segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

O Ministério Público deve fazer autocrítica sobre a sua atuação

 

A tese é de António Cluny, procurador-geral adjunto jubilado, que esteve na Eurojust – Unidade Europeia de Cooperação Judiciária, em 2014, e foi, em 2011, presidente da MEDEL – Associação de Magistrados Europeus pela Democracia e Liberdade. Foi eleito, seis vezes, líder do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP) e foi perito do GRECO (Grupo de Estados Contra a Corrupção, no Conselho da Europa), integrando as equipas de avaliação dos sistemas jurídicos, serviços públicos e de Justiça do Luxemburgo (2004) e do Mónaco (2008).

O nomeado procurador-geral adjunto, em 1998, em substituição do procurador-geral da República (PGR), nos Tribunais Supremos e no Tribunal de Contas. Em entrevista à Advocatus, a 20 de dezembro de 2023, analisou o trabalho, as falhas e as qualidades do Ministério Público (MP).

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Após o 25 de Abril, o MP é alvo da crítica dos poderes. Dispõe de um instrumento constitucional e legal, que põe, às vezes, em causa a titularidade da ação penal e do poder da iniciativa na investigação criminal. Nesse poder, exercido com autonomia, reside o ponto de fricção com os poderes que dirigem o país. Se a iniciativa incide na criminalidade comum, raramente os poderes se preocupam. O problema é se a iniciativa visa ações de legalidade duvidosa de certas pessoas, a coberto e no âmbito das suas funções institucionais.

Quanto mais o MP alarga o campo de ação mais se expõe. E, como nem todas as críticas são infundadas, merecem análise da parte dos procuradores e da hierarquia. Rejeitá-las a priori, “só porque vêm do poder político ou de qualquer poder fáctico, é não compreender a lógica de funcionamento democrático da sociedade e, sobretudo, a interdependência de poderes”.

Não discute se o MP já foi melhor do que é pois, “a criminalidade grave”, sobretudo a mais sofisticada e danosa na sociedade (a económica e financeira), de que uma das causas é a delegação do Estado de algumas funções no setor privado, mudou e cresceu. A mistura de interesses concorrentes ou antagónicos gera a corrupção. Lidar com tal criminalidade exige especializada formação, na investigação e no julgamento, o que nem sempre o MP compreende.

Também seria importante encontrar, para o MP, organização e métodos de trabalho que se adequassem a “intervir na revelação e punição dos responsáveis por estes fenómenos”.

O entrevistado sustenta que o MP é, hoje, tão eficiente no tratamento da criminalidade comum, como há 46 anos. No mais, tratando-se de realidade nova, é “difícil fazer comparações”.

Quanto ao facto de a procuradora-geral da República (PGR) ter escrito o dito parágrafo sobre o primeiro-ministro (PM), a 7 de novembro, e sobre se o faria, se fosse PGR, diz não caber “a um magistrado tecer considerações públicas sobre atuações dos seus superiores hierárquicos”, sobretudo quando “se referem à sua intervenção operacional”.

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Admite que o MP deve rever a forma como comunica aos cidadãos, questão de há muitos anos e nunca bem resolvida. O MP padece de “deficiência comunicacional” no relacionamento com a sociedade, deficiência “ligada à forma como o MP se pensa a si mesmo” e a sua inserção interinstitucional, na relação com os media e com os cidadãos. Ora, não é fácil encontrar uma política comunicacional adequada, e a solução não depende só das caraterísticas pessoais do PGR.

Sobre a questão de o MP não desenvolver conferências de imprensa, discorre a partir de razões situadas nos estudos secundários, universitários e nos estágios do Centro de Estudos Judiciários (CEJ). A cultura comunicacional dos procuradores é estruturada em torno da escrita, para o que há explicações, como o medo atávico de tomar posição sobre um assunto, por insegurança, por calculismo, etc. Magistrados de outros países discorrem, à vontade, segundo um plano discursivo lógico, fundamentado e concludente. Não receiam dizer o que pensam. A sua cultura cívica “não foi afetada por maneirismos e hipocrisias herdados de regimes ditatoriais e de culturas inquisitoriais”. E, como o seu ensino privilegiou a oralidade, falam com rigor.

