terça-feira, 28 de junho de 2022

Não me acompanhem “a par e passo”, que eu não quero

 

Muita gente, mesmo cultural e politicamente cotada, usa, a cada passo, a expressão “a par e passo”, que não faz sentido, se olharmos, atentamente, para a expressão.

Acompanhar uma pessoa a par dela é possível e é sinal de igualdade existencial e de estatuto. E acompanhá-la a passo faz sentido, se ela andar a pé, ou seja, a caminhar, a marchar. Querer dizer tudo de uma vez ou é confusão ou é, por benevolência, inútil redundância.

A susodita expressão é tradução atabalhoada da expressão latina “pari passu” (no ablativo do singular masculino), que se deve traduzir por “a passo igual” (do nome latino “passus, us”, “passo”; e do adjetivo uniforme de segunda classe “par, paris”, “igual”), isto é ao mesmo ritmo, com a mesma velocidade. Assim, quem acompanha alguém pari passu vai ao seu lado, ombro a ombro, não vai mais adiante nem mais atrás, não se antecipa, não se retarda, não se sobrepõe, não ofusca. E o que se diz do acompanhamento a uma pessoa, diz-se, por extensão, de um animal de um acontecimento ou de um processo.

O mencionado adjetivo “par, paris” significa: igual em força ou mérito, igual em idade, rival, semelhante, conveniente, justo, capaz de, que faz parelha ou par com, que resiste. E, empregue substantivamente, ou seja, como nome (masculino e feminino), significa: companheiro ou companheira, macho ou fêmea num casal, companheiro ou companheira da mesma categoria.

Por seu turno, o nome “passus, us” (masculino, da 4.ª declinação) significa, neste contexto, afastamento das pernas, espaço compreendido entre as pernas por causa do seu afastamento, passo, medida de comprimento (equivalente a cinco pés romanos), pegada. Formou-se a partir do verbo “pando, pandis, pandere, pandi, passum ou pansum”, que significa estender, desdobrar, desenrolar, deixar ver, revelar. Daqui vem a nossa palavra “expansão” e as cognatas lexicais. E o verbo “pandere” tem um supino “passum” ou “pansum” de que se formou o particípio passado e o adjetivo verbal “passus, a, um” (estendido, desdobrado, espalhado, solto, seco ao sol).

O “passo” de que estamos a falar é diferente do “passo” ou dos “passos” de Cristo, desde a agonia orante no Horto das Oliveiras até ao transe da cruz, no Calvário ou Gólgota. O Senhor do Passos não é só o que anda, mas é sobretudo o que sofre, embora esse sofrimento implique passos de marcha e deixe pegada. Este nome latino “passus, us” (homónimo do anterior) forma-se do verbo depoente “patior, pateris, pati, passus sum”, que significa: sofrer, suportar, aturar, tolerar, permitir, consentir, admitir, ser passivo.

O particípio passado e o adjetivo verbal “passus, a, um” significam: que sofreu, que tolerou, que permitiu. E o nome “passus, us” quer dizer sofrimento. Daqui vêm as palavras “paixão” (passio, onis) e “paciência” (no Latim, patientia, ae) e as cognatas, como “apaixonar-se”, “paixoneta”, “passional”, “paciente”, etc.       

E, passando da homonímia à homofonia, havemos de convir em que o “passo”, de quem anda ou de quem mede, e o “passo”, de quem sofre, são bem diferentes, exceto na pronúncia, do “paço”, edifício onde habita a corte imperial ou a corte régia, ou o alto dignitário do clero ou da nobreza. Este forma-se do nome latino “palatium, ii”, que era o monte Palatino (a mais alta das colinas de Roma) e passou a ser a habitação dos Césares em Roma e, por extensão, palácio imperial, que ficava no referido monte, ou, simplesmente, palácio.

Deste nome derivou o adjetivo de primeira classe “palatinus, a, um”, que significa “do monte Palatino” ou do “palácio dos Césares”, bem como o nome neutro “palatinum, i”, a significar “oficial do palácio imperial”.

Na Língua Portuguesa temos as palavras alótropas ou divergentes “palácio” e “paço”, sendo a primeira formada a partir de “palatium” por via erudita (diretamente do étimo, só com a apócope do “m” final e com a sujeição à pronúncia da Língua Portuguesa) e a segunda, por via popular (tendo o étimo passado par várias transformações fonéticas, nomeadamente a síncope do “l”, a crase dos “aa” e a palatalização da sílaba “ti”). Assim, apesar de o étimo ser o mesmo (“palatium”), há diferença de significado: as grandes mansões imperiais, régias ou republicanas denominam-se palácios, ao passo que as demais casas apalaçadas se denominam de paços (paço ducal, paço condal, paço episcopal e a pluriária paços do concelho). Às vezes, empregam-se indistintamente.

Resta mencionar as palavras “paçô” (presente na toponímia) e “palacete”. A primeira formou-se do nome latino “palatiolum, ii” (diminutivo de “palatium”), a significar “pequeno palácio”, enquanto a segunda se formou do nome “palácio”. Podia ser “palaciozinho” ou “palacinho”, “palacito”, “palacico” ou “palaceco”, mas estas não estão dicionarizadas.

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Por tudo isto, sugiro que andem comigo “pari passu”, pois, assim me acompanharão nas passadas em jeito de igualdade ou paridade e de solidariedade para comigo, se tiver passos sofridos. Até conviveriam comigo, se eu vivesse num palácio ou paço e até num palacete. E não se esqueçam de acompanhar “pari passu” os acontecimentos e os processos em que estão interessados por dever ou benefício para que nada escape ao devido controlo e se colham as lições de vida que deles podemos auferir. “Pari passu”, que é certo, e não “a par e passo”, que é uma enormidade desnecessária.

A bem da Língua Portuguesa!

2022.06.28 – Louro de Carvalho

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