos a destruir, mas irmãos a amar.

A terceira lição tem a ver com chamamento de Jonas e com o modo como ele responde a Deus. Deus, para intervir no Mundo, conta connosco. Por isso, chama-nos e envia-nos. É através de nós que fala aos homens e lhes aponta os caminhos da Vida. Se não aceitamos a missão, defraudamos o plano de Deus e impedimos que a salvação de Deus chegue. O profeta – o que Deus chama a ser sua voz no Mundo – não tem o direito de se demitir, quando Deus quer precisar dele. E, quando ousa vencer os seus medos e comprometer-se na missão, Deus faz coisas extraordinárias, apesar da fragilidade do mensageiro. 

***

A segunda leitura (1Cor 7,29-31) mostra que os cristãos, na ótica paulina, devem ter em conta que “o tempo é breve”, ao terem de optar. Na verdade, o cristão vive mergulhado na realidade terrena, mas não vive para ela, pois, como é efémera, não deve ser absolutizada. O fundamental e a pôr antes de tudo é a realidade eterna. E o cristão, embora estimando as realidades do Mundo, pode renunciar a elas, em vista de um bem maior. O mais importante deve ser o amor a Cristo e a adesão ao Reino. Tudo o mais, ainda que importante, deve subjugar-se a isto.

Na catequese aos Coríntios, o apóstolo aplica estes princípios à questão do casamento/celibato. O casamento é importante (o casamento e o celibato são dons de Deus), mas não deixa de ser realidade terrena e efémera, que não deve, por isso, ser absolutizada. Paulo nunca diz que o casamento seja realidade má ou caminho a evitar, mas tem predileção pelo celibato, pois, na sua ótica, leva vantagem enquanto caminho que aponta para as realidades eternas: anuncia a vida nova de ressuscitados que nos espera e facilita um serviço mais eficaz a Deus e aos irmãos.

Para se perceber melhor a lógica paulina, é preciso considerar o ambiente escatológico das primeiras comunidades. Para os crentes a quem a carta se destinava, a vinda definitiva de Jesus estava iminente, pelo que se deviam relativizar as realidades transitórias, como o casamento.

***

O passo evangélico do dia (Mc 1,14-20) desenvolve-se em dois momentos: no primeiro, Marcos resume a pregação inicial de Jesus (Mc 1,14-15); no segundo, apresenta os primeiros passos da comunidade dos discípulos – a comunidade do Reino (cf Mc 1,16-20). 

No resumo da parénese inicial, Marcos põe na boca de Jesus as seguintes palavras: “Cumpriu-se o tempo e está próximo o Reino de Deus. Arrependei-vos e acreditai no Evangelho” (Mc 1,15).

Na expressão “cumpriu-se o tempo”, a palavra grega utilizada por Marcos e que se traduz por “tempo” (“kairós”) refere-se a um tempo distinto do tempo material (“chrónos”), o medido pelos relógios. A expressão pode traduzir-se: “segundo o plano de salvação de Deus para o Mundo, chegou a altura do cumprimento das suas promessas”. É o “tempo” do “Reino de Deus”. A expressão – frequente no Evangelho de Marcos – leva-nos ao grande sonho do Povo de Deus. A catequese de Israel referia-se, com frequência, a Javé como o rei que, sentado no trono, governa o seu Povo. E, quando Israel passou a ter reis terrenos, eram tidos como escolhidos e ungidos por Javé para governar o Povo, em lugar do verdadeiro rei, que era Deus. O exemplo típico do rei/servo de Javé, que governou Israel sob a vontade de Deus, foi David. A saudade deste rei e do tempo ideal de paz e de felicidade marcará toda a História futura de Israel. Em épocas de crise e de frustração nacional, quando reis medíocres guiavam a nação por caminhos de morte e de desgraça, o Povo sonhava com o regresso aos tempos gloriosos de David. Os profetas alimentarão a esperança do Povo, anunciando o futuro, em que Javé reinará sobre Israel e restabelecerá a situação da época de David. Essa missão, na perspetiva profética, será confiada a um ungido que Deus enviará. Esse “ungido” (em Hebraico, “messias”; em Grego, “cristo”) fará um tempo de paz, de justiça, de abundância, de felicidade infindas – isto é, o tempo do “reinado de Deus”.

