quinta-feira, 30 de junho de 2022

A visão da ciência no Romantismo (ou na Era da Reflexão)

 

Movido pela leitura do livro “A Era do Deslumbramento – Como a geração romântica descobriu a beleza e o temor da ciência”, de Richard Holmes, fui em demanda do tema, do que dou fé aqui.  

O Romantismo ou Era da Reflexão (1800-1840) foi o movimento intelectual que surgiu na Europa Ocidental como contramovimento ao Iluminismo do final do século XVIII, que, afetando a maioria dos aspetos da vida intelectual, incorporou muitos campos de estudo, como política, artes e humanidades, e influenciou grandemente a ciência do século XIX.

Assim, Movimento Romântico, Romantismo e Ciência têm poderosa conexão. Muitos cientistas, influenciados por versões da “Naturphilosophie”, de Johann Gottlieb Fichte, Friedrich Wilhelm Joseph von Schelling e Georg Wilhelm Friedrich Hegel, sem abandonarem o empirismo, tentaram descobrir o que acreditavam ser uma natureza unificada e orgânica.

O cientista inglês Sir Humphry Davy, pensador romântico, para quem a compreensão da natureza requeria “atitude de admiração, amor e adoração”, acreditava que o conhecimento só é possível para os que apreciam e respeitam a natureza. E a autocompreensão, que foi um aspeto importante do Romantismo, tem menos a ver com provar que o homem é capaz de compreender e controlar a natureza e mais com o apelo emocional a conectar-se com ela e a compreendê-la por meio de uma coexistência harmoniosa. Em contraste com a filosofia natural mecanicista do Iluminismo, os românticos diziam que observar a natureza requer compreender o ‘eu’ e que o conhecimento da natureza “não deveria ser obtido à força”. Achando que o Iluminismo encorajara o abuso das ciências, procuraram um novo modo de aumentar o conhecimento científico, que reputavam como benéfico para a humanidade e para a natureza.

O Romantismo desenvolveu uma série de temas, como o antirreducionismo (o todo mais valioso do que as partes) e o otimismo epistemológico (o homem ligado à natureza), e estimulou a criatividade, a experiência e o génio. Enfatizou o papel do cientista na descoberta científica, sustentando que adquirir conhecimento da natureza postula compreender também o homem. Todavia, declinou por volta de 1840, por via do movimento liderado por Auguste Comte, o Positivismo, que tomou conta dos intelectuais e durou até 1880. Como os intelectuais antes se desencantaram do Iluminismo e buscavam nova abordagem da ciência, agora perderam o interesse pelo Romantismo e procuraram estudar a ciência mediante um processo mais rigoroso.

Como o Iluminismo teve forte influência na França nas últimas décadas do século XVIII, a visão romântica sobre a ciência foi um movimento que floresceu na Grã-Bretanha e na Alemanha na primeira metade do século XIX, preconizando a autocompreensão cultural e reconhecendo os limites do conhecimento humano através do estudo da natureza e das capacidades intelectuais do homem. E resultou duma crescente antipatia de muitos intelectuais pelos princípios promovidos pelo Iluminismo. Alguns achavam que a ênfase dos pensadores iluminados no pensamento racional mediante o raciocínio dedutivo e a matematização da filosofia natural criara uma abordagem da ciência muito fria, que tentava controlar a natureza, em vez de coexistir com ela. Segundo os filósofos iluministas, a via para o conhecimento completo requeria a dissecação da informação sobre qualquer assunto e a divisão do conhecimento em subcategorias. Isso fora considerado necessário para se construir sobre o conhecimento dos antigos, como Ptolomeu, e pensadores da Renascença, como Copérnico, Kepler e Galileu. Acreditava-se que o puro poder intelectual do homem era suficiente para entender todos os aspetos da natureza. Exemplos de estudiosos do Iluminismo são: Sir Isaac Newton (física e matemática), Gottfried Leibniz (filosofia e matemática) e Carl Linnaeus (botânico e médico).

O romantismo tinha quatro princípios básicos: “a unidade original do homem e da natureza na Idade do Ouro; a subsequente separação do homem da natureza e a fragmentação das faculdades humanas; a interpretabilidade da história do universo em termos humanos e espirituais; e a possibilidade da salvação através da contemplação da natureza”.

A Idade de Ouro evoca a mitologia grega e a lenda das Eras do Homem. Os românticos procuram reunir o homem com a natureza e, portanto, com o seu estado natural, pelo que, na sua ótica, a ciência não deve provocar qualquer divisão entre a natureza e o homem. Acreditam na capacidade intrínseca da humanidade de compreender a natureza e os seus fenómenos, algo parecido com os iluminados, mas preferem não dissecar a informação como insaciável sede de conhecimento e não defendem o que veem como a manipulação da natureza. Veem o Iluminismo como “tentativa fria de extorquir conhecimento da natureza”, pondo o homem acima da natureza e não como parte harmoniosa dela. E querem “improvisar sobre a natureza como um grande instrumento”. A filosofia da natureza é dedicada à observação de factos e à cuidadosa experimentação, que é mais uma abordagem “sem mãos” para entender a ciência do que a visão iluminista.

A ciência natural, segundo os românticos, envolve a rejeição das metáforas mecânicas em prol das orgânicas, ou seja, eles veem o mundo como composto de seres vivos com sentimentos, em vez de objetos que só funcionam. Davy diz que a compreensão da natureza exige “uma atitude de admiração, amor e adoração, pois acredita que o conhecimento só é alcançável pelos que apreciam e respeitam a natureza. A autocompreensão, um aspeto importante do romantismo, tem menos a ver com provar que o homem era capaz de compreender a natureza (através do seu intelecto florescente) e, portanto, controlá-la, e mais com o apelo emocional de se conectar com a natureza e compreendê-la por meio de uma coexistência harmoniosa.

Ao categorizar as muitas disciplinas da ciência que se desenvolvem nesse período, os românticos acreditam que as explicações de vários fenómenos devem ser baseadas em vera causa, sendo que as causas já conhecidas produziriam efeitos semelhantes em outros lugares. É assim que o Romantismo é antirreducionista: não se acredita que as ciências inorgânicas estejam no topo da hierarquia, mas na base, com as ciências da vida próximas e a psicologia ainda mais elevada. Tal hierarquia reflete os ideais românticos da ciência, porque todo o organismo toma mais precedência sobre a matéria inorgânica, e os meandros da mente humana tomam ainda mais precedentes, pois o intelecto humano é sagrado e necessário para compreender a natureza em torno dela e a reunir.

As disciplinas do estudo da natureza, na ótica dos românticos, incluem: a “Naturphilosophie”, de Schelling, com a conceção romântica de ciência e a visão da filosofia natural; a “cosmologia e cosmogonia” (elogiando as qualidades estéticas do mundo natural e descrevendo a ciência natural em tons religiosos, pois ciência e beleza complementam-se); a “história desenvolvimentista da terra e as suas criaturas”; a “nova ciência da biologia”, iniciada por Jean-Baptiste Lamarck, em 1801, mercê da erosão da filosofia mecânica; as “investigações de estados mentais, conscientes e inconscientes, normais e anormais”; as “disciplinas experimentais de descoberta das forças ocultas da natureza – eletricidade, magnetismo, galvanismo e outras forças vitais” (segundo Goethe, contra Newton, a cor não é um fenómeno físico externo, mas interno ao ser humano); a “fisionomia”; a “frenologia”, a “meteorologia”, a “mineralogia”, e a “anatomia filosófica”.

As viagens de Bartram pela Carolina do Norte, Leste e Oeste da Flórida (1791) descrevem a flora, a fauna e as paisagens do sul dos Estados Unidos com uma cadência e energia que se tornaram fonte de inspiração para poetas românticos, como William Wordsworth, Samuel Taylor Coleridge e William Blake. Porém, o trabalho de Darwin, incluindo “Sobre a Origem das Espécies por Meio da Seleção Natural” (1859), marca o fim da era romântica na ciência e leva ao surgimento do realismo e ao uso da analogia nas artes.

