quarta-feira, 29 de junho de 2022

Espanha quer cimeira da Nato a projetar a imagem do país

 

É por isso que os espanhóis suportam estoicamente os inconvenientes de terem Madrid blindada pela maior operação de segurança de sempre para albergar esta reunião plenária da Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO), de 28 a 30 de junho, coincidente com as celebrações do 40.º aniversário da adesão de Espanha.

Cerca de 12 mil agentes de vários corpos de segurança se encarregaram de proteger mais de 2000 participantes na cimeira (de 40 delegações encabeçadas por chefes de Estado ou de Governo), a que se juntaram 2000 jornalistas de todo o mundo e um milhar de funcionários de instituições e organismos continentais. Trajetos importantes para a circulação madrilena viram troços cortados e houve a proibição de estacionar num raio de 300 metros em torno dos hotéis que alojam os participantes e os colaboradores. E as autoridades recomendaram o teletrabalho, o transporte público (gratuito durante a cimeira) e a redução das deslocações ao estritamente necessário.

A “Operação Eirene”, do nome da deusa grega da paz, foi reforçada por unidades do Exército, com a mobilização de veículos blindados para pontos estratégicos. A força aérea participou, apoiada por drones e aviões-radar Awac da NATO. Nas fronteiras terrestres com Portugal e com a França, houve triagem para evitar que militantes em organizações antissistema chegassem a Madrid e causassem tumultos. O Centro Nacional de Criptologia (CCN), do serviço de informações espanhol CNI, elaborou minucioso plano para evitar ciberataques.

Apesar dos inconvenientes, a população está, maioritariamente (83% dos cidadãos), a favor do envolvimento do país nesta organização. A popularidade da Aliança tem crescido desde a consulta de fevereiro deste ano, em que 80% os inquiridos exprimiam apoio à NATO.

A cimeira é relevante pela situação resultante da invasão da Ucrânia pela Rússia e pelo novo conceito estratégico a adotar como guia de atuação para os próximos dez anos, em substituição do que saiu da cimeira de Lisboa em 2010.

Estava previsto que se relevasse o desempenho do secretário-geral da Aliança, Jens Stoltenberg, a quem deveria suceder uma mulher, pela primeira vez, mas a sucessão foi adiada um ano.

O primeiro ato relevante ocorreu a 28 de junho e foi a reunião entre o Presidente da Turquia, o Presidente da Finlândia e a primeira-ministra da Suécia, para ultrapassar o veto da Turquia à entrada dos dois países escandinavos para a NATO (já retirado). Erdogan vincava o apoio que dão ao Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), que Ancara e a UE têm por organização terrorista.

O evento propicia a projeção da imagem de um país capaz de organizar iniciativas deste tipo e o reforço da agenda dos seus principais dirigentes. O primeiro-ministro, de quem se diz preparar uma candidatura para chefiar algum organismo internacional que abandonar a política nacional, cumpriu o desejo de se reunir com o Presidente dos Estados Unidos, que chegou ao início da tarde do primeiro dia e foi recebido, na base aérea de Torrejón de Ardoz, pelo rei Filipe VI, que o conhece do tempo em que foi vice-presidente de Barack Obama. Biden, o único dirigente que traz o seu aparato de segurança, com mais de 45 veículos (até “A Besta”, limusina pessoal blindada) e um amplo contingente de membros dos serviços secretos, visitou o palácio da Moncloa, sede do governo, para conversar com Pedro Sánchez, que aproveitou o ensejo para o sensibilizar para as novas ameaças à Europa da parte do flanco sul do continente.

Na noite do dia 28, os chefes de Estado e de Governo participaram num jantar de gala no Palácio Real, oferecido pelos reis Filipe e Letizia. E, no dia 29, houve outro jantar euroatlântico, a convite de Sánchez, com países da UE não pertencentes à NATO (Suécia, Finlândia, Irlanda, Áustria, Malta e Chipre), no claustro dos Jerónimos do Museu do Prado. Nestas refeições estiveram representantes de países convidados: Japão, Austrália, Nova Zelândia e Coreia do Sul.

