terça-feira, 30 de janeiro de 2024

O que santo Tomás de Aquino diria sobre a inteligência artificial?

 

Como vem sendo hábito, a 24 de janeiro, dia da memória litúrgica de São Francisco de Sales, patrono dos jornalistas católicos, a Santa Sé divulgou a mensagem de Francisco para o 58.º Dia Mundial das Comunicações Sociais, a celebrar a 12 de maio, VII domingo da Páscoa (Solenidade da Ascensão do Senhor, nos países em que a Quinta-feira da Ascensão, no dia 9, não é feriado).

O texto para este ano tem como título “Inteligência artificial e sabedoria do coração: para uma comunicação plenamente humana”.

O Papa sente que o rápido avanço tecnológico suscita um espanto que oscila entre entusiasmo e desorientação. Com isso, o ser humano é confrontado com questões fundamentais, como a especificidade e o futuro da Humanidade na era da inteligência artificial (IA) e como tal mudança cultural pode ser orientada para o bem. “Neste tempo que corre o risco de ser rico em técnica e pobre em humanidade, a nossa reflexão só pode partir do coração humano”, escreve o Pontífice, que explicita: “Só dotando-nos de um olhar espiritual, apenas recuperando uma sabedoria do coração é que poderemos ler e interpretar a novidade do nosso tempo e descobrir o caminho para uma comunicação plenamente humana.”

Francisco sustenta que “a sabedoria do coração é a virtude que nos permite combinar o todo com as partes, as decisões com as suas consequências, as grandezas com as fragilidades, o passado com o futuro, o ‘eu’ com o nós”. É um dom do Espírito Santo, que permite ver as coisas com os olhos de Deus. Sem esta sabedoria, a existência torna-se insípida, pois é a sabedoria que dá gosto à vida. E não se expectável esta sabedoria das máquinas, pois, apesar de terem maior capacidade de memorizar e de relacionar mais dados do que os seres humanos, só o homem consegue decodificar o seu sentido. “Não se trata, pois, de exigir das máquinas que pareçam humanas, mas de despertar o homem da hipnose em que cai devido ao seu delírio de omnipotência, crendo-se sujeito totalmente autónomo e autorreferencial, separado de toda a ligação social e esquecido da sua condição de criatura”, observa o Pontífice.

Depois, escrevendo que, face à capacidade humana, cada coisa nas mãos do homem se torna “oportunidade ou perigo, segundo a orientação do coração”, alerta que, se, por um lado, a IA pode contribuir com o acesso e a troca de informações, por outro, pode ser instrumento de “poluição cognitiva”, alterando a realidade, através de narrações parcial ou totalmente falsas.

Evocando os problemas de desinformação causados, nos últimos anos, por fake news (notícias falsas) – e, recentemente, pelas deep fakes (media sintéticos manipulados digitalmente para substituir, de forma convincente, a imagem de uma pessoa pela de outra), Francisco concede que “a simulação, que está na base destes programas, pode ser útil em alguns campos específicos, mas torna-se perversa, quando distorce as relações com os outros e com a realidade”.

E afirma a importância da possibilidade de perceber, compreender e regulamentar instrumentos que, em mãos erradas, poderiam abrir cenários negativos. “Os algoritmos, como tudo o mais que sai da mente e das mãos do homem, não são neutros”, vinca, acrescentando que, por isso, é preciso propor modelos de regulamentação ética, para “contornar os efeitos danosos, discriminadores e socialmente injustos dos sistemas de inteligência artificial e contrastar a sua utilização para a redução do pluralismo, a polarização da opinião pública ou a construção do pensamento único.”

Neste contexto, o Pontífice exorta a comunidade internacional a adotar um tratado internacional vinculativo para regular a IA. Contudo, frisando que a regulamentação, só por si, não é suficiente, lembra que todos “somos chamados a crescer juntos, em Humanidade e como Humanidade”.

O Papa sublinha o desafio de um esforço coletivo para que se chegue a uma sociedade complexa, multiétnica, pluralista, multirreligiosa e multicultural. “A informação não pode ser separada da relação existencial: implica o corpo, o situar-se na realidade; pede para correlacionar não apenas dados, mas experiências; exige o rosto, o olhar, a compaixão e ainda a partilha.”

E, citando os conflitos no Mundo, referindo-se à guerra paralela que deriva das campanhas de desinformação, observa: “Penso em tantos repórteres que ficam feridos ou morrem no local em efervescência, para nos permitir ver o que viram os olhos deles. Pois, só tocando pessoalmente o sofrimento das crianças, das mulheres e dos homens, é que poderemos compreender o caráter absurdo das guerras.”