A matemática muda, no século XIX, de prática intuitiva, hierárquica e narrativa, para resolver problemas do mundo real para um problema teórico, em que lógica, rigor e consistência interna são importantes. Surgem campos inesperados, como geometria e estatística não-euclidiana, teoria de grupos, teoria de conjuntos e lógica simbólica. À medida que a disciplina muda, mudam os homens envolvidos nela. E a imagem do trágico génio romântico, da arte, da literatura e da música, pode ser aplicada a matemáticos como Évariste Galois (1811-1832), Niels Henrik Abel (1802-1829) e János Bolyai (1802-1860). O maior dos matemáticos românticos é Carl Friedrich Gauss (1777-1855), que fez enunciados importantes em muitos ramos da matemática.

Davy, enfatizando a descoberta das causas primitivas, simples e limitadas dos fenómenos e das mudanças do mundo físico e os elementos químicos descobertos por Lavoisier, afirmou que não são os componentes individuais, mas os poderes associados a eles, que dão caráter às substâncias.

E a escritora Mary Shelley, no livro “Frankenstein, transmite importantes aspetos do Romantismo na ciência, pois inclui elementos de antirreducionismo e manipulação da natureza, assim como os campos científicos da química, anatomia e filosofia natural, a enfatiza a responsabilidade da sociedade em relação à ciência e apoia a postura romântica de que a ciência pode facilmente errar, a menos que o homem tome mais cuidado em apreciar a natureza em vez de a controlar.

Em suma, o Romantismo tem um olhar menos frio sobre a ciência que o racionalismo iluminista e que o excessivo experimentalismo positivista (fora do qual nada mais se divisa).  

2022.06.30 – Louro de Carvalho

É preciso parar as polémicas sobre a liturgia e redescobrir a sua beleza

 

A 29 de junho, Solenidade dos Apóstolos Pedro e Paulo, Francisco publicou a Carta Apostólica “Desiderio desideravi” – expressão que inicia o versículo Desiderio desideravi hoc Pascha manducare vobiscum, antequam patiar (desejei ardentemente comer esta Pácosa convosco – Lc 22,15) –, sobre a formação litúrgica do Povo de Deus, com o convite a que superemos tanto o esteticismo, que se compraz na formalidade externa, como o desleixo nas liturgia, pois “uma celebração que não evangeliza não é autêntica”.

Para recordar o significado profundo da celebração eucarística, tal como emergiu do Concílio Vaticano II, e para convidar à formação litúrgica, o documento de 65 parágrafos reelabora os resultados da sessão plenária do Dicastério do Culto Divino, em fevereiro de 2019, e vem na sequência do Motu Proprio “Traditionis custodes”, reiterando a importância da comunhão eclesial em torno do rito resultante da reforma liturgia pós-conciliar. Não é uma nova instrução ou um diretório com normas específicas, mas uma oportuna meditação para se compreender a beleza da celebração litúrgica e o seu papel na evangelização, concluindo com um apelo: “Abandonemos as polémicas para ouvirmos, juntos, o que o Espírito diz à Igreja, mantenhamos a comunhão, continuemos a maravilhar-nos com a beleza da liturgia”.

O texto está organizado em torno dos tópicos seguintes: A Liturgia: o “hoje” da história da salvação; A Liturgia: lugar do encontro com Cristo; A Igreja: sacramento do Corpo de Cristo; O sentido teológico da Liturgia; Redescobrir cada dia a beleza da verdade da celebração cristã;

Assombro ante o mistério pascal, parte essencial da ação litúrgica; A necessidade de uma séria e vital formação litúrgica; a “Ars celebrandi”.

Escreve o Pontífice que a fé cristã ou é encontro com Jesus vivo ou não é fé. E “a Liturgia garante-nos a possibilidade de tal encontro. Não se trata de uma vaga recordação da Última Ceia: temos necessidade de estar presentes nessa Ceia.

Lembrando a importância da Constituição “Sacrosanctum Concilium”, do Vaticano II, que levou à redescoberta da compreensão teológica da liturgia, o Santo Padre pretende que a beleza da celebração cristã e das suas necessárias consequências na vida da Igreja não seja deturpada por uma superficial e redutiva compreensão do seu valor ou, pior ainda, da sua instrumentalização ao serviço de alguma visão ideológica. E, tendo advertido sobre o “mundanismo espiritual” e o gnosticismo e neopelagianismo que o alimentam, sustenta que a participação no sacrifício eucarístico não é conquista nossa como se pudéssemos orgulhar-nos disso e que “a liturgia nada tem a ver com um moralismo ascético”, mas “é o dom da Páscoa do Senhor que, acolhido com docilidade, renova a nossa vida”. Com efeito, só entramos no Cenáculo levados pela força da atração do desejo do Senhor de comer a Páscoa connosco: Desiderio desideravi.

A cura do mundanismo espiritual postula a redescoberta da beleza da liturgia, redescoberta que não se compadece com a busca de “um esteticismo ritual que se compraz apenas no cuidado da formalidade externa de um rito ou se satisfaz com uma escrupulosa observância de rubricas”. Não obstante, esta asserção não aprova o comportamento oposto que confunde simplicidade com desleixada banalidade, essencialidade com ignorante superficialidade, concretude do agir ritual com exasperado funcionalismo prático.

O Sumo Pontífice salienta que deve cada aspeto da celebração ser cuidado (espaço, tempo, gestos, palavras, objetos, vestes, canto, música...) e deve cada rubrica ser observada, bastando essa atenção para não privar a assembleia do que lhe é devido, ou seja, do mistério pascal celebrado na modalidade ritual que a Igreja estabelece. Porém, ainda que se garantisse a qualidade e a norma da ação celebrativa, tal não bastaria para tornar plena a nossa participação. Efetivamente, se faltar “o encanto pelo mistério pascal” presente “na concretude dos sinais sacramentais”, correremos o risco de ser impermeáveis ​​ao oceano de graça que inunda cada celebração. Tal encanto não é perplexidade face a uma realidade obscura ou a um rito enigmático, mas é a maravilha pelo facto de o plano salvífico de Deus nos ter sido revelado no domingo de Páscoa.

Então, para recuperar a capacidade de viver plenamente a ação litúrgica face à perplexidade da pós-modernidade, do individualismo, do subjetivismo e do espiritualismo abstrato, o Santo Padre convida a retornar às grandes constituições conciliares, não inseparáveis ​​entre si. E escreve que “seria trivial ler as tensões, infelizmente presentes em torno da celebração, como uma simples divergência entre diferentes sensibilidades em relação a uma forma ritual”. Com efeito, por trás das batalhas sobre o rito, há diferentes conceções da Igreja. Porém, como diz o Papa, não se pode afirmar a validade do Concílio sem acolher a reforma nascida da “Sacrosanctum Concilium”.

Citando Romano Guardini, presente na Carta Apostólica, o Papa Francisco assegura que, sem formação litúrgica, pouco ajudam as reformas no rito e no texto. Por isso, insiste na importância da formação, em especial nos seminários, pois uma abordagem litúrgico-sapiencial da formação teológica terá efeitos positivos na ação pastoral. De facto, não há aspeto da vida eclesial que não encontre na Eucaristia, seu ápice e sua fonte. Assim, a pastoral de conjunto, orgânica e integrada, mais do que o resultado de programas elaborados, é a consequência de se colocar a celebração eucarística dominical, fundamento da comunhão, no centro da vida comunitária.

Contudo, não se pode reduzir tudo ao aspeto cultual, pois, como ensina o Papa, “não é autêntica a celebração que não evangeliza, tal como não é autêntico o anúncio que não leve ao encontro com o Ressuscitado na celebração”. E ambos, sem o testemunho da caridade, são como o bronze retumbante ou o címbalo que estrila.

Por isso, importa, diz o Papa, educar para a compreensão dos símbolos. E uma forma de o fazer é cuidar da arte de celebrar, que não se reduza à mera observância de um aparato de rubricas ou que recorra a uma criatividade imaginativa sem regras. O rito é uma norma e a norma nunca é um fim em si mesma, mas está ao serviço da realidade mais elevada que pretende salvaguardar.

