sábado, 25 de junho de 2022

As fogueiras e o fogo do São João no calor fresco do estio

 

Nas festas juninas dos santos populares, sobretudo pelo São João, destaca-se a fogueira, aliás como na noite de Natal e dias subsequentes. Este elemento comum de celebração tem a ver com o parentesco de João Batista com Jesus de Nazaré, o Cristo, como com o sentido do nascimento de cada um deles. Segundo o Evangelho (Lc 1,36.56-57), João nasceu cerca de seis meses antes de Jesus. Ora, se a Igreja, por falta de datação do nascimento do Mestre e Senhor, fixou a celebração do Natal no solstício de inverno, a proximidade do Sol que vem do Alto, fixou também a celebração do precursor no solstício de verão (seis meses antes do Natal), quando o mesmo Sol, que há de aproximar-se da Terra, ainda está distante, embora brilhe e aqueça. 

Diz a Bíblia que Maria visitou Isabel supostamente para a ajudar no tempo final da sua gravidez em idade provecta e para partilhar com ela a realidade do seu mistério. E, aquando do nascimento do menino de Isabel, Zacarias, o pai que ficara mudo desde o anúncio angélico da conceção do menino, escreveu numa tabuinha: “João é o seu nome”. Depois, soltou-se-lhe a língua e passou a falar normalmente. Porém, uma tradição popular inverte os termos e preconiza que a fogueira é símbolo de um acordo entre Maria e Isabel, pois, numa tarde, Isabel foi a casa de Nossa Senhora e contou-lhe que, em breve, nasceria o seu filho, que se chamaria João Batista.

Além de espantar o frio, típico do outono e inverno, a fogueira tem a ver com São João. Segundo a predita tradição, quando João nasceu, a mãe pediu que acendessem uma fogueira nas montanhas da Judeia, para avisar Maria do facto. Ora, a 24 de junho, a Igreja celebra o nascimento do mártir João Batista, começando pela noite de 23 com uma vigília litúrgica. Em paralelo, o povo nessa noite, em tempo de arraial de folganças, fogueiras e comes e bebes, diverte-se nas ruas e praças. E algo semelhante acontece na noite de 28 para 29 de Junho. Enquanto a liturgia faz a vigília da Solenidade dos apóstolos e mártires Pedro e Paulo, o povo vai para o arraial de São Pedro. E, em alguns lugares, todo o homem que tenha Pedro ligado ao seu nome deve acende fogueiras nas portas de sua casa. E, se alguém amarrar uma fita a pessoa de nome Pedro, este vê-se na obrigação de dar um presente ou pagar uma bebida à pessoa que o amarrou.

A simbólica da fogueira está conexa com a do fogo, significando a purificação e o renascimento. No entanto, a fogueira possui diferentes simbologias, consoante o seu uso; e o fogo é um símbolo divino universal, com um sentido purificador e regenerador.

De origem europeia, a fogueira joanina remete para a tradição da celebração do solstício de verão, que se cristianizou com a festividade de São João, tornando-se, pouco a pouco, na Idade Média, atributo da festa de São João e, depois, o traço comum a todas as festas juninas. Segundo algumas crenças, Cristo e alguns santos revivificam os corpos que passem por uma fogueira.

O costume das fogueiras de S. João (em noite quente ou fresca), que se documenta entre nós e em muitos outros lugares desde tempos muito antigos, é geral e comum a todo o país, mas apresenta formas diferentes conforme as regiões. O sentido primitivo destas manifestações é duvidoso, mas, atualmente, na maioria dos casos e que parecem mais significativos, apresentam-se com virtudes profilácticas expressas e específicas, que, umas vezes, se exercem diretamente pela utilização imediata do fogo, saltando por cima delas, ou por meio de defumadouros ou práticas mágicas determinadas, outras indiretamente, sob a forma de sortes divinatórias relacionadas com ele.