O Presidente da Ucrânia participou nos debates por videoconferência.

A rainha Letizia acompanhou os cônjuges dos chefes de Estado e de Governo, com um programa que incluiu a deslocação ao Real Sitio da Granja de Santo Ildefonso, em Segóvia, com visitas ao palácio, jardins e fontes, e à Real Fábrica de Cristais, o almoço no Museu Reina Sofía, perto do quadro Gernika, de Picasso, e a visita ao Teatro Real, onde os viajantes provaram azeites espanhóis e presenciaram um ensaio da ópera Nabucco, de Giuseppe Verdi.

Segundo funcionários do governo, os custos do acolhimento superarão os 50 milhões de euros, sendo verba mais pesada o aluguer de dois pavilhões de 54 mil metros quadrados na feira de Madrid, IFEMA, onde decorreu a reunião. Mas os retornos serão evidentes, a médio e longo prazo, em aspetos intangíveis: a imagem de Madrid, a aceleração de negócios e o turismo.

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Espanha e Portugal pretendiam que a cimeira incorporasse nos debates formais a segurança do flanco sul da Aliança. Ambos os países estão influenciados pelos ventos de crise que chegam do norte de África, no Sahel, a partir de países como o Mali, o Níger ou a República Centro Africana, onde a instabilidade política, o terrorismo jihadista, a pressão da imigração ilegal e a fome constituem sérias ameaças à segurança do sul europeu. A NATO, focada em proteger a fronteira leste com a Rússia, não parece disposta a dedicar muito tempo a este debate. Entretanto, o secretário-geral da Aliança garantiu “assegurar uma perspetiva de 360 graus”, na tentativa de neutralizar comentários acerca do escasso interesse em relação a esta zona.

A ministra espanhola da Defesa, muito sensível a este ponto da geografia mediterrânea, defendeu, em entrevista ao “El Mundo”, que não se pode “esquecer a situação que se está a viver em África”, não só pela fome, mas sobretudo “pela expansão russa na zona e pelo crescente desenvolvimento que estão a experimentar o jihadismo, o terrorismo, o integrismo e a imigração ilegal”.

Do lado português, esta perspetiva é assumida no discurso oficial do governo, quer pelas ligações históricas a África, quer pelo facto de o país contribuir com cerca de 180 militares para a MINUSCA, a missão de paz da ONU na República Centro Africana. O primeiro-ministro utiliza recorrentemente a expressão de Stoltenberg, para defender a “necessidade de a NATO manter uma verdadeira perspetiva de 360 graus, fazendo frente aos desafios a leste, mas sem descurar a ação e presença a sul, onde se erguem algumas das mais sérias ameaças à segurança da Europa, como a instabilidade política, Estados falhados, emergências humanitárias e terrorismo”.

Os Estados Unidos (EUA) não partilham a preocupação com o mesmo grau. O major-general Arnaut Moreira, especialista em assuntos estratégicos, observa que a questão do flanco sul só não foi mais secundarizada por a cimeira ser realizada em Espanha, para não ferir a amabilidade do anfitrião. Para o general, a prioridade ao Sul contraria a orientação estratégica virada para dois níveis: a ameaça identificada com a Federação Russa e o desafio a médio/longo prazo, que é China. Ora, o grau da ameaça a sul não é igual à ameaça a leste. A ameaça a sul não é propriamente militar, mas, predominantemente, de natureza, social, económica e demográfica.

A posição americana explica-se pelo facto de um dos países implicados nessa área de potenciais riscos ser Marrocos, o mais firme aliado de Washington na zona. Com tal parceiro no norte de África e peças as relações que mantém com o Reino Unido, com larga presença militar em Gibraltar, os EUA têm assegurado o controlo da entrada no Mediterrâneo e no Próximo Oriente.