O “Reino de Deus” é, pois, uma noção que resume a esperança de Israel no Mundo novo preparado por Deus. Esta esperança está viva no coração de Israel, quando Jesus aparece a dizer: “O tempo completou-se e o Reino de Deus aproximou-se”. As afirmações de Jesus, veiculadas pelos Sinóticos, mostram que Ele tinha consciência de estar, pessoalmente, ligado ao Reino e de que a chegada do Reino dependia da sua ação.

Jesus começa a construção do Reino, pedindo aos conterrâneos a conversão (“metanoia”) e o acolhimento da Boa Nova (evangelho). Conversão é transformar mentalidade e comportamentos, assumir nova atitude, reformular os valores que orientam a vida, reequacionar a vida, de modo que Deus seja o centro da existência da pessoa e ocupe sempre o primeiro lugar. Na ótica de Jesus, não é possível o Mundo novo tornar-se realidade, sem a pessoa renunciar ao egoísmo e à autossuficiência e sem escutar Deus e a sua proposta. E crer não é só aceitar um conjunto de verdades intelectuais, mas aderir à pessoa de Jesus, escutar a sua proposta, acolhê-la no coração, fazer dela o guia da própria vida; é escutar a Boa Notícia de salvação e de libertação (evangelho) que Jesus propõe e fazer dela o centro de toda a existência.

Depois de dizer qual a proposta de Jesus, Marcos apresenta os primeiros discípulos. Pedro e André, Tiago e João são – na sua versão – os primeiros a responder ao desafio do Reino.

A descrição da vocação destes discípulos – modelo da vocação cristã – contém linhas de base a relevar. O chamamento parte de Jesus. Não são os discípulos que O escolhem, mas é Ele que Se lhes dirige e os convida a segui-Lo. É iniciativa soberana, que faz pensar no modo como Deus chamava os profetas. Depois, o chamamento de Jesus é dirigido a pescadores da Galileia e não a pessoas com nomes sonantes ou com qualificações excecionais. É com pessoas assim que Jesus conta para construir o Reino de Deus. Além disso, o chamamento é imperativo e decisivo: Ele passa e chama, sem explicar, sem garantir e sem olhar se os homens aceitam ou não o desafio.

Mais: os discípulos são convidados a colocarem-se atrás de Jesus (“Vinde atrás de mim”). É esse o lugar do discípulo. Deve seguir o Mestre, percorrer o caminho que Ele vai traçando. É bem diferente dos discípulos dos rabis judaicos, que frequentavam as aulas do mestre para aprender e, depois, repetir a doutrina. Os discípulos de Jesus devem ir atrás dele, aderir à sua pessoa, fazer com Ele experiência de vida, caminhar com Ele até ao fim – até à cruz, até ao dom da vida.

Por sua vez, a resposta ao chamamento é total, imediata e incondicional. Eles não pedem tempo para porem em ordem os negócios pendentes ou para se despedirem da família: deixam toda a sua vida em suspenso e a vão atrás de Jesus. É deste modo radical que o discípulo responde a Jesus.

A missão é de “pescadores de homens”. Trata-se da metáfora conexa com a ideia semita de que o mar significava as águas abissais, o caos, o horror do mal. Os discípulos, enquanto “pescadores de homens”, têm a missão de salvar os homens do mar do sofrimento e da opressão em que estão afogados. Devem anunciar, com gestos concretos, o Deus Pai bom e Amigo da Vida. Ser “pescador de homens” é ser enviado do Deus que cura e que dá vida. É a missão do de Jesus, a que os discípulos se associam. E é a missão da persuasão, não da coação ou do engodo. A pesca é em rede: os peixes podem escapar-se e não se lhes lança o isco nem o anzol. Porém, os pescadores estão atentos ao movimento dos peixes no mar e tentam apanhá-los. A missão é da atração do encantamento, da cativação (que não do cativeiro). 

***

Francisco, na homilia da missa do Domingo da Palavra de Deus sublinha a ordem de Jesus lhes disse: “Vinde comigo”. E observa que, “deixando logo as redes, seguiram-No. Realça, deste modo, a grandeza da força da Palavra de Deus, pois dela “irradia a força do Espírito Santo”, “força que atrai a Deus”, como sucedeu aos pescadores, deslumbrados com as palavras de Jesus, “força que envia aos outros, como no caso de Jonas, que vai ter com quantos estão longe do Senhor”. A Palavra não nos deixa fechados em nós, mas alarga o coração, fazendo inverter o rumo, alterando os nossos hábitos, abrindo novos cenários, desvendando horizontes inesperados.

