quinta-feira, 30 de junho de 2022

É preciso parar as polémicas sobre a liturgia e redescobrir a sua beleza

 

A 29 de junho, Solenidade dos Apóstolos Pedro e Paulo, Francisco publicou a Carta Apostólica “Desiderio desideravi” – expressão que inicia o versículo Desiderio desideravi hoc Pascha manducare vobiscum, antequam patiar (desejei ardentemente comer esta Pácosa convosco – Lc 22,15) –, sobre a formação litúrgica do Povo de Deus, com o convite a que superemos tanto o esteticismo, que se compraz na formalidade externa, como o desleixo nas liturgia, pois “uma celebração que não evangeliza não é autêntica”.

Para recordar o significado profundo da celebração eucarística, tal como emergiu do Concílio Vaticano II, e para convidar à formação litúrgica, o documento de 65 parágrafos reelabora os resultados da sessão plenária do Dicastério do Culto Divino, em fevereiro de 2019, e vem na sequência do Motu Proprio “Traditionis custodes”, reiterando a importância da comunhão eclesial em torno do rito resultante da reforma liturgia pós-conciliar. Não é uma nova instrução ou um diretório com normas específicas, mas uma oportuna meditação para se compreender a beleza da celebração litúrgica e o seu papel na evangelização, concluindo com um apelo: “Abandonemos as polémicas para ouvirmos, juntos, o que o Espírito diz à Igreja, mantenhamos a comunhão, continuemos a maravilhar-nos com a beleza da liturgia”.

O texto está organizado em torno dos tópicos seguintes: A Liturgia: o “hoje” da história da salvação; A Liturgia: lugar do encontro com Cristo; A Igreja: sacramento do Corpo de Cristo; O sentido teológico da Liturgia; Redescobrir cada dia a beleza da verdade da celebração cristã;

Assombro ante o mistério pascal, parte essencial da ação litúrgica; A necessidade de uma séria e vital formação litúrgica; a “Ars celebrandi”.

Escreve o Pontífice que a fé cristã ou é encontro com Jesus vivo ou não é fé. E “a Liturgia garante-nos a possibilidade de tal encontro. Não se trata de uma vaga recordação da Última Ceia: temos necessidade de estar presentes nessa Ceia.

Lembrando a importância da Constituição “Sacrosanctum Concilium”, do Vaticano II, que levou à redescoberta da compreensão teológica da liturgia, o Santo Padre pretende que a beleza da celebração cristã e das suas necessárias consequências na vida da Igreja não seja deturpada por uma superficial e redutiva compreensão do seu valor ou, pior ainda, da sua instrumentalização ao serviço de alguma visão ideológica. E, tendo advertido sobre o “mundanismo espiritual” e o gnosticismo e neopelagianismo que o alimentam, sustenta que a participação no sacrifício eucarístico não é conquista nossa como se pudéssemos orgulhar-nos disso e que “a liturgia nada tem a ver com um moralismo ascético”, mas “é o dom da Páscoa do Senhor que, acolhido com docilidade, renova a nossa vida”. Com efeito, só entramos no Cenáculo levados pela força da atração do desejo do Senhor de comer a Páscoa connosco: Desiderio desideravi.

A cura do mundanismo espiritual postula a redescoberta da beleza da liturgia, redescoberta que não se compadece com a busca de “um esteticismo ritual que se compraz apenas no cuidado da formalidade externa de um rito ou se satisfaz com uma escrupulosa observância de rubricas”. Não obstante, esta asserção não aprova o comportamento oposto que confunde simplicidade com desleixada banalidade, essencialidade com ignorante superficialidade, concretude do agir ritual com exasperado funcionalismo prático.

O Sumo Pontífice salienta que deve cada aspeto da celebração ser cuidado (espaço, tempo, gestos, palavras, objetos, vestes, canto, música...) e deve cada rubrica ser observada, bastando essa atenção para não privar a assembleia do que lhe é devido, ou seja, do mistério pascal celebrado na modalidade ritual que a Igreja estabelece. Porém, ainda que se garantisse a qualidade e a norma da ação celebrativa, tal não bastaria para tornar plena a nossa participação. Efetivamente, se faltar “o encanto pelo mistério pascal” presente “na concretude dos sinais sacramentais”, correremos o risco de ser impermeáveis ​​ao oceano de graça que inunda cada celebração. Tal encanto não é perplexidade face a uma realidade obscura ou a um rito enigmático, mas é a maravilha pelo facto de o plano salvífico de Deus nos ter sido revelado no domingo de Páscoa.

Então, para recuperar a capacidade de viver plenamente a ação litúrgica face à perplexidade da pós-modernidade, do individualismo, do subjetivismo e do espiritualismo abstrato, o Santo Padre convida a retornar às grandes constituições conciliares, não inseparáveis ​​entre si. E escreve que “seria trivial ler as tensões, infelizmente presentes em torno da celebração, como uma simples divergência entre diferentes sensibilidades em relação a uma forma ritual”. Com efeito, por trás das batalhas sobre o rito, há diferentes conceções da Igreja. Porém, como diz o Papa, não se pode afirmar a validade do Concílio sem acolher a reforma nascida da “Sacrosanctum Concilium”.