Mais: a arte de celebrar não se aprende só frequentando um curso de oratória ou de técnicas de comunicação persuasiva, mas dedicando-se diligentemente à celebração, deixando que seja a celebração a transmitir-nos a sua arte. E, “entre os gestos que pertencem a toda a assembleia, o silêncio ocupa um lugar de absoluta importância”, pois “move ao arrependimento e ao desejo de conversão; suscita a escuta da Palavra e a oração; dispõe à adoração do Corpo e Sangue de Cristo”. E Francisco observa que, nas comunidades, o modo de viver a celebração está condicionado ao como o sacerdote preside à assembleia. E elenca vários “modelos” de presidência inadequados: “rigidez austera ou criatividade exasperada; misticismo espiritualizante ou funcionalismo prático; pressa ou lentidão enfatizada; descuido desleixado ou excessivo refinamento; superabundante afabilidade ou impassividade hierática”. Todos eles têm uma única raiz: o personalismo exasperado do estilo celebrativo, que expressa, por vezes, uma mania de liderança, amplificada quando as celebrações são transmitidas online. Ora, presidir à Eucaristia é mergulhar na fornalha do amor de Deus, o que nos dispensa de um diretório que nos exija um comportamento adequado.

Por conseguinte, o Santo Padre conclui pedindo a “todos os bispos, presbíteros e diáconos, aos formadores dos seminários, professores de faculdades teológicas e escolas de teologia, a todos os catequistas, que ajudem o povo de Deus a aproveitar o que é a fonte primária da espiritualidade cristã. E reitera o estipulado no “Traditionis custodes”, para que a Igreja eleve, na variedade das línguas, uma só e idêntica oração capaz de exprimir a sua unidade e esta oração é o Rito Romano resultante da reforma conciliar e estabelecido pelos santos pontífices Paulo VI e João Paulo II.

***

Enfim, o Papa vinca a necessidade de se conhecer como atua o Espírito Santo em cada celebração, pelo que a arte de celebrar deve estar em sintonia com a ação do Espírito, pois, só assim se livrará dos subjetivismos, qual resultado da prevalência de sensibilidades individuais e de culturalismos, que são incorporações sem critério de elementos culturais, que nada têm a ver com um correto processo de inculturação. Por outro lado, sublinha a necessidade de se conhecer a dinâmica a peculiaridade e a eficácia da linguagem simbólica.

Quisera o Pontífice que esta carta nos ajudasse a reavivar o assombro pela beleza da verdade da celebração cristã, recordando a premência da autêntica formação litúrgica e reconhecendo a importância da arte da celebração que esteja ao serviço da verdade do mistério pascal e da participação de todos os batizados, cada um segundo a especificidade da sua vocação.

Depois, enfatiza toda esta riqueza que está nas nossas igrejas, nas nossas festas cristãs, na centralidade do domingo, na força dos sacramentos. E observa que a vida cristã é um contínuo caminho de crescimento: estamos chamados a deixarmo-nos formar com alegria e em comunhão.

Por isso, o Papa insta a que redescubramos o sentido do ano litúrgico e do dia do Senhor. Na verdade, o ano litúrgico é a possibilidade de crescermos no conhecimento do mistério de Cristo, submergindo a nossa vida no mistério da sua Páscoa, enquanto esperamos a sua volta. A nossa vida não é uma sucessão casual e caótica de acontecimentos, mas um caminho que, de Páscoa em Páscoa, nos conforma com o Salvador Jesus Cristo, enquanto esperamos a sua vinda gloriosa. E, no decurso do tempo, renovado pela Páscoa, de oito em oito dias, a Igreja celebra, ao domingo, o acontecimento da salvação. O domingo, mais do que um preceito, é um presente de Deus ao seu Povo. E a celebração dominical oferece à comunidade cristã a possibilidade de se formar por meio da Eucaristia.

Assim, de domingo a domingo, a Palavra do Ressuscitado ilumina a nossa existência querendo realizar em nós aquilo para que foi enviada. A comunhão no Corpo e Sangue de Cristo faz da nossa vida um sacrifício agradável ao Pai, na comunhão fraterna que se transforma em ações de partilha, acolhimento e serviço. E a força do Pão repartido sustenta-nos no anúncio do Evangelho em que se manifesta a autenticidade da nossa celebração.

2022.06.30 – Louro de Carvalho

quarta-feira, 29 de junho de 2022

Ministra da Saúde assume responsabilidade pelo que falha no SNS

 

 

Na audição perante os deputados da Comissão de Saúde, Marta Temido assumiu, neste dia 29 de junho, a responsabilidade política por “tudo o que falha” no Serviço Nacional de Saúde (SNS), do que pediu desculpa, e anunciou que o novo estatuto do SNS seria aprovado na semana de 4 a 8 de julho, em Conselho de Ministros, esperando resolver algumas dificuldades com a contratação direta de médicos e lembrando que deve deixar melhores condições do que as que encontrou.

A ministra da Saúde respondeu a críticas dos deputados sobre a gestão do SNS, a saída de especialistas, o encerramento de serviços de urgência de obstetrícia e ginecologia, a falta de médicos de famílias e a falta de recursos humanos nos hospitais. Especificou, a título de exemplo, aspetos da sua responsabilidade: telefonemas por fazer, casas de banho que não funcionam, ares condicionados inoperacionais, pessoas que estão à espera, contactos que ficam feitos, por vezes, com rudeza e ausência de falas. E, mais do que pedir desculpa, disse dever deixar a outros ministros da Saúde um melhor contexto e melhores condições, o que se faz com reformas, com medidas, com políticas, como disse acreditar que “a direção executiva do SNS não é um lugar a mais”.

Sustentou que essa direção executiva será um lugar difícil e pesado e “um lugar que permitirá que as respostas dos serviços funcionem mais integradamente e haja uma maior visão de conjunto”. Competir-lhe-á, sem prejuízo da autonomia das entidades, coordenar a resposta assistencial das unidades que integram o SNS, assegurar funcionamento em rede e proceder à sua avaliação.

Sobre a carência de recursos humanos, frisou o aumento do número de profissionais. Em 2015, no início da legislatura, o SNS tinha 119.000 profissionais, hoje tem cerca de 151.000. Lembrou a abertura de um concurso para a contratação de mais 1.639 médicos recém-especialistas.

Este número de vagas é superior ao número de recém-especialistas (1.020), porque há a perceção de que é preciso “atrair para o sistema mais profissionais de saúde do que apenas” os que acabaram a formação. E recordou que ficaram por preencher 50 vagas para acesso à especialidade, um problema complexo, cuja resposta é também complexa.

Marta Temido vincou o esforço feito em termos salariais: 2.779 euros é o vencimento que recebe um recém-especialista depois de colocado e 1.111 euros é o valor do incentivo que já estava atribuído e que tinha melhorado. E, quanto a médicos de Medicina Geral e Familiar, o Orçamento de Estado estabeleceu um adicional de 60%, o que corresponde a cerca de mais 1.600 euros.

Do Novo Estatuto do SNS disse ter soluções estratégicas, visão em termos de recursos humanos com a autonomia das contratações, com incentivos aos profissionais e com pactos de permanência, pois é “essencial continuar a aperfeiçoar a política de reforço dos recursos humanos da saúde”.

Frisando que “o SNS enfrenta problemas na organização da sua resposta”, sobretudo na retenção, organização do trabalho e motivação dos profissionais que se traduzem nas dificuldades de acesso com que os utentes se confrontam e que os últimos dias têm demonstrado, disse que a atribuição de equipas de saúde familiar aos residentes permanece “a primeira prioridade setorial”.

Revelou que, após a abertura, a 15 de junho, de 4.302 vagas para contratação de médicos de família e depois de o Governo ter assumido que dessas 67 eram carenciadas, auferindo mais 40% de vencimento, no dia 28, foi aprovado o despacho que identifica as 239 vagas em unidades de cuidados de saúde personalizados, cuja taxa de cobertura, inferior à média nacional, será compensada com mais 60% de remuneração no caso dos profissionais que aceitem nelas trabalhar.

Além disso, referiu que o programa do Governo, a Lei do Orçamento de Estado, o novo estatuto do SNS e o Programa de Recuperação e Resiliência (PRR) “são claros nos compromissos” assumidos para com estes profissionais de saúde.

Apontou o regime de plena dedicação, a valorização das carreiras de enfermagem, designadamente pela reposição dos pontos perdidos aquando da entrada em vigor da nova carreira e os investimentos na transição digital da saúde, no valor de 300 milhões euros.

