sábado, 6 de janeiro de 2024

Mais uma pessoa suspeita pelo Ministério Público, que não foi ouvida

 

Tende a ser regra o Ministério Público (MP) levantar suspeitas sobre pessoas, dar conhecimento público delas, mas não ouvir as pessoas, o que, em meu entender, não é admissível. Com efeito, embora as diligências exploratórias de investigação possam desencadear-se sem as pessoas em causa serem notificadas, logo que a suspeita tenha consistência, o suspeito deve ser ouvido; e, se não o for, para a investigação não ser prejudicada, deve obstar-se à sua divulgação.

Foi grave o primeiro-ministro (PM) saber, pela comunicação social, de um inquérito em curso contra si no Supremo Tribunal de Justiça (STJ); e ser escutado o ex-ministro das Infraestruturas, durante quatro anos (um juiz autoriza as escutas por um período de três meses, que pode ser renovado, mas é mau que o seja por tanto tempo), ao fim dos quais é constituído arguido, sem ser ouvido. E, recentemente, o MP suspeita que Ana Fontoura Gouveia, secretária de Estado da Energia e Clima, terá cedido a pressões de Vítor Escária e de Diogo Lacerda Machado, para aprovar procedimentos legais do interesse da Start Campus e que “agiu devidamente instruída”, estando em causa, segundo os procuradores que têm o encargo da Operação Influencer, o crime de prevaricação, quando Fontoura Gouveia garante que não foi constituída arguida nem contactada pelo MP e que atuou, “única e exclusivamente, pela defesa do interesse nacional”. Não obstante, encontra-se ao dispor das autoridades para esclarecer “qualquer questão” que lhe seja colocada. “Eventuais suspeitas de ilegalidades são totalmente infundadas”, afiança.

Mais: a suspeita não decorre, que se saiba, de processo contra a secretária de Estado, mas é levantada no recurso às medidas de coação do juiz de instrução (JIC) Nuno Dias Costa decretadas para os dois arguidos referidos, para o presidente da Câmara de Sines e para os dois representantes da Start Campus. É nesse texto que o MP garante ter ficado demonstrado que, por pressão ou ordem direta de Vítor Escária (então chefe de gabinete do PM), a pedido de Lacerda Machado, Afonso Salema e Nuno Oliveira Neves, a secretária de Estado agiu “nos termos por estes pretendidos” e “devidamente instruída” para o efeito.

Porém, apesar de não se mencionar se Fontoura Gouveia é arguida ou se está a ser investigada no âmbito da Operação Influencer, o recurso vai além do despacho de indiciação do MP, em que a secretária de Estado era referida, por ter sofrido pressão para acelerar o processo do Data Center de Sines, tendo, inicialmente, mostrado resistência aos pedidos dos donos da Start Campus. A avolumar as suspeitas sobre a governante estão os depoimentos de Vítor Escária e de Lacerda Machado no primeiro interrogatório judicial, após serem detidos, a 7 de novembro de 2023.

Segundo o MP, os depoimentos confirmaram as interceções telefónicas do caso. Numa das escutas, Lacerda Machado disse a Afonso Salema que foram dadas indicações à governante “para despachar” o assunto e que estava devidamente instruída e ciente do que tinha de fazer. Embora estivesse contrariada, pois chegara, havia cerca de um mês, ao Ministério do Ambiente e da Ação Climática (MAC), depois de ter sido assessora no gabinete do PM, os procuradores sustentam que foi praticado o crime de tráfico de influência por Escária, por Lacerda Machado, por Salema e por Oliveira Neves, por terem influenciado “o tempo e sentido” da governante.

Segundo as escutas, os dois homens da Start Campus planearam contactar Fontoura Gouveia, para lhe dizer que ou a secretaria de Estado conseguia andar ou teriam de falar no patamar acima, “para ver se as coisas se desbloqueiam”. Noutras conversas, os arguidos terão comentado: “Se o Escária disser para ela fazer isto, ela faz.” O então chefe de gabinete do PM referiu ter-lhe dado indicação “para os receber rapidamente” e disse a Lacerda Machado que o assunto estava “tratado”.

Ficou, pois, claro, para o MP, que os contactos telefónicos dos dois arguidos deram efeito na governante, para agir mais rapidamente na aprovação de procedimentos em prol da Start Campus.

Lacerda Machado afirmou, no interrogatório, que telefonou a Fontoura Gouveia a dizer que esteve na Start Campus e que ela tinha de olhar “definitivamente” para a portaria da energia em Sines, porque era insustentável não o fazer e que a responsável concordara, dizendo que iam começar a “estudar”, para ver se resolviam o problema. “Temos que resolver aquilo, porque há malta a chatear com isso”, terá dito o ex-consultor da Start Campus.