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Sustenta que “a falta de meios humanos foi e ainda é real”, mas  não “intransponível”, nem serve de justificação para repostas tardias e insuficientes. Se não há meios para acudir a todas as tarefas (que não funções) do MP, deve a hierarquia, após alargado debate, priorizar e/ou eliminar muitas das tarefas dos magistrados, sobretudo as que pouco contribuem para a Justiça. Tudo terá de passar pelo levantamento das tarefas que o MP acumulou motu proprio ou por imposição do legislador. Por exemplo, o Estado deve atribuir a advocacia dos casos menores a advogados. E, em casos de alguma importância, deve intervir a administração pública, como sujeito processual autónomo, nos processos do seu interesse, sem o MP. Mais do que aduzir falta de meios, é mais eficaz limpar o MP de tarefas e procedimentos injustificados.

A falta de meios humanos não é só problema nosso. Já é problema diferente a falta de meios periciais e materiais e a da sua atualização, com incidência na longevidade dos processos mais complexos e na possibilidade de se atingir a verdade dos factos, o que afeta “a Justiça toda”.

Se a Assembleia da República (AR) aprova a lei de política criminal, com as prioridades na intervenção da Justiça, especialmente do MP, é curial que o PGR e/ou os PG Regionais, a partir delas, adeqúem a intervenção regional do MP em função das realidades que se verificam no plano territorial mais reduzido, em todas as áreas. E urge, nos interesses constitucional e legalmente protegidos, que o Estado, pelo MP, os evidencie e faça respeitar a sério, na perspetiva de apoio a uma sociedade pouco ativa na defesa da cidadania.  

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Relativamente à não prestação de contas baseada na autonomia do MP, Cluny diz que, se é, por exemplo, apresentar à AR um relatório de atividades, com estatísticas de trabalho, com explicação das deficiências do sistema, apontando vias para as superar e partilhando, de forma dialogada, na AR, concorda. Porém, se é abrir portas à discussão do andamento e à razão de ser de um processo, discorda, por, aí, se poder atentar contra a autonomia do MP. 

O PGR é nomeado pelo Presidente da República (PR), sob proposta do governo e só pode ser exonerado antes do final do mandato, se tais figuras nisso acordarem. E a sus responsabilidade política perante o governo e perante o PR só pode ser acionada em função de caso grave.

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Sobre a necessidade de o MP rever métodos de trabalho, recorda a antiga sugestão de convidar figuras de bons escritórios de advogados e perguntar-lhes como organizariam o MP, se fossem o PGR. Não era para copiar o modelo, mas tal podia relevar para o MP, que sentia que algo não estava a funcionar bem e que era preciso “alterar a sua orgânica e os métodos de trabalho”. Os crimes cresciam e mobilizavam muitos meios, sem resultados. Mais tarde, viu-se que era preciso estudar as razões dos falhanços e das vitórias dos sucessos, para corrigir o modo de o MP agir em processos complexos e de repercussão social.

Importava definir, previamente, o que é sucesso. Concluir sempre os processos com acusação é questão que não existiria, se as investigações fossem rápidas e conclusivas, mas, por várias razões, tal não acontece. E são os processos mediáticos que formam a imagem institucional do MP.

Defendeu a necessidade de fazer a avaliação no final de cada processo emblemático, a cargo de magistrado não envolvido nele, o qual deve acompanhar o desenvolvimento do processo e suscitar questões que o magistrado titular e a sua equipa analisariam.

Parece-lhe impensável que a equipa de procuradores encarregada de um caso não veja definido, previamente, o titular do processo, pois os magistrados do MP estão sujeitos aos impedimentos e suspeições dos juízes, pelo que “é necessário saber quem decidiu o quê, sob pena de a atuação de somente um dos procuradores poder afetar todo processo”.

