quarta-feira, 29 de junho de 2022

Ministra da Saúde assume responsabilidade pelo que falha no SNS

 

 

Na audição perante os deputados da Comissão de Saúde, Marta Temido assumiu, neste dia 29 de junho, a responsabilidade política por “tudo o que falha” no Serviço Nacional de Saúde (SNS), do que pediu desculpa, e anunciou que o novo estatuto do SNS seria aprovado na semana de 4 a 8 de julho, em Conselho de Ministros, esperando resolver algumas dificuldades com a contratação direta de médicos e lembrando que deve deixar melhores condições do que as que encontrou.

A ministra da Saúde respondeu a críticas dos deputados sobre a gestão do SNS, a saída de especialistas, o encerramento de serviços de urgência de obstetrícia e ginecologia, a falta de médicos de famílias e a falta de recursos humanos nos hospitais. Especificou, a título de exemplo, aspetos da sua responsabilidade: telefonemas por fazer, casas de banho que não funcionam, ares condicionados inoperacionais, pessoas que estão à espera, contactos que ficam feitos, por vezes, com rudeza e ausência de falas. E, mais do que pedir desculpa, disse dever deixar a outros ministros da Saúde um melhor contexto e melhores condições, o que se faz com reformas, com medidas, com políticas, como disse acreditar que “a direção executiva do SNS não é um lugar a mais”.

Sustentou que essa direção executiva será um lugar difícil e pesado e “um lugar que permitirá que as respostas dos serviços funcionem mais integradamente e haja uma maior visão de conjunto”. Competir-lhe-á, sem prejuízo da autonomia das entidades, coordenar a resposta assistencial das unidades que integram o SNS, assegurar funcionamento em rede e proceder à sua avaliação.

Sobre a carência de recursos humanos, frisou o aumento do número de profissionais. Em 2015, no início da legislatura, o SNS tinha 119.000 profissionais, hoje tem cerca de 151.000. Lembrou a abertura de um concurso para a contratação de mais 1.639 médicos recém-especialistas.

Este número de vagas é superior ao número de recém-especialistas (1.020), porque há a perceção de que é preciso “atrair para o sistema mais profissionais de saúde do que apenas” os que acabaram a formação. E recordou que ficaram por preencher 50 vagas para acesso à especialidade, um problema complexo, cuja resposta é também complexa.

Marta Temido vincou o esforço feito em termos salariais: 2.779 euros é o vencimento que recebe um recém-especialista depois de colocado e 1.111 euros é o valor do incentivo que já estava atribuído e que tinha melhorado. E, quanto a médicos de Medicina Geral e Familiar, o Orçamento de Estado estabeleceu um adicional de 60%, o que corresponde a cerca de mais 1.600 euros.

Do Novo Estatuto do SNS disse ter soluções estratégicas, visão em termos de recursos humanos com a autonomia das contratações, com incentivos aos profissionais e com pactos de permanência, pois é “essencial continuar a aperfeiçoar a política de reforço dos recursos humanos da saúde”.

Frisando que “o SNS enfrenta problemas na organização da sua resposta”, sobretudo na retenção, organização do trabalho e motivação dos profissionais que se traduzem nas dificuldades de acesso com que os utentes se confrontam e que os últimos dias têm demonstrado, disse que a atribuição de equipas de saúde familiar aos residentes permanece “a primeira prioridade setorial”.

Revelou que, após a abertura, a 15 de junho, de 4.302 vagas para contratação de médicos de família e depois de o Governo ter assumido que dessas 67 eram carenciadas, auferindo mais 40% de vencimento, no dia 28, foi aprovado o despacho que identifica as 239 vagas em unidades de cuidados de saúde personalizados, cuja taxa de cobertura, inferior à média nacional, será compensada com mais 60% de remuneração no caso dos profissionais que aceitem nelas trabalhar.

Além disso, referiu que o programa do Governo, a Lei do Orçamento de Estado, o novo estatuto do SNS e o Programa de Recuperação e Resiliência (PRR) “são claros nos compromissos” assumidos para com estes profissionais de saúde.