As fogueiras coletivas e grandes localizam-se num largo ou praça e junto do poste festivo, se ele existe. Encontra-se tal prática no Norte, embora em coexistência com as pequenas fogueiras individuais, nas ruas, em frente às casas, e que as pessoas, sobretudo a gente nova, saltam. Em Trás-os-Montes, encontram-se as fogueiras pequenas, de molde a poderem saltar-se, preparadas com ervas aromáticas, de virtudes mágicas e profiláticas. Em Freixo de Espada à Cinta, são de “arreção” e rosmaninho, e perfumam toda a vila. Em Quintanilha, cada “bárrio” da aldeia tem a sua, pequena e feita com erva de “salpurros”. Novos e velhos saltam-nas em cruz, para se defumarem contra a sarna e o sarampo, bexigas e dores de cabeça, dizendo enquanto saltam: “Sama e sarampelo / Para o Padre de Arcozelo”.

No Sul, acentua-se este caráter das fogueiras, que aparecem, além disso, associadas a práticas divinatórias, conexas com a felicidade amorosa, o casamento e a prosperidade. Na Estremadura, são de alecrim e rosmaninho e fazem-se às portas das casas. Rapazes e raparigas saltam nas, e diz-se que, quanto mais alto as raparigas pularem, mais certo é o casamento. Veem-se nos bairros populares de Lisboa, embora apenas como folguedos da criançada. Em certos lugares, fazem rodinhas em volta da fogueira. Porém, mais do que uma verdadeira circum-ambulação ritual, tais danças têm o caráter de simples diversão. Na Beira Alta, fazem-se fogueiras e queimam-se molhos de rosmaninho, que se trouxeram dos campos e sobre os quais as raparigas saltam dizendo: “Serra em mim / Maria da Glória, / que anda tudo / co’a fralda de fora”.

Por toda a Beira Baixa, fazem-se pequenas fogueiras em frente às casas e nas esquinas das ruas, com alecrim, rosmaninho, mato, lenhas, carqueja, canas de fava secas, pinhas, etc., na convicção de que o cheiro e o fumo afugentam a bicharada nociva das pessoas, animais, casas e campos. A lenha é trazida do monte com antecedência e fica guardada em casa até se dispor em pilha no dia 23. No Sobral (Oleiros), arma-se um pinheiro, forrado com mato, no largo da aldeia, e pega-se-lhe fogo à meia-noite, entre danças e descantes; e, além disso, os moços levam troncos secos para o adro da igreja, para arderem durante três noites seguidas. Em Castelo (Sertã), os festeiros rodeiam a fogueira – onde queimam, além dos matos habituais, ceiras velhas dos lagares de azeite – com paus compridos revestidos com carqueja, as tochas, a que vão deitando fogo pela noite adiante, entre lançamento de foguetes e balões. Em Turquel, defumam-se os rebanhos nas fogueiras para lhes revigorar a saúde. No Alentejo, fazem-se, às portas das casas, fogueiras pequenas de plantas aromáticas, o mais das vezes alecrim e rosmaninho, e também erva do monte. As pessoas saltam-nas para se defumarem, pois este fumo é “um ar sadio”, e associam-nas a práticas divinatórias, de caráter amoroso. Em Odivelas (Ferreira do Alentejo) vemo-las utilizadas para a previsão do tempo, passando-se sobre elas uma tábua com doze mãos-cheias de sal, que figuram os doze meses do ano. A quantidade de água que ressoa de cada monte indica a chuva do mês correspondente. Em Eivas, saltam-nas contra a sarna. E no Algarve, a fogueira localiza-se a um lado do recinto que se centra no mastro festivo. Na ilha Terceira fazem-se fogueiras na rua, em volta das quais a gente miúda brinca e sobre as quais se salta quando a labareda cresce.