No recurso, o MP realça que o JIC omitiu qualquer referência, neste capítulo, ao caso.

No despacho de indiciação do MP, os procuradores revelavam que, depois de Salema e Oliveira Neves terem mantido diversos contactos com João Galamba, enquanto secretário de Estado da Energia e, depois, ministro das Infraestruturas, e adquirido o favor deste, foram confrontados com resistência ou, pelo menos, com “menor celeridade” da secretária de Estado, em relação ao interesse da Start Campus, em particular à regulamentação do reforço da capacidade da rede elétrica para satisfazer as necessidades de consumo do Data Center de Sines. Por isso, recorreram a Lacerda Machado para este contactar o PM, com vista a pressionar Fontoura Gouveia.

Após reunião, a 31 de janeiro de 2023, entre Vítor Escária e Lacerda Machado, este informou Salema de que existia indicação para a secretária de Estado os receber rapidamente. Da reunião, segundo o MP, resultaram pressões, sobre a governante, de Vítor Escária ou do PM, mas com o conhecimento e concordância deste. E a reunião com Fontoura Gouveia foi agendada para 17 de fevereiro, com Lacerda Machado alertar Salema de que precisavam de “muito charme”.

Em março, Lacerda Machado avisou Salema de que a secretária de Estado estava “devidamente instruída” e “ciente do que tinha de fazer” e que procurava “fundamentação da urgência, para ser inatacável a atribuição da capacidade de injeção”.

A 12 de maio, Fontoura Gouveia reuniu-se com Salema e Lacerda Machado, tendo-lhes indicado que haveria um leilão para atribuição de capacidade em Sines. Mas, em julho, Salema mostrava irritação com a governante, apelidando-a de “inútil”, a propósito do despacho para a fibra ótica, e queria levar o assunto ao PM. E, em junho, Salema mostrava-se inconformado por estar “tudo parado”, sugerindo uma “call” com o gabinete do PM.

O despacho de “bar aberto” (aumento de potência de consumo), tema da conversa de Salema, foi publicado a 6 de setembro, com assinaturas de Mariana Vieira da Silva e de Ana Fontoura Gouveia. Segundo o MP, dele resulta favorecimento a projetos com estatuto de Potencial Interesse Nacional (PIN) e procedimento excecional, quanto à área territorial de Sines”. E, na semana seguinte, a REN e a DGEG comunicaram a abertura pública para manifestação de interesse de atribuição de capacidade de ligação à rede elétrica de serviço público da Zona de Grande Procura.

Fontoura Gouveia, recordando o comunicado de 17 de novembro, em que o MAC prestou esclarecimentos sobre o procedimento de atribuição de rede na zona de Sines, refere que a realização de novos investimentos industriais estratégicos, no quadro da transição energética e em resultado dos fatores de competitividade, gerou procura excecional, na zona de Sines, para atribuição de capacidade de ligação à rede de instalações de consumo de energia elétrica.

Assim, para assegurar as condições de consumo de energia elétrica necessárias para a “instalação de projetos de grande escala, maduros e com interesse estratégico”, procurou-se garantir “um planeamento eficaz e atempado da infraestrutura elétrica nacional e assegurar a previsibilidade necessária aos investidores”. Mercê da elevada procura e da escassez de rede, “foi necessário desenhar um mecanismo de manifestação de procura firme” (por caução, que foca a atribuição nos projetos maduros), que inclui o procedimento de atribuição competitiva da rede, priorizando, nos casos em que a procura supera a oferta, os projetos com relevância estratégica.

Fontoura Gouveia revela que o procedimento excecional de atribuição de capacidade de ligação à rede resulta dos trabalhos do “Grupo de Trabalho de Avaliação e Planeamento das Necessidades de Energia Elétrica – Grandes Consumidores”, que constituiu, enquanto secretária de Estado da Energia e Clima, a 27 de março de 2023, e que concluiu os seus trabalhos a 5 de maio.

A primeira versão do diploma que deu origem ao procedimento foi concluída em maio, após consultas à ERSE, à REN e à E-Redes, operadores da rede de transporte e de distribuição. A versão final foi aprovada em Conselho de Ministros, a 27 de julho, promulgada a 1 de setembro e publicada no dia 6 (Decreto-Lei n.º 80/2023, de 6 de setembro). O procedimento, transparente e competitivo, está em curso. À fase de manifestação de interesse candidataram-se 32 projetos, de 25 entidades. Prestaram caução 17 projetos, de 12 entidades, nove dos quais são de PIN.