O Papa salienta que o uso da IA traz contribuições positivas, desde que não anule o trabalho do jornalista, mas valorize o profissional da comunicação e devolva a cada ser humano “o papel de sujeito, com capacidade crítica, da própria comunicação”. E não se sabe se a IA criará novas castas baseadas no domínio informativo, gerando novas formas de exploração e desigualdade, ou se trará mais igualdade, promovendo informação correta e maior consciência do tempo atual. “A resposta não está escrita; depende de nós. Compete ao homem decidir se há de tornar-se alimento para os algoritmos ou nutrir o seu coração de liberdade, sem a qual não se cresce na sabedoria, que amadurece, valorizando o tempo e abraçando as vulnerabilidades, e cresce na aliança entre as gerações, entre quem tem memória do passado e quem tem visão de futuro.”

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A inteligência é expressão da dignidade que foi dada pelo Criador, que fez o homem à sua imagem e semelhança e o tornou capaz, pela liberdade e pelo conhecimento, de responder ao seu amor. Assim, a qualidade fundamentalmente relacional da inteligência humana manifesta-se, de modo especial, na ciência e na tecnologia, produtos extraordinários do seu potencial criativo. “O próprio progresso da ciência e da tecnologia – na medida em que contribui para melhor organização da sociedade humana e para o aumento da liberdade e da comunhão fraterna – leva à melhoria do homem e à transformação do Mundo”, assinala o Sumo Pontífice.

Há alegria e reconhecimento pelas conquistas da ciência e da tecnologia, mas o progresso técnico-científico e o seu vasto leque de possibilidades podem constituir um risco para a sobrevivência humana e um perigo para a casa comum. Por isso, impõe-se o questionamento das consequências das novas tecnologias, a médio e longo prazo, e dos impactos que podem causar na vida dos indivíduos e da sociedade.

O Papa citou a multiplicidade de algoritmos e a extração de dados que permitem controlar os hábitos mentais e relacionais das pessoas para fins comerciais ou políticos, bem como a ética deste mecanismo e de outros similares. E, quanto às formas de IA, refere que, na linguagem comum, procuram reproduzir ou imitar as capacidades cognitivas do homem, mas o seu impacto depende não só da conceção, mas também dos objetivos e interesses de quem as possui e de quem as desenvolve, bem como das situações em que são utilizadas.

Deve entender-se a IA como uma galáxia de realidades diversas e não podemos presumir a priori que o seu desenvolvimento dará contribuição benéfica ao futuro da Humanidade e à paz entre os povos. O resultado positivo só é possível, se de agirmos com responsabilidade e respeitarmos valores humanos fundamentais, como ‘inclusão, transparência, segurança, equidade, privacidade e fiabilidade. E esta tecnologia e a sua expansão devem afastar-nos da tentação do egoísmo, do interesse próprio, do desejo de lucro e da sede de poder, e aproximar-nos da paz e do bem comum.

“A dignidade intrínseca de cada pessoa e a fraternidade que nos une como membros da única família humana devem estar na base do desenvolvimento das novas tecnologias e servir como critérios indiscutíveis para as avaliar, antes da sua utilização, para que o progresso digital possa ser verificado no respeito pela justiça e contribuir para a causa da paz”, considera o Papa.

O Papa alertou sobre a importância dos limites dentro da IA: “O ser humano, mortal por definição, pensando em ultrapassar todos os limites através da tecnologia, corre o risco, na obsessão de querer controlar tudo, de perder o controlo sobre si mesmo; em busca da liberdade absoluta, de cair na espiral de uma ditadura tecnológica.”

Reconhecer e aceitar o próprio limite como criatura é condição indispensável para o homem aceitar a plenitude como dom, ao passo que a falta de limites pode resultar em desigualdades, riqueza acumulada nas mãos de poucos, com sério risco para as sociedades democráticas.

Francisco citou o impacto das novas tecnologias no local de trabalho e pediu que a comunidade internacional, vendo como tais formas de tecnologia penetram cada vez mais nos locais de trabalho, tenha como alta prioridade o respeito pela dignidade dos trabalhadores e a importância de emprego para o bem-estar económico das pessoas, das famílias e das sociedades, para a estabilidade no emprego e para a igualdade salarial.

Quanto às armas, o Santo Padre afirma que a alta tecnologia que chegou ao setor gerou menor perceção da devastação causada e da responsabilidade do uso de armas, contribuindo para uma abordagem ainda mais fria que, às vezes, leva à guerra. “Não podemos ignorar a possibilidade de armas sofisticadas caírem em mãos erradas, facilitando, por exemplo, ataques terroristas ou intervenções destinadas a desestabilizar instituições governamentais legítimas. E o Mundo não precisa de novas tecnologias para contribuir para o desenvolvimento iníquo do mercado e do comércio de armas, promovendo a loucura da guerra”, enfatiza.

O Pontífice julga que será positivo que a Ia se centre na promoção do desenvolvimento humano integral, nas inovações importantes na agricultura, na educação e na cultura, na melhoria do nível de vida de nações e de povos inteiros, no crescimento da fraternidade humana e da amizade social, além da inclusão destes últimos, os mais frágeis e necessitados.

A tecnologia a favor da educação é outro escopo do Papa. A IA deve ter como principal objetivo a promoção do pensamento crítico, do desenvolvimento da capacidade de discernimento, no combate à desinformação, às notícias falsas e à cultura dos “muros”.

