Nas festas
juninas dos santos populares, sobretudo pelo São João, destaca-se a fogueira,
aliás como na noite de Natal e dias subsequentes. Este elemento comum de
celebração tem a ver com o parentesco de João Batista com Jesus de Nazaré, o
Cristo, como com o sentido do nascimento de cada um deles. Segundo o Evangelho
(Lc 1,36.56-57), João nasceu cerca de seis meses antes de Jesus. Ora, se a
Igreja, por falta de datação do nascimento do Mestre e Senhor, fixou a
celebração do Natal no solstício de inverno, a proximidade do Sol que vem do
Alto, fixou também a celebração do precursor no solstício de verão (seis meses
antes do Natal), quando o mesmo Sol, que há de aproximar-se da Terra, ainda
está distante, embora brilhe e aqueça.
Diz a Bíblia
que Maria visitou Isabel supostamente para a ajudar no tempo final da sua
gravidez em idade provecta e para partilhar com ela a realidade do seu mistério.
E, aquando do nascimento do menino de Isabel, Zacarias, o pai que ficara mudo
desde o anúncio angélico da conceção do menino, escreveu numa tabuinha: “João é
o seu nome”. Depois, soltou-se-lhe a língua e passou a falar normalmente.
Porém, uma tradição popular inverte os termos e preconiza que a fogueira é símbolo de um acordo
entre Maria e Isabel, pois, numa tarde, Isabel foi a casa de Nossa Senhora e contou-lhe
que, em breve, nasceria o seu filho, que se chamaria João Batista.
Além de
espantar o frio, típico do outono e inverno, a fogueira tem a ver com São João. Segundo a predita tradição, quando João nasceu, a mãe pediu que
acendessem uma fogueira nas
montanhas da Judeia, para avisar Maria do facto. Ora, a 24 de junho, a Igreja celebra
o nascimento do mártir João Batista, começando pela noite de 23 com uma vigília
litúrgica. Em paralelo, o povo nessa noite, em tempo de arraial de folganças,
fogueiras e comes e bebes, diverte-se nas ruas e praças. E algo semelhante
acontece na noite de 28 para 29 de Junho. Enquanto a liturgia faz a vigília da
Solenidade dos apóstolos e mártires Pedro e Paulo, o povo vai para o arraial de
São Pedro. E, em alguns lugares, todo o homem que tenha Pedro ligado ao seu
nome deve acende fogueiras nas
portas de sua casa. E, se alguém amarrar uma fita a pessoa de nome Pedro, este vê-se
na obrigação de dar um presente ou pagar uma bebida à pessoa que o amarrou.
A simbólica
da fogueira está conexa com a do fogo, significando a purificação e o
renascimento. No entanto, a fogueira possui diferentes simbologias, consoante o
seu uso; e o fogo é um símbolo divino universal, com um sentido purificador e
regenerador.
De origem
europeia, a fogueira joanina remete para a tradição da celebração do solstício
de verão, que se cristianizou com a festividade de São João, tornando-se, pouco
a pouco, na Idade Média, atributo da festa de São João e, depois, o traço comum
a todas as festas juninas. Segundo algumas crenças, Cristo e alguns santos
revivificam os corpos que passem por uma fogueira.
O costume das fogueiras de S. João (em noite quente ou fresca), que se
documenta entre nós e em muitos outros lugares desde tempos muito antigos, é
geral e comum a todo o país, mas apresenta formas diferentes conforme as
regiões. O sentido primitivo destas manifestações é duvidoso, mas, atualmente,
na maioria dos casos e que parecem mais significativos, apresentam-se com
virtudes profilácticas expressas e específicas, que, umas vezes, se exercem diretamente
pela utilização imediata do fogo, saltando por cima delas, ou por meio de
defumadouros ou práticas mágicas determinadas, outras indiretamente, sob a
forma de sortes divinatórias relacionadas com ele.