Citando Romano Guardini, presente na Carta Apostólica, o Papa Francisco assegura que, sem formação litúrgica, pouco ajudam as reformas no rito e no texto. Por isso, insiste na importância da formação, em especial nos seminários, pois uma abordagem litúrgico-sapiencial da formação teológica terá efeitos positivos na ação pastoral. De facto, não há aspeto da vida eclesial que não encontre na Eucaristia, seu ápice e sua fonte. Assim, a pastoral de conjunto, orgânica e integrada, mais do que o resultado de programas elaborados, é a consequência de se colocar a celebração eucarística dominical, fundamento da comunhão, no centro da vida comunitária.

Contudo, não se pode reduzir tudo ao aspeto cultual, pois, como ensina o Papa, “não é autêntica a celebração que não evangeliza, tal como não é autêntico o anúncio que não leve ao encontro com o Ressuscitado na celebração”. E ambos, sem o testemunho da caridade, são como o bronze retumbante ou o címbalo que estrila.

Por isso, importa, diz o Papa, educar para a compreensão dos símbolos. E uma forma de o fazer é cuidar da arte de celebrar, que não se reduza à mera observância de um aparato de rubricas ou que recorra a uma criatividade imaginativa sem regras. O rito é uma norma e a norma nunca é um fim em si mesma, mas está ao serviço da realidade mais elevada que pretende salvaguardar.

Mais: a arte de celebrar não se aprende só frequentando um curso de oratória ou de técnicas de comunicação persuasiva, mas dedicando-se diligentemente à celebração, deixando que seja a celebração a transmitir-nos a sua arte. E, “entre os gestos que pertencem a toda a assembleia, o silêncio ocupa um lugar de absoluta importância”, pois “move ao arrependimento e ao desejo de conversão; suscita a escuta da Palavra e a oração; dispõe à adoração do Corpo e Sangue de Cristo”. E Francisco observa que, nas comunidades, o modo de viver a celebração está condicionado ao como o sacerdote preside à assembleia. E elenca vários “modelos” de presidência inadequados: “rigidez austera ou criatividade exasperada; misticismo espiritualizante ou funcionalismo prático; pressa ou lentidão enfatizada; descuido desleixado ou excessivo refinamento; superabundante afabilidade ou impassividade hierática”. Todos eles têm uma única raiz: o personalismo exasperado do estilo celebrativo, que expressa, por vezes, uma mania de liderança, amplificada quando as celebrações são transmitidas online. Ora, presidir à Eucaristia é mergulhar na fornalha do amor de Deus, o que nos dispensa de um diretório que nos exija um comportamento adequado.

Por conseguinte, o Santo Padre conclui pedindo a “todos os bispos, presbíteros e diáconos, aos formadores dos seminários, professores de faculdades teológicas e escolas de teologia, a todos os catequistas, que ajudem o povo de Deus a aproveitar o que é a fonte primária da espiritualidade cristã. E reitera o estipulado no “Traditionis custodes”, para que a Igreja eleve, na variedade das línguas, uma só e idêntica oração capaz de exprimir a sua unidade e esta oração é o Rito Romano resultante da reforma conciliar e estabelecido pelos santos pontífices Paulo VI e João Paulo II.

***

Enfim, o Papa vinca a necessidade de se conhecer como atua o Espírito Santo em cada celebração, pelo que a arte de celebrar deve estar em sintonia com a ação do Espírito, pois, só assim se livrará dos subjetivismos, qual resultado da prevalência de sensibilidades individuais e de culturalismos, que são incorporações sem critério de elementos culturais, que nada têm a ver com um correto processo de inculturação. Por outro lado, sublinha a necessidade de se conhecer a dinâmica a peculiaridade e a eficácia da linguagem simbólica.

Quisera o Pontífice que esta carta nos ajudasse a reavivar o assombro pela beleza da verdade da celebração cristã, recordando a premência da autêntica formação litúrgica e reconhecendo a importância da arte da celebração que esteja ao serviço da verdade do mistério pascal e da participação de todos os batizados, cada um segundo a especificidade da sua vocação.

Depois, enfatiza toda esta riqueza que está nas nossas igrejas, nas nossas festas cristãs, na centralidade do domingo, na força dos sacramentos. E observa que a vida cristã é um contínuo caminho de crescimento: estamos chamados a deixarmo-nos formar com alegria e em comunhão.

Por isso, o Papa insta a que redescubramos o sentido do ano litúrgico e do dia do Senhor. Na verdade, o ano litúrgico é a possibilidade de crescermos no conhecimento do mistério de Cristo, submergindo a nossa vida no mistério da sua Páscoa, enquanto esperamos a sua volta. A nossa vida não é uma sucessão casual e caótica de acontecimentos, mas um caminho que, de Páscoa em Páscoa, nos conforma com o Salvador Jesus Cristo, enquanto esperamos a sua vinda gloriosa. E, no decurso do tempo, renovado pela Páscoa, de oito em oito dias, a Igreja celebra, ao domingo, o acontecimento da salvação. O domingo, mais do que um preceito, é um presente de Deus ao seu Povo. E a celebração dominical oferece à comunidade cristã a possibilidade de se formar por meio da Eucaristia.

Assim, de domingo a domingo, a Palavra do Ressuscitado ilumina a nossa existência querendo realizar em nós aquilo para que foi enviada. A comunhão no Corpo e Sangue de Cristo faz da nossa vida um sacrifício agradável ao Pai, na comunhão fraterna que se transforma em ações de partilha, acolhimento e serviço. E a força do Pão repartido sustenta-nos no anúncio do Evangelho em que se manifesta a autenticidade da nossa celebração.

2022.06.30 – Louro de Carvalho

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