Adiantou que o programa de trabalho que se retoma envolve um terceiro eixo central: o Programa de Gestão Estratégica dos Recursos Humanos do SNS, com três eixos: consolidar o sistema das profissões de saúde, promover o desenvolvimento de competências dos profissionais do SNS e melhorar os ambientes de trabalho.

Anunciando aumentos de resposta em todas as linhas, designadamente nos rastreios oncológicos, frisou que o rastreio ao cancro da mama é realidade em todos agrupamentos de centros de saúde (ACES) da região de Lisboa e Vale do Tejo – necessidade estrutural que foi “ultrapassada”.

A governante reconheceu que os concursos para médicos especialistas não respondem a todas as necessidades, pelo que o Governo espera responder a algumas através da contratação direta. E apresentou, como uma das apostas do governo, a dedicação plena dos médicos ao SNS.

Questionada sobre o facto de os hospitais não terem autonomia para preencher vagas de quadro vazias e de mais de metade dos médicos de saúde pública estarem no setor privado, Marta Temido respondeu que, mesmo que o Governo conseguisse captar todos os especialistas formados no país, o SNS continuaria com dificuldades de resposta em algumas áreas, até porque muitos profissionais, mercê da idade, não são obrigados a fazer urgências. E garantiu o empenho do governo na dedicação plena, de modo a cativar os profissionais para o SNS, apontando para maior autonomia dos hospitais e ACES, designadamente para contratação.

Em resposta às críticas dos deputados sobre consultas de Medicina Geral e Familiar, que exibiram 1,4 milhões de portugueses sem médico de família, Marta Temido alegou que “os utentes que não têm médico de família têm acesso a consultas de medicina geral e familiar no SNS” e especificou que, em 2021, as consultas para utentes sem médico de família no SNS foram 4 milhões e, até maio de 2022, foram 1.700.000. Destas, 1 milhão foi na região de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo.

Segundo os dados avançados pela governante, foram realizadas mais 1,2 milhões de consultas médicas, mais 193 mil consultas de enfermagem e mais 78 mil consultas de outros técnicos de saúde, nos cuidados de saúde primários, bem como mais 112 mil consultas e 23 mil cirurgias nos hospitais. E, no âmbito do regime excecional de incentivos à recuperação da atividade assistencial, no verão de 2020, ano do início da pandemia, foram realizadas 142 mil consultas e 70 mil cirurgias em produção adicional no SNS, com incentivos de 74 milhões de euros aos seus profissionais.

A ministra destacou o aumento de cobertura dos rastreios oncológicos, com o número de mulheres rastreadas ao cancro da mama a crescer 13% e 16% no rastreio do cancro do colo do útero, bem como o número de rastreios de cancros do cólon e do reto, que aumentou 4%, salientando o crescimento de 32% do número de operados em cirurgia oncológica em abril de 2002 face a 2019.

Questionada sobre o processo de descentralização de competências para os municípios na saúde, adiantou que, até ao dia 27, já 49 municípios já tinham os autos de transferência homologados.

Quanto à mortalidade materna, desde 2014 a 2019, a ministra observou que os números devem ser analisados “numa lógica de séries temporais de cinco a 10 anos” e que a comissão de saúde materna fará a avaliação até ao fim do ano, embora todo o óbito seja fator de consternação e solidariedade.

Sobre os problemas nas urgências de ginecologia e obstetrícia, Marta Temido reconheceu: “Sabendo-se que havia momentos deste verão em que era difícil garantir o funcionamento de todos os serviços, poder-se-ia ter tomado logo a iniciativa de garantir o funcionamento articulado”, o que passa a acontecer com a criação da predita direção executiva no SNS. E lembrou que a revisão da rede de referenciação materna e infantil fora terminada em 2017 e que os trabalhos envolviam duas vertentes: área materna e área infantil. Considerou que “a revisão das redes referenciação hospitalar é um dos pontos da estratégia de reforma da área hospitalar e faz parte dos compromissos assumidos no contexto do PRR”. E vincou que o objetivo é determinar o melhor funcionamento em rede e os pontos que, em condições de segurança, é preciso implementar, pois é necessário garantir “que equipamentos e infraestruturas estão disponíveis nesses pontos de rede”.

Interpelada sobre se pretende acabar com as Administrações Regionais de Saúde (ARS), Temido lembrou a descentralização de competências na área da saúde para os municípios, cujo calendário assumiu que tinha sido posto em causa pela resposta à pandemia. E, vincando que “é um processo cuja estabilização é essencial antes de equacionar outros passos”, disse que, em contexto de reforma, fará sentido reservar as ARS para uma função que não a prestação de cuidados, dando mais autonomia aos ACES, mas progressivamente, para evitar interrupções na prestação cuidados.

***

O cancro do SNS é não haver profissionais de saúde suficientes em dedicação exclusiva, a par dos “exclusivos” que prestam um mínimo de serviço no SNS e vão a correr para o setor privado. Aliás, quem não está em exclusividade deve cumprir o horário estabelecido e desempenhar todas as suas funções compatíveis com esse horário, sem sugerir ou insinuar o recurso ao setor privado. O recurso a prestadores de serviços, que devem pautar-se pelo sentido do serviço à vida e à saúde, deve ser excecional e não apoucar, em estatuto remuneratório, os profissionais em exclusividade.

Ter profissionais de saúde no SNS implica oferecer-lhes uma carreira apetecível, nomeadamente em termos remuneratórios, de progressão e promoção e de proteção social, dotar os serviços de equipamentos necessários e adequados e promover uma gestão responsável e que funcione em rede. Implica também, mesmo que ao arrepio das ordens profissionais, promover a formação de especialistas suficientes em cada área, tendo em conta as necessidades de médio e longo prazos. E, em situações excecionais, passará pela mobilização do setor privado para a prestação de um serviço público (de que é complementar), a nível de pessoal e de equipamentos, justamente remunerada, mas sem especulação ou esquemas de driblagem do setor público.

Por fim, refiro que não me escandalizaria, se o Estado, uma vez que a formação médica é quase exclusivamente da responsabilidade de instituições do ensino superior públicas, determinasse um período razoável de tempo em que os diplomados fossem obrigados a trabalhar no SNS. Salus Reipublicae lex suprema esto. Por isso, Estado que se preze terá um SNS decente e robusto. 

2022.06.29 – Louro de Carvalho

Espanha quer cimeira da Nato a projetar a imagem do país

 

É por isso que os espanhóis suportam estoicamente os inconvenientes de terem Madrid blindada pela maior operação de segurança de sempre para albergar esta reunião plenária da Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO), de 28 a 30 de junho, coincidente com as celebrações do 40.º aniversário da adesão de Espanha.

Cerca de 12 mil agentes de vários corpos de segurança se encarregaram de proteger mais de 2000 participantes na cimeira (de 40 delegações encabeçadas por chefes de Estado ou de Governo), a que se juntaram 2000 jornalistas de todo o mundo e um milhar de funcionários de instituições e organismos continentais. Trajetos importantes para a circulação madrilena viram troços cortados e houve a proibição de estacionar num raio de 300 metros em torno dos hotéis que alojam os participantes e os colaboradores. E as autoridades recomendaram o teletrabalho, o transporte público (gratuito durante a cimeira) e a redução das deslocações ao estritamente necessário.

A “Operação Eirene”, do nome da deusa grega da paz, foi reforçada por unidades do Exército, com a mobilização de veículos blindados para pontos estratégicos. A força aérea participou, apoiada por drones e aviões-radar Awac da NATO. Nas fronteiras terrestres com Portugal e com a França, houve triagem para evitar que militantes em organizações antissistema chegassem a Madrid e causassem tumultos. O Centro Nacional de Criptologia (CCN), do serviço de informações espanhol CNI, elaborou minucioso plano para evitar ciberataques.

Apesar dos inconvenientes, a população está, maioritariamente (83% dos cidadãos), a favor do envolvimento do país nesta organização. A popularidade da Aliança tem crescido desde a consulta de fevereiro deste ano, em que 80% os inquiridos exprimiam apoio à NATO.

A cimeira é relevante pela situação resultante da invasão da Ucrânia pela Rússia e pelo novo conceito estratégico a adotar como guia de atuação para os próximos dez anos, em substituição do que saiu da cimeira de Lisboa em 2010.