Segundo o Pontífice, “a Palavra de Deus pretende operar isto em cada um de nós”, como o fez com os primeiros discípulos que “deixam as redes e embarcam numa maravilhosa aventura”.

A Palavra “suscita a chamada de Jesus” e “suscita a missão”, fazendo-nos mensageiros e testemunhas de Deus num Mundo cheio de palavras, mas sedento daquela Palavra, “que muitas vezes ignora”. Ora, “a Igreja vive deste dinamismo: é chamada por Cristo, atraída por Ele, e é enviada ao Mundo, para dar testemunho d’Ele”.

Se olharmos para as testemunhas do Evangelho na História, veremos que, para todas, foi decisiva a Palavra. Santo Antão, tocado durante a missa, por um trecho do Evangelho, deixou tudo por amor do Senhor; Santo Agostinho “deu uma reviravolta na vida, quando uma palavra divina lhe curou o coração”; Santa Teresinha do Menino Jesus “descobriu a sua vocação, lendo as Cartas de São Paulo”; e São Francisco de Assis, em oração, leu, no Evangelho, que Jesus envia os discípulos a pregar e exclamou: “Isto eu quero, isto peço, isto anseio fazer de todo o coração!” São vidas transformadas pela Palavra de vida, pela Palavra do Senhor. É caso para nos interrogarmos porque é que isto não acontece a cada um de nós.

Muitas vezes, ouvimos a Palavra como surdos: “Arrastados por mil palavras, passa-nos por cima também a Palavra de Deus: ouvimo-la, mas não a escutamos; escutamo-la, mas não a guardamos; guardamo-la, mas não nos deixamos provocar à mudança de vida. Sobretudo lemo-la, mas não a rezamos.” Ora, é preciso não esquecer “as duas dimensões fundamentais da oração cristã: a escuta da Palavra e a adoração do Senhor”. Importa dar espaço à Palavra de Jesus rezada, para suceder connosco como aos primeiros discípulos.

“Deixaram as redes e seguiram-No.” Duas atitudes convergentes e mutuamente implicantes.

Deixaram o barco e as redes, ou seja, a vida que levavam. Muitas vezes, custa-nos deixar as nossas seguranças, porque ficamos presos nelas, como os peixes na rede. Mas a Palavra cura das prisões do passado, reinterpreta a existência, e sara a memória ferida inserindo nela a recordação de Deus e das suas obras em nosso favor. “Com a narração das obras de Deus por nós, a Sagrada Escritura solta as amarras duma fé paralisada e faz-nos saborear a vida cristã como ela é de verdade: uma história de amor com o Senhor”, diz-nos o Bispo de Roma.

Os discípulos seguiram atrás do Mestre, deram passos em frente. A Palavra d’Ele, “liberta dos estorvos do passado e do presente, faz amadurecer na verdade e na caridade, reanima o coração, sacode-o, purifica-o das hipocrisias e enche-o de esperança. A Bíblia assegura que a Palavra é concreta e eficaz, “como a chuva e a neve”, na terra; “como o fogo”; “como o martelo que tritura a rocha”; como a “espada afiada que discerne os sentimentos e intenções do coração”; “como um germe incorrutível que, pequeno e escondido, germina e dá fruto”. E, citando o n.º 21 da Dei Verbum, o Papa considera: “É tão grande a força e a virtude da palavra de Deus que se torna […] alimento da alma, fonte pura e perene de vida espiritual.”

Por isso, Francisco apela a que “o Domingo da Palavra de Deus nos ajude a regressar, com alegria, às nascentes da fé, que brota da escuta de Jesus, Verbo do Deus vivo” e que, “por entre as palavras que se dizem e leem continuamente sobre a Igreja, nos ajude a redescobrir a Palavra de vida que ressoa na Igreja”. E interpela-nos sobre que lugar reservamos para a Palavra de Deus em casa, se temos a Bíblia e se a lemos; se temos o Evangelho no quarto, no bolso, na bolsa, no telemóvel e se o lemos. Com efeito, “o Evangelho é o livro da vida, é simples e breve, mas muitos crentes nunca leram um, do começo ao fim”. Alguns têm-no só a adornar a estante ou a mesa.

***

Se calhar, há muito a mudar nas nossas vidas!

2024.01.23 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário