Têm estado
em debate parlamentar a proposta de lei apresentada pelo Governo para regular o
acesso a metadados referentes a comunicações eletrónicas para fins de investigação
criminal, bem como os projetos de lei do Partido Social Democrata (PSD), do Partido
Comunista Português (PCP) e do Chega – textos que, após debate na generalidade,
baixaram à Primeira Comissão, a Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos,
Liberdades e Garantias, sem votação, para o debate e respetiva aprovação na especialidade
(artigo a artigo) e com apelo ao consenso.
Sabe-se que
o Partido Socialista (PS) pretende que processo legislativo esteja concluído
antes do fim da presente sessão legislativa, ou seja, até finais de julho,
incluindo a eventual sujeição do decreto parlamentar ao juízo do Tribunal
Constitucional (TC).
Ainda sem
conhecer o teor do texto legislativo, muito longe da versão final, o Presidente
da República, antecipou-se, há tempos, a comunicar que vai solicitar ao TC a
fiscalização preventiva da nova lei que venha a ser aprovada pelo Parlamento. No
encalço do Chefe de Estado, a Provedora de Justiça prometeu acompanhar o
processo legislativo, alegando ser isso dever seu.
Por seu
turno, o procurador europeu José Guerra, sustentando que a lei que o TC chumbou
era “bastante respeitadora dos direitos fundamentais” e acreditando que
Procuradoria Europeia vai debruçar-se sobre caso, declarou, em entrevista à Lusa:
“Entendo que com grande probabilidade esta questão se
colocará em processos pendentes na Procuradoria Europeia [EPPO, na sigla inglesa]
e tendo o colégio por função tomar decisões estratégicas, não sobre casos
concretos, mas sobre questões estratégicas que emerjam de casos concretos, é
altamente provável que esta questão se venha a colocar”.
José Guerra
sublinhou que a sua experiência na secção que tinha sob as suas competências os
crimes informáticos, o levam a ter opinião sobre a polémica dos metadados em
Portugal e implicações do acórdão do TC, mas defende que, enquanto for
procurador europeu, não deve comentar “leis nacionais, a menos que elas sejam
francamente violadoras ou ponham fortemente em causa a atividade da EPPO, o que
não é o caso”.
Vincando
tratar-se de questão transversal à União Europeia (UE), diz não comentar o
acórdão do TC, mas compreender perfeitamente o debate como jurista. No entanto,
é da opinião de que a legislação nacional transpunha a diretiva europeia sobre
metadados “de forma bastante cautelosa, bastante respeitadora dos direitos
fundamentais”. Tal diretiva foi posta em causa pelo Tribunal de Justiça da UE.
A nossa lei manteve-se e, agora, o TC pô-la em causa. O Governo procurou uma
solução, como é da sua competência. E, por ironia, Guerra diz não comentar legislações
internas.
Por acórdão
de 19 de abril, o TC declarou inconstitucionais normas da lei dos metadados que
determinam que os fornecedores de serviços telefónicos e de internet devem
conservar os dados relativos às comunicações dos clientes, entre os quais origem,
destino, data e hora, tipo de equipamento e localização, durante um ano, para
eventual utilização em investigação criminal.
A proposta de
lei entregue pelo Governo no Parlamento estabelece, para fins de investigação
criminal, entre outros dados, o acesso à “data da chamada, grupo data/hora associado,
serviço e número chamado”. Prevê que as operadoras de telecomunicações forneçam
os seguintes metadados: “número ou identificação, endereço e tipo de posto do
assinante, códigos de utilizador, identidade internacional de assinante móvel
(IMSI) e identidade internacional do equipamento móvel (IMEI), número de
telefone, endereço de protocolo IP utilizado para estabelecimento da
comunicação, porto de origem de comunicação, bem como os dados associados ao início
e fim do acesso à Internet”. E atribui às autoridades judiciárias a competência
para solicitar à empresa que oferece redes e ou serviços de comunicações
eletrónicas os metadados, “quando haja razões que sustentem a
indispensabilidade da informação para a descoberta da verdade ou a
impossibilidade ou dificuldade de obter prova de outra forma”.
A proposta
de lei suscitou objeções da Polícia Judiciária (PJ) e do Ministério Público (MP),
que questionam os efeitos do acórdão do TC na investigação criminal. E a
ex-Procuradora-Geral da República, Joana Marques Vidal, conhecido o texto em
debate, admitiu a sua perplexidade por ser possível armazenar dados para
efeitos comerciais, mas não para investigação criminal.
Entretanto,
por solicitação da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e
Garantias, a Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) observa que algumas
das soluções de regulação do acesso aos metadados referentes a comunicações
eletrónicas para fins de investigação criminal diminuem as garantias dos
direitos fundamentais dos cidadãos.