É de ter em conta que a acusação não é cópia do relatório de investigação, mas o guia, a estratégia para, em juízo, o MP fazer comprovar “os factos criminais e a culpa dos acusados”. E deve ser pensada para permitir a prova dos factos em audiência e identificar “quem tem a responsabilidade pessoal por eles”. Assim, a cisão entre a condução do processo na fase investigatória e a condução em julgamento não faz sentido. O Código de Processo Penal (CPP) privilegia o julgamento, e a acusação é projetada em função dele. O que os investigadores pensam que ocorreu, sem provas e fundado em conclusões lógicas, releva pouco em julgamento.

Sobressai o papel dos advogados que intervêm no julgamento, mas, raramente, no MP, se evidencia o procurador que intervém na audiência. Há uma cultura que privilegia a escrita do processo, sendo o julgamento a fase asseverativa da verdade obtida na instrução. Mas, hoje, não é assim, pelo que é de repensar a estrutura orgânica dos departamentos de investigação e ação penal (DIAP), que promoveram a especialização para a investigação, e não para lidar com um tipo específico de crime em toda a dimensão do processo.

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Quanto à autonomia no processo, o pior não é a intervenção hierárquica no curso da investigação, mas a intervenção hierárquica fundada, não na lei, mas na influência interna discreta de quem tem poderes de gestão capazes de condicionar a vida profissional e pessoal, “do titular do processo e que, além do mais, não é acessível às outras partes do processo”. Importa saber se tal intervenção existiu e quem decidiu o quê. E, para os titulares dos processos, os procedimentos informais, não raro exercidos por paternalismo vindo de maior experiência, são perigosos. Talvez seja necessário rever o CPP, definindo a forma de intervenção da hierarquia e, sobretudo, dando transparência e responsabilizando publicamente os autores de tais interposições.

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Quanto à transcrição de escutas, diz que o software desenvolvido para o efeito (Callscribe), cujos resultados não dispensam exame atento, não se revela eficaz. Portanto, as transcrições continuam feitas à mão, pela polícia. As disposições atinentes à execução das interceções telefónicas são pormenorizadas e resultam de sucessivas alterações legislativas. Autorizadas e comunicadas pelos serviços do TIC à(s) operador(as), o MP envia ao OPC para execução.

O MP pode tomar conhecimento do conteúdo das interceções para praticar os atos necessários para assegurar outros meios de prova. Para tanto, o procurador deve ouvir as escutas – ou a maior parte delas – para confirmar o seu conteúdo. Normalmente, é o procurador que propõe esta medida, mas o juiz de instrução criminal (JIC) pode ordenar a sua destruição autonomamente.

Como daqui resulta, a transcrição imediata ordenada pelo JIC é só para efeitos de aplicação de medidas de coação. Poderá servir para a prova desde que, na acusação, o MP as indique para esse fim. E podem arguido e assistente verificar a conformidade das transcrições indicadas pelo MP para valerem de prova. Por isso, segundo Cluny, dados os limites referidos, não há mais para acautelar, a não ser a revisão exigente da parte de quem tem, para isso, competência e obrigação.

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Sobre a frequência dos casos da acusação (casos mediáticos) que, em sede de julgamento, dá em muito pouco, diz que “a imagem do MP” é desenhada, essencialmente, pelos casos mediáticos em que intervém, “por isso ela não é hoje muito sexy”. Contudo, o essencial é “mudar a cultura e alguns dos métodos de trabalho do MP”, pois, só assim, “poderá apresentar uma imagem mais condicente com o esforço e dedicação que, todos os dias, a maioria dos seus magistrados faz para que a Justiça seja feita”, o que não impedirá que algumas das dificuldades sentidas pelo MP em áreas mais sofisticadas da criminalidade “desapareçam por encanto”.

