Vêm aí as férias e, durante o ano, passámos por alguns feriados – alguns
prolongados, outros que dão para fazer ponte, sobre dia útil, de feriado para
domingo ou de domingo para feriado. Talvez não nos tenhamos dado conta de que
tudo remete para o binómio culto/descanso.
Os Romanos começaram a dividir, em definitivo, o tempo em semanas de sete
dias no século II d.C. E, para designar os dias da semana, escolheram astros
que adotaram como deuses ou deusas, com exceção da Terra. Assim, em Latim,
temos: Dies Solis (Dia do Sol), Dies Lunae (Dia da Lua), Dies Martis (Dia de Marte), Dies Mercurii (Dia de Mercúrio), Dies Iouis (Dia de Júpiter), Dies Veneris (Dia de Vénus) e Dies Saturni (Dia de Saturno). Em
Inglês, os dias mantêm-se com o nome day
(dia), antecedido do nome do deus romano ou do deus germânico ou anglo-saxónico
equivalente ao respetivo deus romano. Sunday,
Monday, Tuesday (Tiu, germânico equivalente
a Marte), Wednesday (Woden, anglo-saxónico equivalente a
Mercúrio), Thursday (Thor, germânico equivalente a Júpiter), Friday (Freia, germânica equivalente a Vénus) e Saturday. Em Francês, Italiano e Espanhol, como exceção do primeiro
dia da semana, que, tal como em Português, tem a designação cristã de domingo, dia do Senhor (respetivamente, Dimanche, Domenico e Domingo) e do
último dia da semana, que, tal como em Português, remonta ao xabbath judaico, o nosso sábado
(respetivamente, Samedi, Sabato e Sábado), os outros mantêm as designações romanas. Porém, enquanto o
Espanhol omite o nome dia (Lunes, Martes, Miércoles, Jueves e Viernes), o Francês e o Italiano mantêm-no a seguir ao deus (respetivamente,
Lundi e Lunedi, Mardi e Martedi, Mercredi e Mercoledi, Jeudi e Jiovedi, Vendredi e Venerdi).
No século III, a Igreja católica considerou santos ou santificados todos os
dias da semana, designando cada um por feria
(féria: dia de festa) e o conjunto
deles por feriae (férias), pelo que a semana passou a ser
constituída por prima feria
(primeira-feira), secunda feria
(segunda-feira), tertia feria
(terça-feira), quarta feria
(quarta-feira) quinta feria
(quinta-feira), sexta feria
(sexta-feira) e septima feria
(sétima-feira). Em princípio, todos os dias seriam dedicados a Deus pelo culto
e pelo descanso. Daí vêm os nossos dias de férias ou de descanso. E, se se
trata de um dia destes isolado, chama-se feriado (dies feriatus), dia de descanso e, em termos religiosos, dia santo
ou de culto. Como, em dias de culto ou de festa, no perímetro das celebrações,
se vendiam produtos alimentares, agasalhos e objetos de recordação, tal
atividade também passou a chamar-se féria, que deu, por atração metatética, feira (o fonema i foi atraído pelo fonema
e).
Como era impraticável deixar de trabalhar todos os dias da semana, com
exceção da prima feria e da tarde da septima feria, os outros dias puderam
ser dedicados ao trabalho, devendo os crentes ir à missa pela madrugada e rezar
de manhã, ao meio-dia e à noite. E a pessoa livre ou liberta que trabalhasse
por conta de outrem tinha direito a que lhe fosse paga a féria. Porém, a prima feria era totalmente consagrada ao
culto divino e ao descanso, passando a designar-se por dies dominicus ou dia do Senhor – o nosso domingo (como em
Espanhol, Francês e Italiano), deixando o sétimo dia de o ser, porque no
primeiro dia da semana ocorreu a ressurreição de Jesus, o Senhor, e a efusão do
Espírito Santo sobre Maria e os apóstolos, o Pentecostes – dias marcantes da
nova era. Já na era apostólica, o dia de descanso e de culto especial deixou de
ser o sábado e passou a ser o domingo. Contudo, o sétimo dia, não desligado
totalmente da tradição judaica, retomou a designação alatinada de sabbatum e era tido como o dia de
preparação para o domingo. É, ainda, de notar que também se diz “dominga” (dies dominica), pois dies, diei, em Latim, se designar o dia
em abstrato, no singular, ou um dia marcante pelo conteúdo e não circunscrito
ao período de 24 horas, era do género feminino. Acresce referir que, em
Português, as designações sábado e domingo só foram adotadas no século XIII
e as designações cristãs de feria só
foram adotadas no seculo XIV, aquando da substituição do calendário juliano
pelo calendário gregoriano.
***
Férias, vacances, vacaciones, vacanze, holidays, Urlaub são férias, respetivamente em Português, Francês, Espanhol,
Italiano, Inglês e Alemão. E, etimologicamente, têm a ver com liberdade, dias
festivos de descanso, dias sagrados e santos.
Como de disse, férias
– em alemão, Ferien – vem do latim feriae, significando dias libertos de
trabalhos, dias festivos, dias de descanso. O termo vacances – em espanhol, vacaciones
e, em Italiano, vacanze – tem origem
no verbo latino vacare: estar em
descanso, ter tempo e vagar. O nome vacatio
tem o significado de isenção, graça e dispensa de serviço. Os ingleses em
férias estão on holidays (em dias
santos). Urlaub tem raiz em erlauben e Erlaubnis, com o primeiro significado de permissão de sair, dada
pelo senhor ou pela dama ao cavaleiro – atualmente, com o significado de dias
livres, sem serviço e sem trabalho, para o descanso.