Estava previsto que se relevasse o desempenho do secretário-geral da Aliança, Jens Stoltenberg, a quem deveria suceder uma mulher, pela primeira vez, mas a sucessão foi adiada um ano.

O primeiro ato relevante ocorreu a 28 de junho e foi a reunião entre o Presidente da Turquia, o Presidente da Finlândia e a primeira-ministra da Suécia, para ultrapassar o veto da Turquia à entrada dos dois países escandinavos para a NATO (já retirado). Erdogan vincava o apoio que dão ao Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), que Ancara e a UE têm por organização terrorista.

O evento propicia a projeção da imagem de um país capaz de organizar iniciativas deste tipo e o reforço da agenda dos seus principais dirigentes. O primeiro-ministro, de quem se diz preparar uma candidatura para chefiar algum organismo internacional que abandonar a política nacional, cumpriu o desejo de se reunir com o Presidente dos Estados Unidos, que chegou ao início da tarde do primeiro dia e foi recebido, na base aérea de Torrejón de Ardoz, pelo rei Filipe VI, que o conhece do tempo em que foi vice-presidente de Barack Obama. Biden, o único dirigente que traz o seu aparato de segurança, com mais de 45 veículos (até “A Besta”, limusina pessoal blindada) e um amplo contingente de membros dos serviços secretos, visitou o palácio da Moncloa, sede do governo, para conversar com Pedro Sánchez, que aproveitou o ensejo para o sensibilizar para as novas ameaças à Europa da parte do flanco sul do continente.

Na noite do dia 28, os chefes de Estado e de Governo participaram num jantar de gala no Palácio Real, oferecido pelos reis Filipe e Letizia. E, no dia 29, houve outro jantar euroatlântico, a convite de Sánchez, com países da UE não pertencentes à NATO (Suécia, Finlândia, Irlanda, Áustria, Malta e Chipre), no claustro dos Jerónimos do Museu do Prado. Nestas refeições estiveram representantes de países convidados: Japão, Austrália, Nova Zelândia e Coreia do Sul.

O Presidente da Ucrânia participou nos debates por videoconferência.

A rainha Letizia acompanhou os cônjuges dos chefes de Estado e de Governo, com um programa que incluiu a deslocação ao Real Sitio da Granja de Santo Ildefonso, em Segóvia, com visitas ao palácio, jardins e fontes, e à Real Fábrica de Cristais, o almoço no Museu Reina Sofía, perto do quadro Gernika, de Picasso, e a visita ao Teatro Real, onde os viajantes provaram azeites espanhóis e presenciaram um ensaio da ópera Nabucco, de Giuseppe Verdi.

Segundo funcionários do governo, os custos do acolhimento superarão os 50 milhões de euros, sendo verba mais pesada o aluguer de dois pavilhões de 54 mil metros quadrados na feira de Madrid, IFEMA, onde decorreu a reunião. Mas os retornos serão evidentes, a médio e longo prazo, em aspetos intangíveis: a imagem de Madrid, a aceleração de negócios e o turismo.

***

Espanha e Portugal pretendiam que a cimeira incorporasse nos debates formais a segurança do flanco sul da Aliança. Ambos os países estão influenciados pelos ventos de crise que chegam do norte de África, no Sahel, a partir de países como o Mali, o Níger ou a República Centro Africana, onde a instabilidade política, o terrorismo jihadista, a pressão da imigração ilegal e a fome constituem sérias ameaças à segurança do sul europeu. A NATO, focada em proteger a fronteira leste com a Rússia, não parece disposta a dedicar muito tempo a este debate. Entretanto, o secretário-geral da Aliança garantiu “assegurar uma perspetiva de 360 graus”, na tentativa de neutralizar comentários acerca do escasso interesse em relação a esta zona.

A ministra espanhola da Defesa, muito sensível a este ponto da geografia mediterrânea, defendeu, em entrevista ao “El Mundo”, que não se pode “esquecer a situação que se está a viver em África”, não só pela fome, mas sobretudo “pela expansão russa na zona e pelo crescente desenvolvimento que estão a experimentar o jihadismo, o terrorismo, o integrismo e a imigração ilegal”.

Do lado português, esta perspetiva é assumida no discurso oficial do governo, quer pelas ligações históricas a África, quer pelo facto de o país contribuir com cerca de 180 militares para a MINUSCA, a missão de paz da ONU na República Centro Africana. O primeiro-ministro utiliza recorrentemente a expressão de Stoltenberg, para defender a “necessidade de a NATO manter uma verdadeira perspetiva de 360 graus, fazendo frente aos desafios a leste, mas sem descurar a ação e presença a sul, onde se erguem algumas das mais sérias ameaças à segurança da Europa, como a instabilidade política, Estados falhados, emergências humanitárias e terrorismo”.

Os Estados Unidos (EUA) não partilham a preocupação com o mesmo grau. O major-general Arnaut Moreira, especialista em assuntos estratégicos, observa que a questão do flanco sul só não foi mais secundarizada por a cimeira ser realizada em Espanha, para não ferir a amabilidade do anfitrião. Para o general, a prioridade ao Sul contraria a orientação estratégica virada para dois níveis: a ameaça identificada com a Federação Russa e o desafio a médio/longo prazo, que é China. Ora, o grau da ameaça a sul não é igual à ameaça a leste. A ameaça a sul não é propriamente militar, mas, predominantemente, de natureza, social, económica e demográfica.

A posição americana explica-se pelo facto de um dos países implicados nessa área de potenciais riscos ser Marrocos, o mais firme aliado de Washington na zona. Com tal parceiro no norte de África e peças as relações que mantém com o Reino Unido, com larga presença militar em Gibraltar, os EUA têm assegurado o controlo da entrada no Mediterrâneo e no Próximo Oriente.

Neste aspeto, Sánchez anuiu ao pedido de Biden no sentido da ampliação da presença naval norte-americana na base de Rota (Cádis), com a junção de dois novos contratorpedeiros da classe Arleigh Burke aos quatro que já têm base permanente nessa instalação militar, aumentando o contingente de tropas de 1200 para 1800 soldados. Tal acordo ficou plasmado numa declaração conjunta e numa atualização do Convénio de Cooperação Defensiva de 1988.

Estas concessões e a mudança de política de Espanha a respeito do Sahara, que se alinha com as posições de Rabat, acalentadas a partir de Washington, poderiam funcionar como lubrificante para que os EUA não pusessem objeções às aspirações espanholas e portuguesas sobre o Novo Conceito Estratégico da NATO, o roteiro pelo qual se pautarão as atuações da Aliança no futuro próximo e as respostas aos desafios colocados por temas como a expansão da China, as alterações climáticas e o ciberterrorismo.

Espanha desejava que o novo Conceito Estratégico contemplasse expressamente a defesa da soberania e da integridade territorial dos países membros. Uma prova da sua preocupação com o flanco sul é a recente decisão de comprar, por 2050 milhões de euros, 20 caças Eurofighter destinados à base aérea de Gando, nas Canárias, completando assim as frotas destes aparelhos destacadas em Los Llanos (Albacete) e Morón de la Frontera (Sevilha). O negócio ficou fechado discretamente, há poucas semanas, em Berlim, entre representantes do governo espanhol e o fabricante Airbus Defence and Space.

Para Espanha e para os seus parceiros europeus, as duas cidades espanholas (Ceuta e Melilha) no norte de África fazem parte inamovível da integridade territorial espanhola, tal como está contemplado, por exemplo, na Iniciativa de Defesa e Segurança da União Europeia (UE).

Inquirido a esse respeito, Stoltenberg evitou comprometer-se e assegurou que “qualquer decisão que afete territórios como Ceuta e Melilha deveria ser precedida por consultas políticas entre os membros da Aliança, e a decisão final estaria nas mãos do Conselho Atlântico”.