Em certas regiões, encontram-se árvores festivas nas celebrações locais do S. João, que diferem dos pinheiros e mastros acima descritos, por figurarem como material específico da fogueira cerimonial da festa, sendo queimadas no final. Na Beira Alta, em Mondim da Beira, a celebração dividia-se em duas partes: a festa dos rapazes e a das raparigas. A dos rapazes consistia na fogueira que se fazia num alto vizinho e a que se dava o nome de facho ou galheiro. Dias antes, os moços iam ao monte, com pífaros, tambores e algazarras, buscar um pinheiro alto, ao qual cortavam os ramos, deixando só os galhos, e que revestiam de fetos, bela-luz, rosmaninho, etc. Na noite de S. João queimavam-no, no meio de bombas, bichas e “sacatrapos”, musicatas de pastores, descantes, ao mesmo tempo que as pinhas que se haviam disposto à sua volta. A festa das raparigas constava da fogueira que se fazia num largo ou quinteiro da aldeia. Juntava-se o material do facho e lançava-se-lhe o fogo. As raparigas levantavam levemente a saia e saltavam a fogueira, recitando em modo de oração versos licenciosos alusivos à saúde. Em certos lugares, dependurava-se no pau central do galheiro, que atingia por vezes seis metros de altura, uma caçarola de barro com um gato dentro: ao calor da fogueira a caçarola estalava e o gato saltava espavorido. É de notar, a este respeito, que os reis de França, por exemplo Luís XI, acendiam eles próprios a fogueira em Paris, onde, com fins mágicos difusos, eram queimados gatos vivos e até, uma vez, uma raposa. De modo similar, em Silgueiros (Viseu), a par de fogueiras de rosmaninho, preparava-se o pinheiro, com maçanetas de panos nas pontas dos ramos, ligadas entre si por fitas, tudo embebido em líquidos inflamáveis, e pegava-se-lhes fogo na noite da festa. Na serra de Montemuro, a festa comporta a queima final do tenchoeiro, um tronco alto revestido até meio de mato seco, que se ergue numa elevação próxima da povoação e à volta da qual se canta e dança. Na Póvoa de Atalaia (Beira Baixa), para a noite de 23 de Junho fazem-se mastros festivos, que são paus envolvidos em mato, que se queimam mais tarde, enquanto se dança e se extinguem as fogueiras que ardem por toda a aldeia. No Minho, em Montedor, a norte de Viana do Castelo, encontra-se um motivo semelhante ao galheiro beirão, que levava, como na Maia, o nome de Pinheiro do S. João: nos terceiro e penúltimo domingos anteriores a 23 de Junho, os mordomos e mordomas do ano faziam o peditório pelos diferentes lugares da freguesia, acompanhados por música, e, de regresso, no local do arraial, organizava-se um bailarico. Na véspera do último domingo, os rapazes iam ao monte com um carro de bois buscar um pinheiro. Ao chegarem à povoação, preparavam o carro, montavam sobre ele um estrado largo, a árvore era posta ao alto, decorada de verduras e rodeada de balaústres. No dia seguinte, o carro, puxado por bois com cangas de luxo ornamentadas com flores, transportava o pinheiro até ao terreiro, com as mordomas no estrado, e acompanhado pelos mordomos, a pé, e pela música. Aí era apeado e fixo no solo, marcando o sítio do bailarico; juntava-se-lhe pruma (caruma seca do pinheiro), disposta em cordões, e, na noite de 23, pegava-se-lhe fogo, enquanto à sua volta se dançava e se brincava.

Em Portugal, há, pois, os dois tipos fundamentais de fogueira de S. João: a fogueira grande e coletiva; e a fogueira pequena, socialmente mais restrita (Às vezes, coexistem os dois tipos numa região. As virtudes profiláticas do fogo exercem-se pelo ato de saltar as fogueiras pequenas e pelos defumadouros, visando o casamento, a saúde e a felicidade. O saltar da fogueira tem um sentido genésico, que parece estar aqui presente, pois as fogueiras visam o casamento e, mais claramente, por exemplo, na Beira, polarizam alusões licenciosas.

Conexo com as celebrações do fogo (elemento de luz e som das festas públicas, para animação do povo e saída da rotina), temos o acervo das iluminações, as luminárias caraterísticas e os fogos-de-artifício, que vão desde as peças armadas de fogo solto e de fogo preso – em que se esmeram os pirotécnicos e que avultam nas celebrações públicas, girândolas e outras formas – até aos pirilampos chineses, “diabos em caixa”, fósforos de luz colorida que as crianças queimam das janelas à rua, foguetes, petardos, morteiros, bombas e os aeróstatos de papel (os balões do S. João), próprios das festas urbanas, mas que também aparecem nas de algumas localidades rurais.

Enfim, festa, folia e entretenimento para animação do povo, que até se esquece do Santo!

2022.06.25 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário