A 29 de
junho, Solenidade dos Apóstolos Pedro e Paulo, Francisco publicou a Carta
Apostólica “Desiderio desideravi” – expressão que inicia o versículo Desiderio
desideravi hoc Pascha manducare vobiscum, antequam patiar (desejei
ardentemente comer esta Pácosa convosco – Lc
22,15) –, sobre a formação litúrgica do Povo de Deus, com o convite a que
superemos tanto o esteticismo, que se compraz na formalidade externa, como o
desleixo nas liturgia, pois “uma celebração que não evangeliza não é autêntica”.
Para
recordar o significado profundo da celebração eucarística, tal como emergiu do
Concílio Vaticano II, e para convidar à formação litúrgica, o documento de 65
parágrafos reelabora os resultados da sessão plenária do Dicastério do Culto
Divino, em fevereiro de 2019, e vem na sequência do Motu Proprio “Traditionis custodes”, reiterando a importância da
comunhão eclesial em torno do rito resultante da reforma liturgia
pós-conciliar. Não é uma nova instrução ou um diretório com normas específicas,
mas uma oportuna meditação para se compreender a beleza da celebração litúrgica
e o seu papel na evangelização, concluindo com um apelo: “Abandonemos as polémicas
para ouvirmos, juntos, o que o Espírito diz à Igreja, mantenhamos a comunhão,
continuemos a maravilhar-nos com a beleza da liturgia”.
O texto está
organizado em torno dos tópicos seguintes: A Liturgia: o “hoje” da história
da salvação; A Liturgia: lugar
do encontro com Cristo; A Igreja: sacramento do Corpo de Cristo; O sentido teológico da Liturgia;
Redescobrir cada dia a beleza da verdade da celebração cristã;
Assombro
ante o mistério pascal, parte essencial da ação litúrgica; A necessidade de uma séria e vital formação
litúrgica; a “Ars
celebrandi”.
Escreve o
Pontífice que a fé cristã ou é encontro com Jesus vivo ou não é fé. E “a
Liturgia garante-nos a possibilidade de tal encontro. Não se trata de uma vaga
recordação da Última Ceia: temos necessidade de estar presentes nessa Ceia.
Lembrando a
importância da Constituição “Sacrosanctum Concilium”, do Vaticano II, que levou
à redescoberta da compreensão teológica da liturgia, o Santo Padre pretende que
a beleza da celebração cristã e das suas necessárias consequências na vida da
Igreja não seja deturpada por uma superficial e redutiva compreensão do seu
valor ou, pior ainda, da sua instrumentalização ao serviço de alguma visão
ideológica. E, tendo advertido sobre o “mundanismo espiritual” e o gnosticismo
e neopelagianismo que o alimentam, sustenta que a participação no sacrifício
eucarístico não é conquista nossa como se pudéssemos orgulhar-nos disso e que “a
liturgia nada tem a ver com um moralismo ascético”, mas “é o dom da Páscoa do
Senhor que, acolhido com docilidade, renova a nossa vida”. Com efeito, só entramos
no Cenáculo levados pela força da atração do desejo do Senhor de comer a Páscoa
connosco: Desiderio desideravi.
A cura do
mundanismo espiritual postula a redescoberta da beleza da liturgia,
redescoberta que não se compadece com a busca de “um esteticismo ritual que se
compraz apenas no cuidado da formalidade externa de um rito ou se satisfaz com
uma escrupulosa observância de rubricas”. Não obstante, esta asserção não aprova
o comportamento oposto que confunde simplicidade com desleixada banalidade, essencialidade
com ignorante superficialidade, concretude do agir ritual com exasperado
funcionalismo prático.
O Sumo
Pontífice salienta que deve cada aspeto da celebração ser cuidado (espaço,
tempo, gestos, palavras, objetos, vestes, canto, música...) e deve cada rubrica
ser observada, bastando essa atenção para não privar a assembleia do que lhe é
devido, ou seja, do mistério pascal celebrado na modalidade ritual que a Igreja
estabelece. Porém, ainda que se garantisse a qualidade e a norma da ação
celebrativa, tal não bastaria para tornar plena a nossa participação.
Efetivamente, se faltar “o encanto pelo mistério pascal” presente “na
concretude dos sinais sacramentais”, correremos o risco de ser impermeáveis
ao oceano de graça que inunda cada celebração. Tal encanto não é perplexidade
face a uma realidade obscura ou a um rito enigmático, mas é a maravilha pelo facto
de o plano salvífico de Deus nos ter sido revelado no domingo de Páscoa.
Então, para recuperar
a capacidade de viver plenamente a ação litúrgica face à perplexidade da
pós-modernidade, do individualismo, do subjetivismo e do espiritualismo
abstrato, o Santo Padre convida a retornar às grandes constituições
conciliares, não inseparáveis entre si. E escreve que “seria trivial ler as
tensões, infelizmente presentes em torno da celebração, como uma simples
divergência entre diferentes sensibilidades em relação a uma forma ritual”. Com
efeito, por trás das batalhas sobre o rito, há diferentes conceções da Igreja. Porém,
como diz o Papa, não se pode afirmar a validade do Concílio sem acolher a reforma
nascida da “Sacrosanctum Concilium”.
Citando Romano
Guardini, presente na Carta Apostólica, o Papa Francisco assegura que, sem
formação litúrgica, pouco ajudam as reformas no rito e no texto. Por isso,
insiste na importância da formação, em especial nos seminários, pois uma
abordagem litúrgico-sapiencial da formação teológica terá efeitos positivos na
ação pastoral. De facto, não há aspeto da vida eclesial que não encontre na
Eucaristia, seu ápice e sua fonte. Assim, a pastoral de conjunto, orgânica e
integrada, mais do que o resultado de programas elaborados, é a consequência de
se colocar a celebração eucarística dominical, fundamento da comunhão, no
centro da vida comunitária.
Contudo, não
se pode reduzir tudo ao aspeto cultual, pois, como ensina o Papa, “não é
autêntica a celebração que não evangeliza, tal como não é autêntico o anúncio
que não leve ao encontro com o Ressuscitado na celebração”. E ambos, sem o testemunho
da caridade, são como o bronze retumbante ou o címbalo que estrila.
Por isso,
importa, diz o Papa, educar para a compreensão dos símbolos. E uma forma de o
fazer é cuidar da arte de celebrar, que não se reduza à mera observância de um
aparato de rubricas ou que recorra a uma criatividade imaginativa sem regras. O
rito é uma norma e a norma nunca é um fim em si mesma, mas está ao serviço da
realidade mais elevada que pretende salvaguardar.
Mais: a arte
de celebrar não se aprende só frequentando um curso de oratória ou de técnicas
de comunicação persuasiva, mas dedicando-se diligentemente à celebração,
deixando que seja a celebração a transmitir-nos a sua arte. E, “entre os gestos
que pertencem a toda a assembleia, o silêncio ocupa um lugar de absoluta
importância”, pois “move ao arrependimento e ao desejo de conversão; suscita a
escuta da Palavra e a oração; dispõe à adoração do Corpo e Sangue de Cristo”. E
Francisco observa que, nas comunidades, o modo de viver a celebração está
condicionado ao como o sacerdote preside à assembleia. E elenca vários
“modelos” de presidência inadequados: “rigidez austera ou criatividade
exasperada; misticismo espiritualizante ou funcionalismo prático; pressa ou
lentidão enfatizada; descuido desleixado ou excessivo refinamento; superabundante
afabilidade ou impassividade hierática”. Todos eles têm uma única raiz: o
personalismo exasperado do estilo celebrativo, que expressa, por vezes, uma
mania de liderança, amplificada quando as celebrações são transmitidas online.
Ora, presidir à Eucaristia é mergulhar na fornalha do amor de Deus, o que nos
dispensa de um diretório que nos exija um comportamento adequado.
Por
conseguinte, o Santo Padre conclui pedindo a “todos os bispos, presbíteros e
diáconos, aos formadores dos seminários, professores de faculdades teológicas e
escolas de teologia, a todos os catequistas, que ajudem o povo de Deus a
aproveitar o que é a fonte primária da espiritualidade cristã. E reitera o
estipulado no “Traditionis custodes”, para que a Igreja eleve, na variedade das
línguas, uma só e idêntica oração capaz de exprimir a sua unidade e esta oração
é o Rito Romano resultante da reforma conciliar e estabelecido pelos santos
pontífices Paulo VI e João Paulo II.
***
Enfim,
o Papa vinca a necessidade de se conhecer como atua o Espírito
Santo em cada celebração, pelo que a arte de celebrar deve estar em sintonia com
a ação do Espírito, pois, só assim se livrará dos subjetivismos, qual resultado
da prevalência de sensibilidades individuais e de culturalismos, que são incorporações
sem critério de elementos culturais, que nada têm a ver com um correto processo
de inculturação. Por outro lado, sublinha a necessidade de se conhecer a dinâmica a peculiaridade e a eficácia da linguagem simbólica.
Quisera o
Pontífice que esta carta nos ajudasse a reavivar o assombro pela beleza da verdade
da celebração cristã, recordando a premência da autêntica formação litúrgica e reconhecendo
a importância da arte da celebração que esteja ao serviço da verdade do mistério
pascal e da participação de todos os batizados, cada um segundo a especificidade
da sua vocação.
Depois,
enfatiza toda esta riqueza que está nas nossas igrejas, nas nossas festas cristãs,
na centralidade do domingo, na força dos sacramentos. E observa que a vida
cristã é um contínuo caminho de crescimento: estamos chamados a deixarmo-nos
formar com alegria e em comunhão.
Por isso, o Papa insta a que
redescubramos o sentido do ano litúrgico e do dia do Senhor.
Na verdade, o ano litúrgico é a possibilidade de crescermos no conhecimento do mistério
de Cristo, submergindo a nossa vida no mistério da sua Páscoa, enquanto
esperamos a sua volta. A nossa vida não é uma sucessão casual e caótica de acontecimentos,
mas um caminho que, de Páscoa em Páscoa, nos conforma com o Salvador Jesus
Cristo, enquanto esperamos a sua vinda gloriosa. E, no decurso do tempo, renovado
pela Páscoa, de oito em oito dias, a Igreja celebra, ao domingo, o acontecimento
da salvação. O domingo, mais do que um preceito, é um presente de Deus ao seu
Povo. E a celebração dominical oferece à comunidade cristã a possibilidade de se
formar por meio da Eucaristia.
Assim, de
domingo a domingo, a Palavra do Ressuscitado ilumina a nossa existência querendo
realizar em nós aquilo para que foi enviada. A comunhão no Corpo e Sangue de
Cristo faz da nossa vida um sacrifício agradável ao Pai, na comunhão fraterna
que se transforma em ações de partilha, acolhimento e serviço. E a força do Pão
repartido sustenta-nos no anúncio do Evangelho em que se manifesta a autenticidade
da nossa celebração.
2022.06.30 – Louro de Carvalho
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