O que parece muito claro e com reflexo literal nos documentos finais da cimeira é a consideração da Rússia, que passou de “parceiro” na declaração de Lisboa, em 2010 para “a ameaça mais significativa” da Aliança Atlântica, cuja resposta a esta nova situação é a multiplicação dos seus contingentes militares em países fronteiriços com a Rússia, transformando os batalhões de presença avançada permanente nos países bálticos (Estónia, Letónia e Lituânia) e na Polónia ou na Roménia em brigadas, duplicando os contingentes atuais integrados entre 1000 e 1600 soldados. A NATO Response Force, a força de reação rápida da Aliança, orientada para a ala leste europeia, incrementará o seu contingente de 40 mil para 300 mil efetivos, capazes de serem destacados com a máxima rapidez, com a correspondente dotação de armamento e veículos.

E o major-general Arnaut Moreira, considerando este como “um problema genérico na Europa”, pergunta donde virão as 200 e tal mil tropas que é preciso constituir, uma força de reação rápida, que “tem de estar pronta e disponível para embarcar em 30 dias e algumas delas em cinco dias”. É um “esforço imenso” para Forças Armadas, que “não têm o número de efetivos previsto nos seus planeamentos, como não têm serviço militar obrigatório”.

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Face a estes dados, surgem alguns questionamentos que se julgam pertinentes.

Como se tolera que Biden chegue a um país europeu com o seu painel humano e logístico de segurança, desconfiando da capacidade das autoridades nacionais ou fazendo gala da sua grandeza e supremacia? Seria bonito se todos os altos visitantes fizessem o mesmo…

Está visto que a NATO, mais do que defender os países-membros, está interessada na sua expansão, no apoio a países não membros e a combater um país que se perfila como inimigo. A promoção e a manutenção da paz global não cabem à NATO, mas à ONU (Organização das Nações Unidas). Qual é mesmo o papel da Aliança Atlântica? Será chegar ao Pacífico e ao Índico?

2022.06.29 – Louro de Carvalho

terça-feira, 28 de junho de 2022

Não me acompanhem “a par e passo”, que eu não quero

 

Muita gente, mesmo cultural e politicamente cotada, usa, a cada passo, a expressão “a par e passo”, que não faz sentido, se olharmos, atentamente, para a expressão.

Acompanhar uma pessoa a par dela é possível e é sinal de igualdade existencial e de estatuto. E acompanhá-la a passo faz sentido, se ela andar a pé, ou seja, a caminhar, a marchar. Querer dizer tudo de uma vez ou é confusão ou é, por benevolência, inútil redundância.

A susodita expressão é tradução atabalhoada da expressão latina “pari passu” (no ablativo do singular masculino), que se deve traduzir por “a passo igual” (do nome latino “passus, us”, “passo”; e do adjetivo uniforme de segunda classe “par, paris”, “igual”), isto é ao mesmo ritmo, com a mesma velocidade. Assim, quem acompanha alguém pari passu vai ao seu lado, ombro a ombro, não vai mais adiante nem mais atrás, não se antecipa, não se retarda, não se sobrepõe, não ofusca. E o que se diz do acompanhamento a uma pessoa, diz-se, por extensão, de um animal de um acontecimento ou de um processo.

O mencionado adjetivo “par, paris” significa: igual em força ou mérito, igual em idade, rival, semelhante, conveniente, justo, capaz de, que faz parelha ou par com, que resiste. E, empregue substantivamente, ou seja, como nome (masculino e feminino), significa: companheiro ou companheira, macho ou fêmea num casal, companheiro ou companheira da mesma categoria.

Por seu turno, o nome “passus, us” (masculino, da 4.ª declinação) significa, neste contexto, afastamento das pernas, espaço compreendido entre as pernas por causa do seu afastamento, passo, medida de comprimento (equivalente a cinco pés romanos), pegada. Formou-se a partir do verbo “pando, pandis, pandere, pandi, passum ou pansum”, que significa estender, desdobrar, desenrolar, deixar ver, revelar. Daqui vem a nossa palavra “expansão” e as cognatas lexicais. E o verbo “pandere” tem um supino “passum” ou “pansum” de que se formou o particípio passado e o adjetivo verbal “passus, a, um” (estendido, desdobrado, espalhado, solto, seco ao sol).

O “passo” de que estamos a falar é diferente do “passo” ou dos “passos” de Cristo, desde a agonia orante no Horto das Oliveiras até ao transe da cruz, no Calvário ou Gólgota. O Senhor do Passos não é só o que anda, mas é sobretudo o que sofre, embora esse sofrimento implique passos de marcha e deixe pegada. Este nome latino “passus, us” (homónimo do anterior) forma-se do verbo depoente “patior, pateris, pati, passus sum”, que significa: sofrer, suportar, aturar, tolerar, permitir, consentir, admitir, ser passivo.

O particípio passado e o adjetivo verbal “passus, a, um” significam: que sofreu, que tolerou, que permitiu. E o nome “passus, us” quer dizer sofrimento. Daqui vêm as palavras “paixão” (passio, onis) e “paciência” (no Latim, patientia, ae) e as cognatas, como “apaixonar-se”, “paixoneta”, “passional”, “paciente”, etc.       

E, passando da homonímia à homofonia, havemos de convir em que o “passo”, de quem anda ou de quem mede, e o “passo”, de quem sofre, são bem diferentes, exceto na pronúncia, do “paço”, edifício onde habita a corte imperial ou a corte régia, ou o alto dignitário do clero ou da nobreza. Este forma-se do nome latino “palatium, ii”, que era o monte Palatino (a mais alta das colinas de Roma) e passou a ser a habitação dos Césares em Roma e, por extensão, palácio imperial, que ficava no referido monte, ou, simplesmente, palácio.

Deste nome derivou o adjetivo de primeira classe “palatinus, a, um”, que significa “do monte Palatino” ou do “palácio dos Césares”, bem como o nome neutro “palatinum, i”, a significar “oficial do palácio imperial”.

Na Língua Portuguesa temos as palavras alótropas ou divergentes “palácio” e “paço”, sendo a primeira formada a partir de “palatium” por via erudita (diretamente do étimo, só com a apócope do “m” final e com a sujeição à pronúncia da Língua Portuguesa) e a segunda, por via popular (tendo o étimo passado par várias transformações fonéticas, nomeadamente a síncope do “l”, a crase dos “aa” e a palatalização da sílaba “ti”). Assim, apesar de o étimo ser o mesmo (“palatium”), há diferença de significado: as grandes mansões imperiais, régias ou republicanas denominam-se palácios, ao passo que as demais casas apalaçadas se denominam de paços (paço ducal, paço condal, paço episcopal e a pluriária paços do concelho). Às vezes, empregam-se indistintamente.

Resta mencionar as palavras “paçô” (presente na toponímia) e “palacete”. A primeira formou-se do nome latino “palatiolum, ii” (diminutivo de “palatium”), a significar “pequeno palácio”, enquanto a segunda se formou do nome “palácio”. Podia ser “palaciozinho” ou “palacinho”, “palacito”, “palacico” ou “palaceco”, mas estas não estão dicionarizadas.

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Por tudo isto, sugiro que andem comigo “pari passu”, pois, assim me acompanharão nas passadas em jeito de igualdade ou paridade e de solidariedade para comigo, se tiver passos sofridos. Até conviveriam comigo, se eu vivesse num palácio ou paço e até num palacete. E não se esqueçam de acompanhar “pari passu” os acontecimentos e os processos em que estão interessados por dever ou benefício para que nada escape ao devido controlo e se colham as lições de vida que deles podemos auferir. “Pari passu”, que é certo, e não “a par e passo”, que é uma enormidade desnecessária.

A bem da Língua Portuguesa!

2022.06.28 – Louro de Carvalho

Segunda Conferência dos Oceanos das Nações Unidas

 

Adiada desde 2020 por causa da pandemia de covid-19, a Segunda Conferência dos Oceanos das Nações Unidas (UNOC), em curso em Lisboa, de 27 de junho a 1 de julho deste ano de 2022, tem como tema geral “reforçar a ação dos oceanos com base na ciência e na inovação para a implementação do objetivo de desenvolvimento sustentável 14 (ODS14): avaliação, parcerias e soluções”. E surge num tempo em que o mundo enceta esforços para mobilizar, criar e promover soluções a fim de alcançar os 17 ODS antes de 2030.