Ninguém sabe o que Deus fez, quando o narrador bíblico
diz que, depois dos seis dias da criação, descansou. No Evangelho de João,
lê-se que Deus trabalha sempre (cf Jo
5,7). Ora, Deus nem descansa nem trabalha, mas está sempre presente a tudo,
numa presença radical, pois é força criadora de ser, de modo que, se Se
retirasse, tudo regressaria ao nada. E o que a Bíblia quer com a expressão
“Deus descansou” (Gn 2,2) é
justificar o sábado, consagrado ao Senhor e à liberdade.
Com efeito, o homem tem de trabalhar, mas não pode ser
besta de carga. A Babilónia tem outra História da Criação. Mas há uma diferença
basilar, quando comparada com o relato bíblico. Em Enuma Elish, os homens são
criados para servirem os deuses. Na Bíblia, Deus cria os homens por causa deles
e da sua felicidade. É digno de um Deus da liberdade e do amor ter feito um dia
por semana para os homens e as mulheres se alegrarem e exultarem com a
liberdade e com a festa.
Sobretudo no inverno, muito de manhã – no escuro, com
frio, chuva e vento –, dói ver as multidões a entrar em comboios e autocarros
ou a sair deles ou ver as baforadas de gente despejadas do Metro nas grandes
cidades a correr, deixando um filho aqui e outro ali, para chegar ao trabalho, trabalho, cujo étimo latino é tripalium, tripalii, instrumento de
tortura, feito com três paus (tripale),
cuja palavra cognata é tripaliare, trabalhar.
E à noite, depois do trabalho, que foi tortura, volta-se a casa a rebentar de
fadiga, mas com a lida da casa à espera e na ânsia de abraçar a família. No dia
seguinte, a mesma coisa. E assim por diante. Agostinho da Silva dizia que “o homem
não nasce para trabalhar, mas para criar”. Porém, o homem também trabalha para se
realizar como homem: é indo ao mundo que vimos a nós, é transformando-o que nos
humanizamos. Mas há o perigo de, pela alienação, não sermos nós. E a existência
não se esgota no trabalho produtivo.
Estão os feriados e as férias, que não existem só como
intervalos no trabalho para recuperar forças e voltar a trabalhar. Valem por si
e têm finalidade em si mesmos, pois o homem é constitutivamente um ser festivo,
pelo que é bom que deles frua, sem narcisismo, e viva o milagre de existir. De
facto, somos nós e não outros; estamos cá pela primeira e última vez; e nunca houve
nem haverá alguém como nós. É preciso ter tempo para a música que nos diz o
indizível e nos põe onde é bom existir; e tempos para os amigos e conversas
iluminantes e recreadoras, para viagens, para as alegrias simples, para a
contemplação, para a cultura e para o culto, para a festa.
Festa tem na sua
raiz no adjetivo latino festus a
qualificar o nome dies. E, como este
tanto podia ser masculino como feminino, conforme o sentido que se lhe desse,
tínhamos dies festus ou dies festa. E nominalizou-se em festum (neutro: no plural, festa). Em Português, generalizou-se a
festa, mas também se diz dia de festa
ou dia festivo. No plural, era sempre
dies festi. Assim, as férias tinham o
sentido de “dias determinados para as atividades religiosas”. Houve festas e
feiras que duravam oito dias. As férias e as festas são para criar, exultar e
experienciar “o fascinante esplendor do inútil”, na expressão de George
Steiner. Infelizmente, mais de metade da população portuguesa não tem férias e
muitas festas são-lhe dadas só no calendário!
***
O que se diz das férias diz-se, em certo modo, do feriado. Feriado
deriva de féria (dia santificado, dia
de descanso). Logo, o feriado era
o dia consagrado às obrigações religiosas, em que, ao jeito do sábado (xabbath,
dia de descanso e de orações dos judeus) e do domingo (dominicus, dia
do Dominus, do Senhor), cessa todo o trabalho e os corações e as mentes
votam-se ao sagrado.
Sendo o
feriado um dia de descanso, as férias nada mais são do que uma sequência de feriados:
embora a palavra férias seja
pluralícia, isto é, só se empregue habitualmente no plural, não deixa de ser o
plural de féria, assim como o
inglês holidays (férias)
é plural de holiday, feriado.
O nome féria, que originou derivados, como
feriado e ferial (missa ferial, missal ferial), vem do nome latino feria,
mais comum no plural feriae (repouso em honra dos deuses). Está
etimologicamente ligado a outros como festum, festa (em geral, em
louvor aos deuses), festus
(versus fastus), festivo,
fas (justiça divina), nefas (violação da lei divina, pecado)
e nefastus, nefasto, pecaminoso. Aliás, até a palavra feira vem do latim feria, já
que era comum, nas festas populares, a montagem de barracas para venda de
objetos de suporte à festa.
A relação dessas
palavras com a ideia de divindade encontra-se na raiz indo-europeia *dhēs‑,
que significa sagrado, e é a fonte do
grego theós (deus), que nos deu palavras como teologia e ateu. Portanto,
feira, féria, férias, feriado e festa têm conotação de sagrado. Tanto é assim que boa parte dos
feriados são comemorações da Igreja Católica, embora também haja os feriados
civis.
Então,
comemorem-se os feriados e que as férias sejam de proveito corporal e mental!
2022.06.20 – Louro de Carvalho
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