Em
dia da solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo, torna-se óbvio que o
primeiro dever da Igreja, enquanto mundo de crentes em Jesus Cristo, é o culto
do memorial da Ceia do Senhor, onde foi instituído o banquete sacrificial que alimenta
os que peregrinam neste mundo a caminho do Pai e que cimenta a unidade dos
crentes a partir de e com a diversidade de culturas, aspirações, dons, qualidades
e serviços. Na verdade, a comunhão do corpo e sangue de Cristo sob as espécies de
pão e de vinho (em cada uma das espécies e em cada uma das suas partículas está
o Cristo total vivo, porque ressuscitado) é o viático (do Latim, uia, ae – caminho) que alimenta os
caminhantes (uiatores), considerados
individualmente e em comunidade. Ainda se ministra o “sagrado viático” (comunhão
com rito que inclui a profissão de fé batismal) aos moribundos para que se
sintam acompanhados por Jesus sacramentado na “viagem” para a eternidade.
Cumprindo
o preceito do Senhor “Fazei isto em memória de Mim”, anunciamos ao mundo a sua morte
e proclamamos a sua ressurreição, enquanto esperamos jubilosamente a sua vinda
no fim dos tempos (cf 1Cor 11,23-26).
Com efeito, a simbólica do pão, dado a comer, e do vinho, dado a beber, fazem-nos
visualizar a cena do Calvário, em que Ele entregou o corpo à cruz e derramou o
sangue até à última gota, para redenção da humanidade. Recorde-se que, nos
sacrifícios, depois de imolada a vítima, era aspergido o povo com o seu sangue;
e da vítima repartida, uma parte era consumida pelos sacerdotes e outra era
desfeita pelo fogo como sinal de oferta a Deus.
Com
o sacrifício de Jesus, faz-se a síntese entre o sacrifício de Melquisedeque,
rei de Salém – cuja origem era desconhecida, mas que era sacerdote do Deus Altíssimo
–, que ofereceu pão e vinho (cf Gn14,18-20),
e o sacrifício de vítimas animais, como era próprio do sacerdócio de Aarão e
dos seus descendentes. Cristo dá aos discípulos pão e vinho, que são, por sua determinação,
o seu corpo e o seu sangue, e entrega-Se na cruz, derramando o sangue em redenção
da humanidade. E é no sangue de Cristo, e não no sangue de touros ou de
cabritos, que está firmada a nova e eterna aliança – o que nos dá o penhor da
glória futura. Por isso, a Eucaristia é o “sagrado banquete em que se recebe
Cristo e se comemora a sua Paixão [ceia, agonia, morte, ressurreição, ascensão],
a alma se enche de graça e nos é dado o penhor da futura glória”. Assim, a missa
é memória, é presentificação e é antecipação do futuro. Tudo isto é motivo para
“eukharistía” (em Grego, ação de graças, agradecimento, gratidão), comunhão (comei e bebei todos) e serviço (fazei).
Portanto,
celebrar esta solenidade sem a participação na celebração eucarística não
combina com o ser cristão, o ser Igreja. O cristão vive da Eucaristia e a
Igreja é profundamente eucarística.
Depois,
como a fé não é individualista, mas pessoal e comunitária, é preciso confessar
e professar publicamente a fé na presença real do Cristo total na Eucaristia,
ou seja, nos elementos a partir dos quais se faz a sua celebração: o pão e o
vinho consagrados pelas mesmas palavras que Jesus, o Cristo (Iêsoûs ho Khristós), pronunciou sobre o
pão e sobre o vinho. Daí a já longa tradição da procissão eucarística por
algumas ruas dos povoados católicos. Não se trata de uma forma de vaidosa ostentação,
mas de profissão pública da fé das pessoas e da comunidade em que todos têm o
mesmo credo. Quem diz: “creio” (em Grego, pistéô;
em Latim, credo), deverá gostar de o
dizer e de o ouvir na comunidade, que não pode ser encerrada nas paredes dum
templo ou no labirinto duma catacumba. E todos dizem: “cremos” (em Grego, pistéomen; em Latim, credimus).
Todavia,
não podemos enclausurar-nos na celebração e na proclamação pública da fé.