O parecer da
CNPD, de 21 de junho, disponível no site do organismo, começa por
saudar a opção de criar um regime legal que não prevê a conservação
generalizada de dados pessoais relativos ao tráfego e à localização para a
finalidade de investigação e repressão criminais. Contudo,
adverte que a proposta de lei não alcança “o objetivo declarado de assegurar um
‘prudente equilíbrio’ entre, por um lado, o interesse público de segurança e
paz públicas que justifica dotar os órgãos de polícia criminal e as autoridades
judiciárias de meios de investigação e de prova adequados e, por outro lado, os
direitos fundamentais de cada cidadão, maxime
do respeito pela vida privada e familiar, à autodeterminação informativa e ao
livre desenvolvimento da personalidade”.
Identifica até “uma redução acentuada das garantias dos
direitos fundamentais dos cidadãos, por comparação com o regime jurídico
anterior de conservação e transmissão de dados pessoais relativos a
comunicações eletrónicas”. Tal
“diminuição da tutela dos direitos
fundamentais causa a maior perplexidade, sobretudo considerando o contexto em
que a proposta de lei surge: após a declaração do TC de inconstitucionalidade
com força obrigatória geral do “regime
legal de retenção de dados relativos às comunicações eletrónicas, que não
oferecia garantias adequadas à proteção daqueles direitos fundamentais”.
Segundo a CNPD, cria-se “uma teia estranguladora dos direitos e
liberdades”, sobretudo ao prever-se que as autoridades judiciárias possam
aceder aos dados pessoais sem prévio despacho do juiz de instrução. As críticas estendem-se ao alargamento do “catálogo de crimes que justifica
o acesso aos dados pessoais de tráfego e localização”, como “os crimes puníveis
com pena de prisão superior, no seu máximo, a três anos, bem como certos tipos
de criminalidade informática, em função da respetiva moldura penal e, ainda,
todos os demais crimes cometidos por meio de sistema informático, contanto que
puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a um ano. Também se
critica o “alargamento dos dados pessoais objeto de conservação e
de acesso”, que suscita dúvidas sobre a destruição de dados, sobretudo com a
eliminação, “apenas se não servirem de meio de prova após o trânsito em julgado
da decisão que puser termo ao processo”.
Para a CNPD,
a proposta de lei “contraria a jurisprudência nacional e europeia, em
particular do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 262/2022, bem como a
jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia e do Tribunal Europeu
dos Direitos Humanos, representando uma restrição desproporcionada dos direitos
fundamentais à reserva da vida privada, à autodeterminação informativa e ao
livre desenvolvimento da personalidade”.
Já, em relação
aos projetos de lei do PCP e do PSD, a CNPD, embora mantenha as objeções de fundo
e as recomendações essenciais, mostra-se muito menos assertiva.
O PSD
anunciou a entrega de um texto de substituição ao seu projeto de lei, para “eliminar a conservação generalizada dos
dados”. Falando em “aperfeiçoamento”, Paulo Mota Pinto, líder
parlamentar do partido, anunciou que o novo texto restringirá o armazenamento
de dados, prevendo a “conservação dos endereços de protocolo IP atribuídos à
fonte de uma ligação” e a possibilidade de conservação (conservação seletiva) dos
restantes, desde que o titular das comunicações não se oponha expressamente a
tal conservação. Porém, tal direito de oposição não se aplicará a algumas categorias
de pessoas definidas “com base em critérios objetivos”, como suspeitos ou
arguidos de um crime, como não poderá ser exercido relativamente a determinados
espaços, caso de aeroportos ou zonas turísticas.
E a ministra
da Justiça, mostrou-se disponível
para um “amplo consenso” nesta matéria, mas vincando que o texto do
Governo é “um caminho seguro para a superação do impasse jurídico”, pois, ao invés
dos restantes, o documento do Governo não prevê o armazenamento de dados para
fins de investigação criminal, passando a admitir o recurso das autoridades
judiciais às bases de dados que as operadoras mantêm para fins comerciais,
nomeadamente a faturação aos clientes.
***
Está difícil
a consecução de lei dos metadados que não esbarre na torre do Presidente da
República e na do TC, respaldados na jurisprudência europeia. Mal vai quando é
a justiça a determinar o teor das leis. Contra isso, o Parlamento pode decidir
de acordo com a segunda parte do n.º 2 do artigo 279.º da Constituição da
República Portuguesa, confirmando um diploma chumbado pelo TC “por maioria de
dois terços dos deputados presentes, desde que superior à maioria absoluta dos
deputados em efetividade de funções”. É solução politicamente audaz que nunca
vi tomada.
2022.06.26 – Louro de Carvalho
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