Como parte das primeiras fases da Década de Ação para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, recentemente lançada pelo secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, a Conferência apresenta uma série de soluções inovadoras de base científica, destinadas a lançar um novo capítulo na ação global para os oceanos, cuja gestão sustentável requer a aplicação de tecnologia verde e a utilização inovadora dos recursos marinhos. É necessária uma abordagem às ameaças que comprometem a saúde, a ecologia, a economia e a governação dos oceanos: a acidificação; o lixo marinho e a poluição; a pesca ilegal, não declarada e não regulamentada; e a perda de habitats e de biodiversidade.

O objetivo do evento, organizado pelos governos de Portugal e do Quénia, é, pois, “mobilizar o apoio global para  implementar, criar, conservar e utilizar, de uma forma sustentável, os mares, oceanos e os recursos marinhos”, visto que, atualmente, as ações humanas vêm tendo impacto negativo nos mares e oceanos, pelo que a sua sustentabilidade deverá ser uma preocupação de todos, abordada por ações ao nível global, nacional, regional e local. A proteção e a conservação dos mares e oceanos estão conexas com a promoção e a proteção o bem-estar da Humanidade.

A participação das várias entidades e organizações da nossa sociedade civil é uma oportunidade de contribuir para a proteção e a conservação de um dos recursos mais importantes para o país.

Sobressaem, nos preparativos desta iniciativa da ONU e no seu desenvolvimento, Liu Zhenmin, subsecretário-geral das Nações Unidas para os Assuntos Económicos e Sociais, como secretário-geral da Conferência, e Miguel de Serpa Soares, subsecretário-geral para os Assuntos Jurídicos, como conselheiro especial dos Presidentes da Conferência dos Oceanos sobre questões jurídicas e relacionadas com os oceanos, bem como o embaixador Peter Thomson, das ilhas Fiji, como enviado especial do secretário-geral da ONU para os Oceanos, para galvanizar esforços conjuntos, com vista a dar seguimento aos resultados da Conferência dos Oceanos das Nações Unidas de 2017 e de manter a dinâmica de conservação e uso sustentável dos oceanos, mares e recursos marinhos para o desenvolvimento sustentável.

O ODS 14, adotado em 2015 como peça chave da Agenda para o Desenvolvimento Sustentável 2030, integrado no conjunto dos 17 objetivos transformadores, marca a necessidade de conservar e utilizar de forma sustentável os oceanos, mares e recursos marinhos do planeta. E o progresso deste objetivo é determinado por objetivos específicos, conexos com os problemas dos oceanos, onde se inclui a redução da poluição marinha, a proteção dos ecossistemas marinhos e costeiros, a minimização da acidificação, o fim da pesca ilegal e da sobrepesca, o aumento do investimento no conhecimento científico e na tecnologia marinha e o respeito pelas leis internacionais que exigem a utilização segura e sustentável dos oceanos e dos seus recursos.

A este respeito, são de reter as afirmações do secretário-geral da ONU de que, se nada se fizer em contrário, em 2050, o peso oceânico dos plásticos será maior que o peso dos peixes e que é a hora de se tocarem os sinos a rebate pelos oceanos, esconjurando o “egoísmo” dos que pensam que as águas internacionais são suas, quando elas “são nossas, de todos os países do mundo”.

E é premente o múltiplo desafio que lançou: a que todos invistam mais de forma sustentável (“mais financiamento de longo prazo”), de modo que se possam produzir “seis vezes mais alimentos no mar e 40 vezes mais energia”; a que se invista na proteção dos oceanos da poluição marinha e na proteção das populações que deles dependem dos efeitos das alterações climáticas; a que se assuma um compromisso para uma “cobertura plena” do sistema de alerta precoce para fenómenos atmosféricos extremos; e a que as opiniões públicas pressionem os decisores políticos a agirem.

Por último, são de destacar os compromissos de Portugal expressos pelo primeiro-ministro:  

“Dispondo da maior diversidade marinha de toda a Europa, Portugal compromete-se a assegurar que 100% do seu espaço marinho sob soberania ou jurisdição portuguesa seja avaliado em bom estado ambiental” e a “classificar 30% das áreas marinhas” até 2030, dando voz a uma medida já inscrita na Estratégia Nacional para o Mar 2021-2030. Por outro lado, o governo quer “transformar a pesca nacional num dos setores mais sustentáveis e de baixo impacto a nível mundial, mantendo 100% dos stocks dentro dos limites biológicos sustentáveis”. E, no plano económico, Costa apontou como objetivo atingir os 10 gigawatts de capacidade até 2030 em energias renováveis oceânicas e comprometeu-se com a duplicação do número de startups na área da economia azul e do número de projetos apoiados por fundos públicos – medidas concretas e vinculativas que o Presidente da República avalizou mais tarde, vincando, sobretudo, o compromisso de ter 30% das áreas marinhas nacionais classificadas até ao final da década.

O Presidente queniano – que, a par do Presidente português, presidiu à conferência, enquanto chefes de Estado dos países organizadores – apontou os oceanos como o “recurso mais subestimado da Terra”, apesar de cobrirem 70% da superfície do planeta e deles dependerem, de forma direta, três mil milhões de pessoas. E a prova disso é que este é o mais “subfinanciado” dos 17 ODS da Agenda 2030 da ONU. Basta de “palavras vazias”, diria mais tarde, “são necessárias ações”. E o mesmo disse, em tom mais dramático, o primeiro-ministro das Fiji, Josaya Wiliame Katonivere, falando em representação de 16 Estados das ilhas do Pacífico particularmente visados pelas alterações climáticas e a poluição oceânica: “Quinhentos anos depois de Fernão de Magalhães nos ter denominado de povos do Pacífico, vimos aqui dizer que estamos a lutar pela nossa sobrevivência”.

***

Haverá tempo para a divulgação das conclusões da Conferência. E, se elas forem prementes e mobilizadoras, vale a pena Lisboa ser, neste ano de 2022, a Capital dos Oceanos.

Porém, também os cidadãos portugueses têm de mudar comportamentos em relação ao mar. E os decisores políticos e económicos têm de reverter a aniquilação quase total da nossa Marinha de Guerra, da nossa Marinha Mercante e da nossa Marinha de Pescas, que ocorreu a par da famigerada Política Agrícola Comum (PAC), no âmbito da adesão, bastante acrítica, à concretização do desenvolvimento do projeto europeu, que paulatinamente se foi afastando dos cidadãos.

O mar é um recurso formidável, mas é preciso tratá-lo com racionalidade, corrigindo os atropelos ambientais a que tem estado sujeito, zelando por uma exploração equilibrada dos seus recursos e garantindo, pela vigilância e defesa, apoiadas me sólidos pressupostos científicos e em mobilizáveis equipamentos técnicos, a biodiversidade marinha.  

E, tendo nós uma extensa fronteira marítima, que o é também da União Europeia (UE), não se percebe como não dispomos, com apoio da NATO e da UE, de meios de vigilância e defesa desta grande fronteira. Discutem-se os poucos submarinos, cujo negócio deu raia, faltam corvetas e fragatas, criam-se entraves à aquisição de patrulheiros oceânicos, não se cuida da nossa extensa zona económica exclusiva (ZEE), não se investe na ciência do mar, nem se exploram as capacidades de produção marítima de energia elétrica, nem da dessalinização de águas marinhas para disponibilização de mais água potável.  

Espera-se que os compromissos de Portugal enunciados pelo primeiro-ministro sejam muito mais que o sino que tange e envolvam grandes reformas a partir do mar, de forma a afastar as razões do ceticismo de tantos.

2022.06.27 – Louro de Carvalho

domingo, 26 de junho de 2022

Nova lei dos metadados tece estrangulação dos direitos e liberdades

 

Têm estado em debate parlamentar a proposta de lei apresentada pelo Governo para regular o acesso a metadados referentes a comunicações eletrónicas para fins de investigação criminal, bem como os projetos de lei do Partido Social Democrata (PSD), do Partido Comunista Português (PCP) e do Chega – textos que, após debate na generalidade, baixaram à Primeira Comissão, a Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, sem votação, para o debate e respetiva aprovação na especialidade (artigo a artigo) e com apelo ao consenso.

Sabe-se que o Partido Socialista (PS) pretende que processo legislativo esteja concluído antes do fim da presente sessão legislativa, ou seja, até finais de julho, incluindo a eventual sujeição do decreto parlamentar ao juízo do Tribunal Constitucional (TC).