As fogueiras coletivas e grandes localizam-se num largo ou praça e junto
do poste festivo, se ele existe. Encontra-se tal prática no Norte, embora em
coexistência com as pequenas fogueiras individuais, nas ruas, em frente às
casas, e que as pessoas, sobretudo a gente nova, saltam. Em Trás-os-Montes,
encontram-se as fogueiras pequenas, de molde a poderem saltar-se, preparadas
com ervas aromáticas, de virtudes mágicas e profiláticas. Em Freixo de Espada à
Cinta, são de “arreção” e rosmaninho, e perfumam toda a vila. Em Quintanilha,
cada “bárrio” da aldeia tem a sua, pequena e feita com erva de “salpurros”. Novos
e velhos saltam-nas em cruz, para se defumarem contra a sarna e o sarampo,
bexigas e dores de cabeça, dizendo enquanto saltam: “Sama e sarampelo / Para o
Padre de Arcozelo”.
No Sul, acentua-se este caráter das fogueiras, que aparecem, além disso,
associadas a práticas divinatórias, conexas com a felicidade amorosa, o
casamento e a prosperidade. Na Estremadura, são de alecrim e rosmaninho e
fazem-se às portas das casas. Rapazes e raparigas saltam nas, e diz-se que,
quanto mais alto as raparigas pularem, mais certo é o casamento. Veem-se nos
bairros populares de Lisboa, embora apenas como folguedos da criançada. Em certos
lugares, fazem rodinhas em volta da fogueira. Porém, mais do que uma verdadeira
circum-ambulação ritual, tais danças têm o caráter de simples diversão. Na
Beira Alta, fazem-se fogueiras e queimam-se molhos de rosmaninho, que se
trouxeram dos campos e sobre os quais as raparigas saltam dizendo: “Serra em
mim / Maria da Glória, / que anda tudo / co’a fralda de fora”.
Por toda a Beira Baixa, fazem-se pequenas fogueiras em
frente às casas e nas esquinas das ruas, com alecrim, rosmaninho, mato, lenhas,
carqueja, canas de fava secas, pinhas, etc., na convicção de que o cheiro e o
fumo afugentam a bicharada nociva das pessoas, animais, casas e campos. A lenha
é trazida do monte com antecedência e fica guardada em casa até se dispor em
pilha no dia 23. No Sobral (Oleiros), arma-se um pinheiro, forrado com mato, no
largo da aldeia, e pega-se-lhe fogo à meia-noite, entre danças e descantes; e,
além disso, os moços levam troncos secos para o adro da igreja, para arderem
durante três noites seguidas. Em Castelo (Sertã), os festeiros rodeiam a
fogueira – onde queimam, além dos matos habituais, ceiras velhas dos lagares de
azeite – com paus compridos revestidos com carqueja, as tochas, a que vão deitando fogo pela noite adiante, entre
lançamento de foguetes e balões. Em Turquel, defumam-se os rebanhos nas
fogueiras para lhes revigorar a saúde. No Alentejo, fazem-se, às portas das
casas, fogueiras pequenas de plantas aromáticas, o mais das vezes alecrim e
rosmaninho, e também erva do monte. As pessoas saltam-nas para se defumarem,
pois este fumo é “um ar sadio”, e associam-nas a práticas divinatórias, de caráter
amoroso. Em Odivelas (Ferreira do Alentejo) vemo-las utilizadas para a previsão
do tempo, passando-se sobre elas uma tábua com doze mãos-cheias de sal, que
figuram os doze meses do ano. A quantidade de água que ressoa de cada monte indica
a chuva do mês correspondente. Em Eivas, saltam-nas contra a sarna. E no
Algarve, a fogueira localiza-se a um lado do recinto que se centra no mastro
festivo. Na ilha Terceira fazem-se fogueiras na rua, em volta das quais a gente
miúda brinca e sobre as quais se salta quando a labareda cresce.
Em certas regiões, encontram-se árvores festivas nas celebrações locais
do S. João, que diferem dos pinheiros e mastros acima descritos, por figurarem
como material específico da fogueira cerimonial da festa, sendo queimadas no final.
Na Beira Alta, em Mondim da Beira, a celebração dividia-se em duas partes: a
festa dos rapazes e a das raparigas. A dos rapazes consistia na fogueira que se
fazia num alto vizinho e a que se dava o nome de facho ou galheiro. Dias antes, os moços iam ao monte, com pífaros, tambores e
algazarras, buscar um pinheiro alto, ao qual cortavam os ramos, deixando só os
galhos, e que revestiam de fetos, bela-luz, rosmaninho, etc. Na noite de S.