Neste aspeto, Sánchez anuiu ao pedido de Biden no sentido da ampliação da presença naval norte-americana na base de Rota (Cádis), com a junção de dois novos contratorpedeiros da classe Arleigh Burke aos quatro que já têm base permanente nessa instalação militar, aumentando o contingente de tropas de 1200 para 1800 soldados. Tal acordo ficou plasmado numa declaração conjunta e numa atualização do Convénio de Cooperação Defensiva de 1988.

Estas concessões e a mudança de política de Espanha a respeito do Sahara, que se alinha com as posições de Rabat, acalentadas a partir de Washington, poderiam funcionar como lubrificante para que os EUA não pusessem objeções às aspirações espanholas e portuguesas sobre o Novo Conceito Estratégico da NATO, o roteiro pelo qual se pautarão as atuações da Aliança no futuro próximo e as respostas aos desafios colocados por temas como a expansão da China, as alterações climáticas e o ciberterrorismo.

Espanha desejava que o novo Conceito Estratégico contemplasse expressamente a defesa da soberania e da integridade territorial dos países membros. Uma prova da sua preocupação com o flanco sul é a recente decisão de comprar, por 2050 milhões de euros, 20 caças Eurofighter destinados à base aérea de Gando, nas Canárias, completando assim as frotas destes aparelhos destacadas em Los Llanos (Albacete) e Morón de la Frontera (Sevilha). O negócio ficou fechado discretamente, há poucas semanas, em Berlim, entre representantes do governo espanhol e o fabricante Airbus Defence and Space.

Para Espanha e para os seus parceiros europeus, as duas cidades espanholas (Ceuta e Melilha) no norte de África fazem parte inamovível da integridade territorial espanhola, tal como está contemplado, por exemplo, na Iniciativa de Defesa e Segurança da União Europeia (UE).

Inquirido a esse respeito, Stoltenberg evitou comprometer-se e assegurou que “qualquer decisão que afete territórios como Ceuta e Melilha deveria ser precedida por consultas políticas entre os membros da Aliança, e a decisão final estaria nas mãos do Conselho Atlântico”.

O que parece muito claro e com reflexo literal nos documentos finais da cimeira é a consideração da Rússia, que passou de “parceiro” na declaração de Lisboa, em 2010 para “a ameaça mais significativa” da Aliança Atlântica, cuja resposta a esta nova situação é a multiplicação dos seus contingentes militares em países fronteiriços com a Rússia, transformando os batalhões de presença avançada permanente nos países bálticos (Estónia, Letónia e Lituânia) e na Polónia ou na Roménia em brigadas, duplicando os contingentes atuais integrados entre 1000 e 1600 soldados. A NATO Response Force, a força de reação rápida da Aliança, orientada para a ala leste europeia, incrementará o seu contingente de 40 mil para 300 mil efetivos, capazes de serem destacados com a máxima rapidez, com a correspondente dotação de armamento e veículos.

E o major-general Arnaut Moreira, considerando este como “um problema genérico na Europa”, pergunta donde virão as 200 e tal mil tropas que é preciso constituir, uma força de reação rápida, que “tem de estar pronta e disponível para embarcar em 30 dias e algumas delas em cinco dias”. É um “esforço imenso” para Forças Armadas, que “não têm o número de efetivos previsto nos seus planeamentos, como não têm serviço militar obrigatório”.

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Face a estes dados, surgem alguns questionamentos que se julgam pertinentes.

Como se tolera que Biden chegue a um país europeu com o seu painel humano e logístico de segurança, desconfiando da capacidade das autoridades nacionais ou fazendo gala da sua grandeza e supremacia? Seria bonito se todos os altos visitantes fizessem o mesmo…

Está visto que a NATO, mais do que defender os países-membros, está interessada na sua expansão, no apoio a países não membros e a combater um país que se perfila como inimigo. A promoção e a manutenção da paz global não cabem à NATO, mas à ONU (Organização das Nações Unidas). Qual é mesmo o papel da Aliança Atlântica? Será chegar ao Pacífico e ao Índico?

2022.06.29 – Louro de Carvalho

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