A mudança só é possível, se todos os magistrados se envolverem no processo de renovação. Um processo de reflexão coletiva para adaptação a nova realidade já aconteceu, quando entrou em vigor o novo CPP e todos os procuradores foram chamados a integrar grupos de trabalho para interpretar e adequar os procedimentos do MP a esse novo diploma e paradigma de trabalho.

Uma mudança séria da organização e métodos de trabalho do MP, mesmo que provocados por razões e agentes externos ao MP, só terá sucesso, se for globalmente participada e mobilizadora.

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Sobre o segredo de Justiça, refere que os jornalistas sabem quem, por norma, o viola. No entanto, não se pede que denunciem os prevaricadores, mas que façam um estudo sério sobre o assunto e divulguem as conclusões. Admite que algumas fugas tenham vindo do MP, mas não a maioria. Considera que, se os jornalistas não auxiliarem, esclarecendo, com números, mais difícil se torna tomar consciência da gravidade da situação. De outro modo, a solução mais eficaz será a incluir o crime de violação do segredo de Justiça no catálogo dos que admitem escutas telefónicas. Porém, nem os indignados com a situação querem ver o problema debelado. Convém a muitos.

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Vê o artigo de Maria José Fernandes como “contributo corajoso e preocupado” para ajudar a resolver os problemas da Justiça, de que todos falam em surdina. Quanto ao estilo, recorda que sempre houve uma cultura permissiva no discurso forense. Julga importante que os que prezam a autonomia do MP lhe associem o respeito pela pluralidade de opiniões dos magistrados. 

Os legisladores devem ler os acórdãos do Tribunal de Justiça da União Europeia e o do Tribunal de Estrasburgo sobre garantias processuais, definição dos conceitos de autoridade judicial e judiciária, que realçam a importância de tais conceitos para a definição da competência processual do MP. Não falam de autonomia do MP, mas de independência. Outros países que não o fizeram estão a braços com ameaça de sanções económicas. Isto, mesmo quando argumentam (têm razão) com o regime de outros, mais antigos na União Europeia (UE), fora do modelo de governo das magistraturas por conselhos superiores, que mantêm importante papel do ministro da Justiça (MJ) na gestão dos quadros de juízes e procuradores.

Das prioridades que o futuro MJ deve ter na agenda, diz que, no atinente à Justiça, “as prioridades são todas”. Há que profissionalizar e especializar o apoio judiciário, a nível forense, para todos os cidadãos serem iguais perante a lei. Isso pode passar, pela criação de um instituto com secções regionais, que a Ordem dos Advogados tutele, onde aos aprovados em concurso se faça contrato de avença que lhes assegure estabilidade económica e competição com a advocacia privada.

Importante será regular os impedimentos e conflitos de interesses, o que exige, como para os magistrados, inspeção periódica. No respeitante às magistraturas, salvo a imprescindível adaptação do CPP ao novo Estatuto do MP, diz que não serão necessárias muito mais reformas legais. O permanente reformismo também causa ineficiência e insegurança jurídica.

Outra questão urgente, do ponto de vista humanitário, atentar na situação das prisões para, além do mais, evitarmos o vexame de ver recusado o cumprimento de mandados de detenção europeus, por causa das más condições higiénicas de alguns estabelecimentos prisionais.

No atinente a meios técnicos para apetrechar a Justiça, importa dotar as magistraturas e a Polícia Judiciária (PJ) das modernas tecnologias, para agilizar perícias e diligências processuais.

Ao invés dos que se batem contra o funcionamento da democracia, é de vincar que o bom andamento e imagem a Justiça dependem muito do que por ela fizer o poder político.

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As posições críticas de Cluny mantêm total pertinência, agora que está em curso uma espetacular ação judiciária na Madeira: 300 inspetores e peritos chegaram num avião da Força Aérea, esperados pelo batalhão de jornalistas avisados na véspera!

2024.01.29 – Louro de Carvalho

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