domingo, 26 de junho de 2022

Nova lei dos metadados tece estrangulação dos direitos e liberdades

 

Têm estado em debate parlamentar a proposta de lei apresentada pelo Governo para regular o acesso a metadados referentes a comunicações eletrónicas para fins de investigação criminal, bem como os projetos de lei do Partido Social Democrata (PSD), do Partido Comunista Português (PCP) e do Chega – textos que, após debate na generalidade, baixaram à Primeira Comissão, a Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, sem votação, para o debate e respetiva aprovação na especialidade (artigo a artigo) e com apelo ao consenso.

Sabe-se que o Partido Socialista (PS) pretende que processo legislativo esteja concluído antes do fim da presente sessão legislativa, ou seja, até finais de julho, incluindo a eventual sujeição do decreto parlamentar ao juízo do Tribunal Constitucional (TC).

Ainda sem conhecer o teor do texto legislativo, muito longe da versão final, o Presidente da República, antecipou-se, há tempos, a comunicar que vai solicitar ao TC a fiscalização preventiva da nova lei que venha a ser aprovada pelo Parlamento. No encalço do Chefe de Estado, a Provedora de Justiça prometeu acompanhar o processo legislativo, alegando ser isso dever seu.  

Por seu turno, o procurador europeu José Guerra, sustentando que a lei que o TC chumbou era “bastante respeitadora dos direitos fundamentais” e acreditando que Procuradoria Europeia vai debruçar-se sobre caso, declarou, em entrevista à Lusa:

“Entendo que com grande probabilidade esta questão se colocará em processos pendentes na Procuradoria Europeia [EPPO, na sigla inglesa] e tendo o colégio por função tomar decisões estratégicas, não sobre casos concretos, mas sobre questões estratégicas que emerjam de casos concretos, é altamente provável que esta questão se venha a colocar”.

José Guerra sublinhou que a sua experiência na secção que tinha sob as suas competências os crimes informáticos, o levam a ter opinião sobre a polémica dos metadados em Portugal e implicações do acórdão do TC, mas defende que, enquanto for procurador europeu, não deve comentar “leis nacionais, a menos que elas sejam francamente violadoras ou ponham fortemente em causa a atividade da EPPO, o que não é o caso”.

Vincando tratar-se de questão transversal à União Europeia (UE), diz não comentar o acórdão do TC, mas compreender perfeitamente o debate como jurista. No entanto, é da opinião de que a legislação nacional transpunha a diretiva europeia sobre metadados “de forma bastante cautelosa, bastante respeitadora dos direitos fundamentais”. Tal diretiva foi posta em causa pelo Tribunal de Justiça da UE. A nossa lei manteve-se e, agora, o TC pô-la em causa. O Governo procurou uma solução, como é da sua competência. E, por ironia, Guerra diz não comentar legislações internas.

Por acórdão de 19 de abril, o TC declarou inconstitucionais normas da lei dos metadados que determinam que os fornecedores de serviços telefónicos e de internet devem conservar os dados relativos às comunicações dos clientes, entre os quais origem, destino, data e hora, tipo de equipamento e localização, durante um ano, para eventual utilização em investigação criminal.

A proposta de lei entregue pelo Governo no Parlamento estabelece, para fins de investigação criminal, entre outros dados, o acesso à “data da chamada, grupo data/hora associado, serviço e número chamado”. Prevê que as operadoras de telecomunicações forneçam os seguintes metadados: “número ou identificação, endereço e tipo de posto do assinante, códigos de utilizador, identidade internacional de assinante móvel (IMSI) e identidade internacional do equipamento móvel (IMEI), número de telefone, endereço de protocolo IP utilizado para estabelecimento da comunicação, porto de origem de comunicação, bem como os dados associados ao início e fim do acesso à Internet”. E atribui às autoridades judiciárias a competência para solicitar à empresa que oferece redes e ou serviços de comunicações eletrónicas os metadados, “quando haja razões que sustentem a indispensabilidade da informação para a descoberta da verdade ou a impossibilidade ou dificuldade de obter prova de outra forma”.

A proposta de lei suscitou objeções da Polícia Judiciária (PJ) e do Ministério Público (MP), que questionam os efeitos do acórdão do TC na investigação criminal. E a ex-Procuradora-Geral da República, Joana Marques Vidal, conhecido o texto em debate, admitiu a sua perplexidade por ser possível armazenar dados para efeitos comerciais, mas não para investigação criminal.