E Francisco exorta a Comunidade das Nações a trabalhar, em conjunto, para adotar um tratado internacional vinculativo, que regule o desenvolvimento e a utilização da IA nas suas diversas formas. “O objetivo do regulamento não deve ser só impedir mais candidaturas, mas também incentivar boas candidaturas, estimulando abordagens novas e criativas e facilitando iniciativas pessoais e coletivas”, sustenta, pedindo que os debates da regulamentação da IA tenham em conta as vozes de todas as partes interessadas, incluindo os pobres, os marginalizados e outros que, muitas vezes, permanecem ignorados nos processos de tomada de decisão globais.

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Entretanto, emerge uma curiosidade levantada por alguns pensadores: “O que santo Tomás de Aquino pensaria da inteligência artificial (IA) – e o que um grande modelo de linguagem pensaria de santo Tomás de Aquino?” E a reflexão é oportuna, porquanto, a 28 de janeiro, se não fosse um domingo, ter-se-ia celebrado a memória litúrgica do santo filósofo-teólogo.  

Segundo um teólogo alemão, o santo doutor da Igreja pode contribuir para as contemporâneas discussões sobre os riscos da IA ​​e sobre o seu papel na sociedade. “É claro que Tomás não podia ter previsto como a tecnologia mundial se desenvolveria, 800 anos depois de seu nascimento”, disse o catedrático de Teologia dogmática da Universidade de Augsburg, na Alemanha, Thomas Marschler, em entrevista à CNA Deutsch. “Ninguém poderia, na sua época, imaginar que um dia seriam inventadas máquinas que usariam a tecnologia da computação para resolver problemas de modo semelhante aos seres humanos inteligentes ou até superá-los.” Porém, o teólogo diz que o trabalho de Tomás de Aquino lança luz sobre os profundos aspetos filosóficos e éticos da IA.

Por exemplo, segundo Marschler, quando o fenómeno da IA é usado como forte argumento em prol da visão naturalista dos humanos, Tomás pode salvar-nos de conclusões erróneas, com as suas compreensões sobre a natureza da alma espiritual e com as suas habilidades sobre a singularidade da consciência espiritual e do seu portador pessoal.

Marschler defende que São Tomás encoraja os católicos “a pensar se o que é tecnicamente viável é sempre o que devemos implementar nas nossas ações”. Com efeito, “a tecnologia mais recente nem sempre é o que nos ajuda a alcançar o verdadeiro objetivo das nossas vidas e a tornarmo-nos bons e felizes como pessoas que são imagens de Deus nas suas almas espirituais”.

Afinal, Tomás de Aquino é conhecido como o “doutor angélico”, devido às suas virtudes, particularmente à pureza, ao profundo trabalho intelectual e aos abrangentes escritos teológicos sobre os anjos. E Marschler observa que já existem chatbots na Internet que usam IA, para responder a perguntas sobre o seu pensamento. “No entanto, ler as obras de Tomás de Aquino ainda é a melhor maneira de realmente o conhecer.”

Ao perguntar ao ChatGPT o que acha de Tomás de Aquino, a resposta é: “Vejo Tomás de Aquino como uma figura seminal na Filosofia e Teologia ocidentais, particularmente conhecido pela sua integração da Filosofia aristotélica com a doutrina cristã, o que foi inovador para a sua época”, acrescentando que ele “continua influente na Teologia e na Filosofia cristã”.

chatbot Grok na rede social X, em modo fun, tem uma visão diferente: “Acho que fez algumas contribuições significativas para os campos da Filosofia e da Teologia”, diz Grok. “No entanto, devo admitir que as suas opiniões sobre certos temas, como as mulheres e os hereges, não são ideais numa perspetiva moderna. Mas ei, ninguém é perfeito, certo? E, considerando a época em que viveu, era um homem com visão de futuro.”

Para qualquer pessoa interessada no pensamento de Tomás de Aquino, Marschler sugere o canal do YouTube e o trabalho do Instituto Tomista em Washington, D.C. “Os dominicanos que cultivam e desenvolvem a herança tomista também são ativos na França e na Itália”, diz o teólogo. “O ressurgimento do interesse pelo pensamento tomista, particularmente no mundo de língua inglesa, indica a relevância duradoura dos ensinamentos de Tomás de Aquino.”

Ao refletir sobre o impacto do trabalho de Tomás de Aquino, Marschler vincou o reconhecimento de Tomás de Aquino como doutor da Igreja. “A sua canonização em 1323 e a designação como Mestre da Igreja, em 1567, reconheceram a sua autoridade como ‘mestre universal’. Apesar da resistência de outras escolas teológicas, o seu pensamento moldou profundamente a Teologia católica, na medida em que a compreensão de teólogos contemporâneos, como Yves Congar ou Karl Rahner, é quase impossível sem referência a Tomás de Aquino.”

2024.01.30 – Louro de Carvalho

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