Ainda sem conhecer o teor do texto legislativo, muito longe da versão final, o Presidente da República, antecipou-se, há tempos, a comunicar que vai solicitar ao TC a fiscalização preventiva da nova lei que venha a ser aprovada pelo Parlamento. No encalço do Chefe de Estado, a Provedora de Justiça prometeu acompanhar o processo legislativo, alegando ser isso dever seu.  

Por seu turno, o procurador europeu José Guerra, sustentando que a lei que o TC chumbou era “bastante respeitadora dos direitos fundamentais” e acreditando que Procuradoria Europeia vai debruçar-se sobre caso, declarou, em entrevista à Lusa:

“Entendo que com grande probabilidade esta questão se colocará em processos pendentes na Procuradoria Europeia [EPPO, na sigla inglesa] e tendo o colégio por função tomar decisões estratégicas, não sobre casos concretos, mas sobre questões estratégicas que emerjam de casos concretos, é altamente provável que esta questão se venha a colocar”.

José Guerra sublinhou que a sua experiência na secção que tinha sob as suas competências os crimes informáticos, o levam a ter opinião sobre a polémica dos metadados em Portugal e implicações do acórdão do TC, mas defende que, enquanto for procurador europeu, não deve comentar “leis nacionais, a menos que elas sejam francamente violadoras ou ponham fortemente em causa a atividade da EPPO, o que não é o caso”.

Vincando tratar-se de questão transversal à União Europeia (UE), diz não comentar o acórdão do TC, mas compreender perfeitamente o debate como jurista. No entanto, é da opinião de que a legislação nacional transpunha a diretiva europeia sobre metadados “de forma bastante cautelosa, bastante respeitadora dos direitos fundamentais”. Tal diretiva foi posta em causa pelo Tribunal de Justiça da UE. A nossa lei manteve-se e, agora, o TC pô-la em causa. O Governo procurou uma solução, como é da sua competência. E, por ironia, Guerra diz não comentar legislações internas.

Por acórdão de 19 de abril, o TC declarou inconstitucionais normas da lei dos metadados que determinam que os fornecedores de serviços telefónicos e de internet devem conservar os dados relativos às comunicações dos clientes, entre os quais origem, destino, data e hora, tipo de equipamento e localização, durante um ano, para eventual utilização em investigação criminal.

A proposta de lei entregue pelo Governo no Parlamento estabelece, para fins de investigação criminal, entre outros dados, o acesso à “data da chamada, grupo data/hora associado, serviço e número chamado”. Prevê que as operadoras de telecomunicações forneçam os seguintes metadados: “número ou identificação, endereço e tipo de posto do assinante, códigos de utilizador, identidade internacional de assinante móvel (IMSI) e identidade internacional do equipamento móvel (IMEI), número de telefone, endereço de protocolo IP utilizado para estabelecimento da comunicação, porto de origem de comunicação, bem como os dados associados ao início e fim do acesso à Internet”. E atribui às autoridades judiciárias a competência para solicitar à empresa que oferece redes e ou serviços de comunicações eletrónicas os metadados, “quando haja razões que sustentem a indispensabilidade da informação para a descoberta da verdade ou a impossibilidade ou dificuldade de obter prova de outra forma”.

A proposta de lei suscitou objeções da Polícia Judiciária (PJ) e do Ministério Público (MP), que questionam os efeitos do acórdão do TC na investigação criminal. E a ex-Procuradora-Geral da República, Joana Marques Vidal, conhecido o texto em debate, admitiu a sua perplexidade por ser possível armazenar dados para efeitos comerciais, mas não para investigação criminal.

Entretanto, por solicitação da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, a Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) observa que algumas das soluções de regulação do acesso aos metadados referentes a comunicações eletrónicas para fins de investigação criminal diminuem as garantias dos direitos fundamentais dos cidadãos.

O parecer da CNPD, de 21 de junho, disponível no site do organismo, começa por saudar a opção de criar um regime legal que não prevê a conservação generalizada de dados pessoais relativos ao tráfego e à localização para a finalidade de investigação e repressão criminais. Contudo, adverte que a proposta de lei não alcança “o objetivo declarado de assegurar um ‘prudente equilíbrio’ entre, por um lado, o interesse público de segurança e paz públicas que justifica dotar os órgãos de polícia criminal e as autoridades judiciárias de meios de investigação e de prova adequados e, por outro lado, os direitos fundamentais de cada cidadão, maxime do respeito pela vida privada e familiar, à autodeterminação informativa e ao livre desenvolvimento da personalidade”. Identifica até “uma redução acentuada das garantias dos direitos fundamentais dos cidadãos, por comparação com o regime jurídico anterior de conservação e transmissão de dados pessoais relativos a comunicações eletrónicas”. Tal “diminuição da tutela dos direitos fundamentais causa a maior perplexidade, sobretudo considerando o contexto em que a proposta de lei surge: após a declaração do TC de inconstitucionalidade com força obrigatória geral do “regime legal de retenção de dados relativos às comunicações eletrónicas, que não oferecia garantias adequadas à proteção daqueles direitos fundamentais”.

Segundo a CNPD, cria-se “uma teia estranguladora dos direitos e liberdades”, sobretudo ao prever-se que as autoridades judiciárias possam aceder aos dados pessoais sem prévio despacho do juiz de instrução. As críticas estendem-se ao alargamento do “catálogo de crimes que justifica o acesso aos dados pessoais de tráfego e localização”, como “os crimes puníveis com pena de prisão superior, no seu máximo, a três anos, bem como certos tipos de criminalidade informática, em função da respetiva moldura penal e, ainda, todos os demais crimes cometidos por meio de sistema informático, contanto que puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a um ano. Também se critica o “alargamento dos dados pessoais objeto de conservação e de acesso”, que suscita dúvidas sobre a destruição de dados, sobretudo com a eliminação, “apenas se não servirem de meio de prova após o trânsito em julgado da decisão que puser termo ao processo”.

Para a CNPD, a proposta de lei “contraria a jurisprudência nacional e europeia, em particular do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 262/2022, bem como a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia e do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, representando uma restrição desproporcionada dos direitos fundamentais à reserva da vida privada, à autodeterminação informativa e ao livre desenvolvimento da personalidade”.

Já, em relação aos projetos de lei do PCP e do PSD, a CNPD, embora mantenha as objeções de fundo e as recomendações essenciais, mostra-se muito menos assertiva.  

O PSD anunciou a entrega de um texto de substituição ao seu projeto de lei, para “eliminar a conservação generalizada dos dados”. Falando em “aperfeiçoamento”, Paulo Mota Pinto, líder parlamentar do partido, anunciou que o novo texto restringirá o armazenamento de dados, prevendo a “conservação dos endereços de protocolo IP atribuídos à fonte de uma ligação” e a possibilidade de conservação (conservação seletiva) dos restantes, desde que o titular das comunicações não se oponha expressamente a tal conservação. Porém, tal direito de oposição não se aplicará a algumas categorias de pessoas definidas “com base em critérios objetivos”, como suspeitos ou arguidos de um crime, como não poderá ser exercido relativamente a determinados espaços, caso de aeroportos ou zonas turísticas.

E a ministra da Justiça, mostrou-se disponível para um “amplo consenso” nesta matéria, mas vincando que o texto do Governo é “um caminho seguro para a superação do impasse jurídico”, pois, ao invés dos restantes, o documento do Governo não prevê o armazenamento de dados para fins de investigação criminal, passando a admitir o recurso das autoridades judiciais às bases de dados que as operadoras mantêm para fins comerciais, nomeadamente a faturação aos clientes.

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Está difícil a consecução de lei dos metadados que não esbarre na torre do Presidente da República e na do TC, respaldados na jurisprudência europeia. Mal vai quando é a justiça a determinar o teor das leis. Contra isso, o Parlamento pode decidir de acordo com a segunda parte do n.º 2 do artigo 279.º da Constituição da República Portuguesa, confirmando um diploma chumbado pelo TC “por maioria de dois terços dos deputados presentes, desde que superior à maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções”. É solução politicamente audaz que nunca vi tomada.

2022.06.26 – Louro de Carvalho