Entretanto, por solicitação da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, a Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) observa que algumas das soluções de regulação do acesso aos metadados referentes a comunicações eletrónicas para fins de investigação criminal diminuem as garantias dos direitos fundamentais dos cidadãos.

O parecer da CNPD, de 21 de junho, disponível no site do organismo, começa por saudar a opção de criar um regime legal que não prevê a conservação generalizada de dados pessoais relativos ao tráfego e à localização para a finalidade de investigação e repressão criminais. Contudo, adverte que a proposta de lei não alcança “o objetivo declarado de assegurar um ‘prudente equilíbrio’ entre, por um lado, o interesse público de segurança e paz públicas que justifica dotar os órgãos de polícia criminal e as autoridades judiciárias de meios de investigação e de prova adequados e, por outro lado, os direitos fundamentais de cada cidadão, maxime do respeito pela vida privada e familiar, à autodeterminação informativa e ao livre desenvolvimento da personalidade”. Identifica até “uma redução acentuada das garantias dos direitos fundamentais dos cidadãos, por comparação com o regime jurídico anterior de conservação e transmissão de dados pessoais relativos a comunicações eletrónicas”. Tal “diminuição da tutela dos direitos fundamentais causa a maior perplexidade, sobretudo considerando o contexto em que a proposta de lei surge: após a declaração do TC de inconstitucionalidade com força obrigatória geral do “regime legal de retenção de dados relativos às comunicações eletrónicas, que não oferecia garantias adequadas à proteção daqueles direitos fundamentais”.

Segundo a CNPD, cria-se “uma teia estranguladora dos direitos e liberdades”, sobretudo ao prever-se que as autoridades judiciárias possam aceder aos dados pessoais sem prévio despacho do juiz de instrução. As críticas estendem-se ao alargamento do “catálogo de crimes que justifica o acesso aos dados pessoais de tráfego e localização”, como “os crimes puníveis com pena de prisão superior, no seu máximo, a três anos, bem como certos tipos de criminalidade informática, em função da respetiva moldura penal e, ainda, todos os demais crimes cometidos por meio de sistema informático, contanto que puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a um ano. Também se critica o “alargamento dos dados pessoais objeto de conservação e de acesso”, que suscita dúvidas sobre a destruição de dados, sobretudo com a eliminação, “apenas se não servirem de meio de prova após o trânsito em julgado da decisão que puser termo ao processo”.

Para a CNPD, a proposta de lei “contraria a jurisprudência nacional e europeia, em particular do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 262/2022, bem como a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia e do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, representando uma restrição desproporcionada dos direitos fundamentais à reserva da vida privada, à autodeterminação informativa e ao livre desenvolvimento da personalidade”.

Já, em relação aos projetos de lei do PCP e do PSD, a CNPD, embora mantenha as objeções de fundo e as recomendações essenciais, mostra-se muito menos assertiva.  

O PSD anunciou a entrega de um texto de substituição ao seu projeto de lei, para “eliminar a conservação generalizada dos dados”. Falando em “aperfeiçoamento”, Paulo Mota Pinto, líder parlamentar do partido, anunciou que o novo texto restringirá o armazenamento de dados, prevendo a “conservação dos endereços de protocolo IP atribuídos à fonte de uma ligação” e a possibilidade de conservação (conservação seletiva) dos restantes, desde que o titular das comunicações não se oponha expressamente a tal conservação. Porém, tal direito de oposição não se aplicará a algumas categorias de pessoas definidas “com base em critérios objetivos”, como suspeitos ou arguidos de um crime, como não poderá ser exercido relativamente a determinados espaços, caso de aeroportos ou zonas turísticas.

E a ministra da Justiça, mostrou-se disponível para um “amplo consenso” nesta matéria, mas vincando que o texto do Governo é “um caminho seguro para a superação do impasse jurídico”, pois, ao invés dos restantes, o documento do Governo não prevê o armazenamento de dados para fins de investigação criminal, passando a admitir o recurso das autoridades judiciais às bases de dados que as operadoras mantêm para fins comerciais, nomeadamente a faturação aos clientes.

***

Está difícil a consecução de lei dos metadados que não esbarre na torre do Presidente da República e na do TC, respaldados na jurisprudência europeia. Mal vai quando é a justiça a determinar o teor das leis. Contra isso, o Parlamento pode decidir de acordo com a segunda parte do n.º 2 do artigo 279.º da Constituição da República Portuguesa, confirmando um diploma chumbado pelo TC “por maioria de dois terços dos deputados presentes, desde que superior à maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções”. É solução politicamente audaz que nunca vi tomada.

2022.06.26 – Louro de Carvalho

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