João queimavam-no, no meio de bombas, bichas e “sacatrapos”, musicatas de
pastores, descantes, ao mesmo tempo que as pinhas que se haviam disposto à sua
volta. A festa das raparigas constava da fogueira que se fazia num largo ou
quinteiro da aldeia. Juntava-se o material do facho e lançava-se-lhe o fogo. As raparigas levantavam levemente
a saia e saltavam a fogueira, recitando em modo de oração versos licenciosos
alusivos à saúde. Em certos lugares, dependurava-se no pau central do galheiro, que atingia por vezes seis metros
de altura, uma caçarola de barro com um gato dentro: ao calor da fogueira a
caçarola estalava e o gato saltava espavorido. É de notar, a este respeito, que
os reis de França, por exemplo Luís XI, acendiam eles próprios a fogueira em
Paris, onde, com fins mágicos difusos, eram queimados gatos vivos e até, uma
vez, uma raposa. De modo similar, em Silgueiros (Viseu), a par de fogueiras de
rosmaninho, preparava-se o pinheiro, com maçanetas de panos nas pontas dos
ramos, ligadas entre si por fitas, tudo embebido em líquidos inflamáveis, e
pegava-se-lhes fogo na noite da festa. Na serra de Montemuro, a festa comporta
a queima final do tenchoeiro, um
tronco alto revestido até meio de mato seco, que se ergue numa elevação próxima
da povoação e à volta da qual se canta e dança. Na Póvoa de Atalaia (Beira Baixa),
para a noite de 23 de Junho fazem-se mastros festivos, que são paus envolvidos
em mato, que se queimam mais tarde, enquanto se dança e se extinguem as
fogueiras que ardem por toda a aldeia. No Minho, em Montedor, a norte de Viana
do Castelo, encontra-se um motivo semelhante ao galheiro beirão, que levava, como na Maia, o nome de Pinheiro do S. João: nos terceiro e
penúltimo domingos anteriores a 23 de Junho, os mordomos e mordomas do ano
faziam o peditório pelos diferentes lugares da freguesia, acompanhados por
música, e, de regresso, no local do arraial, organizava-se um bailarico. Na
véspera do último domingo, os rapazes iam ao monte com um carro de bois buscar
um pinheiro. Ao chegarem à povoação, preparavam o carro, montavam sobre ele um
estrado largo, a árvore era posta ao alto, decorada de verduras e rodeada de
balaústres. No dia seguinte, o carro, puxado por bois com cangas de luxo
ornamentadas com flores, transportava o pinheiro até ao terreiro, com as
mordomas no estrado, e acompanhado pelos mordomos, a pé, e pela música. Aí era
apeado e fixo no solo, marcando o sítio do bailarico; juntava-se-lhe pruma (caruma seca do pinheiro), disposta
em cordões, e, na noite de 23, pegava-se-lhe fogo, enquanto à sua volta se
dançava e se brincava.
Em Portugal, há, pois, os dois tipos fundamentais de fogueira de S. João:
a fogueira grande e coletiva; e a fogueira pequena, socialmente mais restrita (Às
vezes, coexistem os dois tipos numa região. As virtudes profiláticas do fogo exercem-se
pelo ato de saltar as fogueiras pequenas e pelos defumadouros, visando o
casamento, a saúde e a felicidade. O saltar da fogueira tem um sentido
genésico, que parece estar aqui presente, pois as fogueiras visam o casamento
e, mais claramente, por exemplo, na Beira, polarizam alusões licenciosas.
Conexo com as celebrações do fogo (elemento de luz e som das festas
públicas, para animação do povo e saída da rotina), temos o acervo das
iluminações, as luminárias caraterísticas e os fogos-de-artifício, que vão desde
as peças armadas de fogo solto e de fogo preso – em que se esmeram os
pirotécnicos e que avultam nas celebrações públicas, girândolas e outras formas
– até aos pirilampos chineses, “diabos em caixa”, fósforos de luz colorida que
as crianças queimam das janelas à rua, foguetes, petardos, morteiros, bombas e os
aeróstatos de papel (os balões do S. João), próprios das festas urbanas,
mas que também aparecem nas de algumas localidades rurais.
Enfim, festa, folia e entretenimento para animação do povo, que até se
esquece do Santo!
2022.06.25 – Louro de
Carvalho
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