segunda-feira, 20 de junho de 2022

Férias: da designação dos dias da semana para culto e descanso

 

Vêm aí as férias e, durante o ano, passámos por alguns feriados – alguns prolongados, outros que dão para fazer ponte, sobre dia útil, de feriado para domingo ou de domingo para feriado. Talvez não nos tenhamos dado conta de que tudo remete para o binómio culto/descanso.

Os Romanos começaram a dividir, em definitivo, o tempo em semanas de sete dias no século II d.C. E, para designar os dias da semana, escolheram astros que adotaram como deuses ou deusas, com exceção da Terra. Assim, em Latim, temos: Dies Solis (Dia do Sol), Dies Lunae (Dia da Lua), Dies Martis (Dia de Marte), Dies Mercurii (Dia de Mercúrio), Dies Iouis (Dia de Júpiter), Dies Veneris (Dia de Vénus) e Dies Saturni (Dia de Saturno). Em Inglês, os dias mantêm-se com o nome day (dia), antecedido do nome do deus romano ou do deus germânico ou anglo-saxónico equivalente ao respetivo deus romano. Sunday, Monday, Tuesday (Tiu, germânico equivalente a Marte), Wednesday (Woden, anglo-saxónico equivalente a Mercúrio), Thursday (Thor, germânico equivalente a Júpiter), Friday (Freia, germânica equivalente a Vénus) e Saturday. Em Francês, Italiano e Espanhol, como exceção do primeiro dia da semana, que, tal como em Português, tem a designação cristã de domingo, dia do Senhor (respetivamente, Dimanche, Domenico e Domingo) e do último dia da semana, que, tal como em Português, remonta ao xabbath judaico, o nosso sábado (respetivamente, Samedi, Sabato e Sábado), os outros mantêm as designações romanas. Porém, enquanto o Espanhol omite o nome dia (Lunes, Martes, Miércoles, Jueves e Viernes), o Francês e o Italiano mantêm-no a seguir ao deus (respetivamente, Lundi e Lunedi, Mardi e Martedi, Mercredi e Mercoledi, Jeudi e Jiovedi, Vendredi e Venerdi).

No século III, a Igreja católica considerou santos ou santificados todos os dias da semana, designando cada um por feria (féria: dia de festa) e o conjunto deles por feriae (férias), pelo que a semana passou a ser constituída por prima feria (primeira-feira), secunda feria (segunda-feira), tertia feria (terça-feira), quarta feria (quarta-feira) quinta feria (quinta-feira), sexta feria (sexta-feira) e septima feria (sétima-feira). Em princípio, todos os dias seriam dedicados a Deus pelo culto e pelo descanso. Daí vêm os nossos dias de férias ou de descanso. E, se se trata de um dia destes isolado, chama-se feriado (dies feriatus), dia de descanso e, em termos religiosos, dia santo ou de culto. Como, em dias de culto ou de festa, no perímetro das celebrações, se vendiam produtos alimentares, agasalhos e objetos de recordação, tal atividade também passou a chamar-se féria, que deu, por atração metatética, feira (o fonema i foi atraído pelo fonema e).

Como era impraticável deixar de trabalhar todos os dias da semana, com exceção da prima feria e da tarde da septima feria, os outros dias puderam ser dedicados ao trabalho, devendo os crentes ir à missa pela madrugada e rezar de manhã, ao meio-dia e à noite. E a pessoa livre ou liberta que trabalhasse por conta de outrem tinha direito a que lhe fosse paga a féria. Porém, a prima feria era totalmente consagrada ao culto divino e ao descanso, passando a designar-se por dies dominicus ou dia do Senhor – o nosso domingo (como em Espanhol, Francês e Italiano), deixando o sétimo dia de o ser, porque no primeiro dia da semana ocorreu a ressurreição de Jesus, o Senhor, e a efusão do Espírito Santo sobre Maria e os apóstolos, o Pentecostes – dias marcantes da nova era. Já na era apostólica, o dia de descanso e de culto especial deixou de ser o sábado e passou a ser o domingo. Contudo, o sétimo dia, não desligado totalmente da tradição judaica, retomou a designação alatinada de sabbatum e era tido como o dia de preparação para o domingo. É, ainda, de notar que também se diz “dominga” (dies dominica), pois dies, diei, em Latim, se designar o dia em abstrato, no singular, ou um dia marcante pelo conteúdo e não circunscrito ao período de 24 horas, era do género feminino. Acresce referir que, em Português, as designações sábado e domingo só foram adotadas no século XIII e as designações cristãs de feria só foram adotadas no seculo XIV, aquando da substituição do calendário juliano pelo calendário gregoriano.

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Férias, vacances, vacaciones, vacanze, holidays, Urlaub são férias, respetivamente em Português, Francês, Espanhol, Italiano, Inglês e Alemão. E, etimologicamente, têm a ver com liberdade, dias festivos de descanso, dias sagrados e santos.

Como de disse, férias – em alemão, Ferien – vem do latim feriae, significando dias libertos de trabalhos, dias festivos, dias de descanso. O termo vacances – em espanhol, vacaciones e, em Italiano, vacanze – tem origem no verbo latino vacare: estar em descanso, ter tempo e vagar. O nome vacatio tem o significado de isenção, graça e dispensa de serviço. Os ingleses em férias estão on holidays (em dias santos). Urlaub tem raiz em erlauben e Erlaubnis, com o primeiro significado de permissão de sair, dada pelo senhor ou pela dama ao cavaleiro – atualmente, com o significado de dias livres, sem serviço e sem trabalho, para o descanso.