A caução permite aferir a procura firme, garantindo gestão e planeamento eficaz da rede elétrica. E a REN faz o confronto entre procura e oferta de rede, para avaliar a necessidade de leilão, caso em que os projetos PIN, pela sua relevância estratégia e transformadora, terão prioridade.

Em maré de excecional procura de rede, o procedimento é essencial para as condições de abastecimento de energia elétrica de que os projetos estratégicos, geradores de valor acrescentado e emprego, necessitam, concretizando o potencial de atração de investimento do país.

Além da secretária de Estado, o MP levanta suspeitas sobre outros governantes e ex-governantes, que não foram constituídos arguidos. A começar pelo líder do governo, que é, agora indiciado do crime de prevaricação. O MP frisou, na altura, que, no decurso das investigações surgiu, além do mais (que não especifica), o conhecimento da invocação por suspeitos do nome e da autoridade do PM e da sua intervenção para desbloquear procedimentos, sendo tais referências analisadas em inquérito instaurado no STJ, por ser o foro competente.

O PM fora apanhado, acidentalmente, no final de 2020, em escuta com um dos suspeitos do processo, Matos Fernandes, ex-ministro do Ambiente e da Ação Climática. Falaram de livros, do confinamento e da estratégia nacional de Energia. O MP considerou a conversa relevante para a investigação ao negócio do hidrogénio verde (processo separado do Data Center) e a escuta foi validada por António Piçarra, então presidente do STJ.

Matos Fernandes, que não é arguido, era alvo da investigação em parte das escutas. Estará a ser investigado pela participação nos negócios do lítio e do hidrogénio verde e poderá ser indiciado pelos crimes de prevaricação e corrupção. Segundo o Observador, está em causa o ter passado a colaborar com uma empresa do grupo de sociedades que faz parte do consórcio H2 Sines, que, alegadamente, favorecera, enquanto ministro. E o sucessor, Duarte Cordeiro, é referido como um dos beneficiados pelos almoços e jantares oferecidos pelos administradores da Start Campus, que serviriam de contrapartida pelo favorecimento à empresa.

Salema foi escutado a dizer que andara “nos copos” com o ministro e que tinha “percebido tudo” sobre as “paquicárdias” das Zonas Exclusivas. Lacerda Machado terá reunido com o ministro durante duas horas, a pedido de Salema, para tratar dos interesses da Start Campus.

Para o governante, que não pensa vir a ser constituído arguido, almoços e jantares não o impedem de defender o interesse público. O JIC considerou resolução criminosa, com requisitos do crime de oferta indevida de vantagem, os jantares oferecidos ao ministro das Infraestruturas, ao presidente da Agência Portuguesa do Ambiente e ao ministro do Ambiente e da Ação Climática.

E Siza Vieira, ex-ministro da Economia e tido por Lacerda Machado como “homem excecional”, terá sido alvo de escutas pelo MP, segundo o qual lhe pediram “decisões favoráveis” à Start Campus. Integrou a lista de convidados para um jantar no restaurante JNcQUOI que custou 260 euros por cabeça, mas não foi. Suspeito de envolvimento no caso do hidrogénio, apresentou queixa-crime por denúncia caluniosa.

***

Lido o texto MP, estará uma cadeia de personalidades (as necessárias e convenientes) envolvidas em esquemas, de modo que, na governação, parece não ficar pedra sobre pedra. Porém, ao invés do que deve ser a ação penal justa, os suspeitos não podem ser envolvidos em indiciação nebulosa, sem sustentabilidade factual, baseada no “diz-se que”. E, a partir do momento em que as suspeitas ganhem consistência, as pessoas devem ser ouvidas, quanto antes, em vez se as suspeitas serem divulgadas. Não obstante, quanto a personalidades de relevo, como o Presidente da República, o presidente do Parlamento e o PM, embora ninguém esteja acima da lei, deve-se observar alguma prudência e reserva, a menos que sejam apanhadas em flagrante, para a governação não desabar como castelo de cartas.  

A governação avança sempre no fio da navalha, entre interesse público e interesse privado, entre lei e pressão, pelo que, às vezes, é preciso clarificar, por despacho ou por via legislativa, algumas situações (por exemplo, o Decreto-Lei n.º 80/2023, referido). Muitas vezes, a lei é feita ad hoc, a que se reage só quando convém. E culpar um governo por uma crise não passa de temeridade sem consequência, como se viu com o MP islandês, que responsabilizou criminalmente todos os membros do governo pela crise económica e financeira. E tudo deu em nada.

2024.01.05 – Louro de Carvalho

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