O
Evangelho de Lucas (cf Lc 9,11-17)
relata um episódio em que Jesus falava às multidões sobre o reino de Deus. E os
apóstolos, vendo que o dia estava a chegar ao fim, abeiraram-se do Mestre e
recomendaram que mandasse embora a multidão faminta, pois, ali não havia comida
para lhe dar. Isto acontece hoje, quando basta que nos deixem cumprir os deveres
religiosos e até fazer as nossas procissões, tantas vezes sem devoção, mas
porque a tradição tem de continuar a ser o que era. E, não raro, as nossas celebrações
e procissões constituem uma ofensa aos pobres que nós mandamos embora, alegando
que não temos paciência para eles ou que são pobres porque não querem
trabalhar, não se sabem orientar ou porque, alegadamente, estão destinados a
ser pobres.
Ora,
a palavra de ordem de Jesus é: “Dai-lhes vós e comer” (em Grego, Dóte autoîs phageîn hymeîs). Porém, os
discípulos insistem na sua incapacidade: Onde
compraremos pão para tanta gente? Só temos cinco pães e dois peixes…
Enquanto
João diz “opsária” (peixinhos), Lucas, tal como Mateus e Marcos, diz “ikhthýes”
(peixes) ou “ikhthýas” (no acusativo do plural).
Jesus
não está com meias medidas. Recebe o contributo dos discípulos e,
surpreendentemente, manda que façam reclinar à mesa (hataklínô), para comer, toda aquela gente. Depois, faz um gesto eucarístico
semelhante ao que havia de fazer na ceia da véspera da sua morte: “Tendo recebido os pães e os peixes, levantou os olhos
para o céu (gesto de oração), pronunciou a bênção, partiu-os e dava aos discípulos para servirem à multidão” (uns cinco mil
homens).
Todos comeram e foram saciados por Deus (verbo na passiva, como
frisa Dom António Couto).
Os gestos de Jesus faz naquele entardecer são um decalque dos
que fará mais tarde na sala do Cenáculo na última noite da sua vida terrena: “Jesus
recebeu o pão, deu graças, partiu-o e deu-lho (Lc 22,19). A novidade na Ceia é o dizer de Jesus sobre o pão
partido: “Isto é o meu corpo entregue por vós. Fazei isto em memória de mim” (Lc 22,19b). E sobre o vinho: “Este é o
cálice da nova aliança no meu sangue, derramado por vós” (Lc 22,20).
No
Evangelho desta solenidade, Jesus faz, não a multiplicação, mas a divisão e partilha
dos pães e dos peixes. Não se trata de aumentar as quantidades, mas de abrir os
olhos aos discípulos.
Como atesta Dom António Couto, bispo de Lamego e biblista, Jesus
leva até ao fim a lógica do Evangelho, a da medida sem medida do amor de Deus,
que muda radicalmente o nosso modo de pensar e de viver. “Jesus não se
contenta, nem quando nós nos propomos comprar pão para alimentar os outros. Para Jesus não é
compreensível que uns tenham mais, outros menos e outros nada, e que esta
situação se possa amenizar pontualmente. Dar tudo é a medida de Deus e a lógica
do Evangelho.”
Viver eucaristia, viver Igreja, implica solidariedade,
partilha, reconhecimento da abundância e dinamismo de distribuição. Por isso, indiferença
em relação à fome dos outros, os de perto e os de longe, decreto de sanções
económicas, bloqueios à circulação de alimentos são atitudes de quem não se
reconhece no património do cristianismo. Porventura mata mais o bloqueio
alimentar do que a fúria das armas. É a morte em versão mais suave! E fazer
procissões ostensivas e alimentar a guerra é ultrajar a pobreza e os pobres. E
Cristo não quer isto, mas que vivamos.
Por consequência, os discípulos que o Senhor fez apóstolos e irmãos
– ontem, hoje e amanhã –, têm de ser fermento de discipulado e de apostolado
para que todos sejamos verdadeiros irmãos, discípulos e apóstolos, capazes de
virar o mundo do modo que Deus quer. E está muito por fazer!
2022.06.16 – Louro de Carvalho
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