Ninguém sabe o que Deus fez, quando o narrador bíblico diz que, depois dos seis dias da criação, descansou. No Evangelho de João, lê-se que Deus trabalha sempre (cf Jo 5,7). Ora, Deus nem descansa nem trabalha, mas está sempre presente a tudo, numa presença radical, pois é força criadora de ser, de modo que, se Se retirasse, tudo regressaria ao nada. E o que a Bíblia quer com a expressão “Deus descansou” (Gn 2,2) é justificar o sábado, consagrado ao Senhor e à liberdade.

Com efeito, o homem tem de trabalhar, mas não pode ser besta de carga. A Babilónia tem outra História da Criação. Mas há uma diferença basilar, quando comparada com o relato bíblico. Em Enuma Elish, os homens são criados para servirem os deuses. Na Bíblia, Deus cria os homens por causa deles e da sua felicidade. É digno de um Deus da liberdade e do amor ter feito um dia por semana para os homens e as mulheres se alegrarem e exultarem com a liberdade e com a festa.

Sobretudo no inverno, muito de manhã – no escuro, com frio, chuva e vento –, dói ver as multidões a entrar em comboios e autocarros ou a sair deles ou ver as baforadas de gente despejadas do Metro nas grandes cidades a correr, deixando um filho aqui e outro ali, para chegar ao trabalho, trabalho, cujo étimo latino é tripalium, tripalii, instrumento de tortura, feito com três paus (tripale), cuja palavra cognata é tripaliare, trabalhar. E à noite, depois do trabalho, que foi tortura, volta-se a casa a rebentar de fadiga, mas com a lida da casa à espera e na ânsia de abraçar a família. No dia seguinte, a mesma coisa. E assim por diante. Agostinho da Silva dizia que “o homem não nasce para trabalhar, mas para criar”. Porém, o homem também trabalha para se realizar como homem: é indo ao mundo que vimos a nós, é transformando-o que nos humanizamos. Mas há o perigo de, pela alienação, não sermos nós. E a existência não se esgota no trabalho produtivo.

Estão os feriados e as férias, que não existem só como intervalos no trabalho para recuperar forças e voltar a trabalhar. Valem por si e têm finalidade em si mesmos, pois o homem é constitutivamente um ser festivo, pelo que é bom que deles frua, sem narcisismo, e viva o milagre de existir. De facto, somos nós e não outros; estamos cá pela primeira e última vez; e nunca houve nem haverá alguém como nós. É preciso ter tempo para a música que nos diz o indizível e nos põe onde é bom existir; e tempos para os amigos e conversas iluminantes e recreadoras, para viagens, para as alegrias simples, para a contemplação, para a cultura e para o culto, para a festa.

Festa tem na sua raiz no adjetivo latino festus a qualificar o nome dies. E, como este tanto podia ser masculino como feminino, conforme o sentido que se lhe desse, tínhamos dies festus ou dies festa. E nominalizou-se em festum (neutro: no plural, festa). Em Português, generalizou-se a festa, mas também se diz dia de festa ou dia festivo. No plural, era sempre dies festi. Assim, as férias tinham o sentido de “dias determinados para as atividades religiosas”. Houve festas e feiras que duravam oito dias. As férias e as festas são para criar, exultar e experienciar “o fascinante esplendor do inútil”, na expressão de George Steiner. Infelizmente, mais de metade da população portuguesa não tem férias e muitas festas são-lhe dadas só no calendário!

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O que se diz das férias diz-se, em certo modo, do feriado. Feriado deriva de féria (dia santificado, dia de descanso). Logo, o feriado era o dia consagrado às obrigações religiosas, em que, ao jeito do sábado (xabbath, dia de descanso e de orações dos judeus) e do domingo (dominicus, dia do Dominus, do Senhor), cessa todo o trabalho e os corações e as mentes votam-se ao sagrado.

Sendo o feriado um dia de descanso, as férias nada mais são do que uma sequência de feriados: embora a palavra férias seja pluralícia, isto é, só se empregue habitualmente no plural, não deixa de ser o plural de féria, assim como o inglês holidays (férias) é plural de holiday, feriado.

O nome féria, que originou derivados, como feriado e ferial (missa ferial, missal ferial), vem do nome latino feria, mais comum no plural feriae (repouso em honra dos deuses). Está etimologicamente ligado a outros como festum, festa (em geral, em louvor aos deuses), festus (versus fastus), festivofas (justiça divina), nefas (violação da lei divina, pecado) e nefastus, nefasto, pecaminoso. Aliás, até a palavra feira vem do latim feria, já que era comum, nas festas populares, a montagem de barracas para venda de objetos de suporte à festa.

A relação dessas palavras com a ideia de divindade encontra-se na raiz indo-europeia *dhēs‑, que significa sagrado, e é a fonte do grego theós (deus), que nos deu palavras como teologia e ateu. Portanto, feira, féria, férias, feriado e festa têm conotação de sagrado. Tanto é assim que boa parte dos feriados são comemorações da Igreja Católica, embora também haja os feriados civis.

Então, comemorem-se os feriados e que as férias sejam de proveito corporal e mental!

2022.06.20 – Louro de Carvalho

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