Apontou o regime de plena dedicação, a valorização das carreiras de enfermagem, designadamente pela reposição dos pontos perdidos aquando da entrada em vigor da nova carreira e os investimentos na transição digital da saúde, no valor de 300 milhões euros.

Adiantou que o programa de trabalho que se retoma envolve um terceiro eixo central: o Programa de Gestão Estratégica dos Recursos Humanos do SNS, com três eixos: consolidar o sistema das profissões de saúde, promover o desenvolvimento de competências dos profissionais do SNS e melhorar os ambientes de trabalho.

Anunciando aumentos de resposta em todas as linhas, designadamente nos rastreios oncológicos, frisou que o rastreio ao cancro da mama é realidade em todos agrupamentos de centros de saúde (ACES) da região de Lisboa e Vale do Tejo – necessidade estrutural que foi “ultrapassada”.

A governante reconheceu que os concursos para médicos especialistas não respondem a todas as necessidades, pelo que o Governo espera responder a algumas através da contratação direta. E apresentou, como uma das apostas do governo, a dedicação plena dos médicos ao SNS.

Questionada sobre o facto de os hospitais não terem autonomia para preencher vagas de quadro vazias e de mais de metade dos médicos de saúde pública estarem no setor privado, Marta Temido respondeu que, mesmo que o Governo conseguisse captar todos os especialistas formados no país, o SNS continuaria com dificuldades de resposta em algumas áreas, até porque muitos profissionais, mercê da idade, não são obrigados a fazer urgências. E garantiu o empenho do governo na dedicação plena, de modo a cativar os profissionais para o SNS, apontando para maior autonomia dos hospitais e ACES, designadamente para contratação.

Em resposta às críticas dos deputados sobre consultas de Medicina Geral e Familiar, que exibiram 1,4 milhões de portugueses sem médico de família, Marta Temido alegou que “os utentes que não têm médico de família têm acesso a consultas de medicina geral e familiar no SNS” e especificou que, em 2021, as consultas para utentes sem médico de família no SNS foram 4 milhões e, até maio de 2022, foram 1.700.000. Destas, 1 milhão foi na região de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo.

Segundo os dados avançados pela governante, foram realizadas mais 1,2 milhões de consultas médicas, mais 193 mil consultas de enfermagem e mais 78 mil consultas de outros técnicos de saúde, nos cuidados de saúde primários, bem como mais 112 mil consultas e 23 mil cirurgias nos hospitais. E, no âmbito do regime excecional de incentivos à recuperação da atividade assistencial, no verão de 2020, ano do início da pandemia, foram realizadas 142 mil consultas e 70 mil cirurgias em produção adicional no SNS, com incentivos de 74 milhões de euros aos seus profissionais.

A ministra destacou o aumento de cobertura dos rastreios oncológicos, com o número de mulheres rastreadas ao cancro da mama a crescer 13% e 16% no rastreio do cancro do colo do útero, bem como o número de rastreios de cancros do cólon e do reto, que aumentou 4%, salientando o crescimento de 32% do número de operados em cirurgia oncológica em abril de 2002 face a 2019.

Questionada sobre o processo de descentralização de competências para os municípios na saúde, adiantou que, até ao dia 27, já 49 municípios já tinham os autos de transferência homologados.

Quanto à mortalidade materna, desde 2014 a 2019, a ministra observou que os números devem ser analisados “numa lógica de séries temporais de cinco a 10 anos” e que a comissão de saúde materna fará a avaliação até ao fim do ano, embora todo o óbito seja fator de consternação e solidariedade.

Sobre os problemas nas urgências de ginecologia e obstetrícia, Marta Temido reconheceu: “Sabendo-se que havia momentos deste verão em que era difícil garantir o funcionamento de todos os serviços, poder-se-ia ter tomado logo a iniciativa de garantir o funcionamento articulado”, o que passa a acontecer com a criação da predita direção executiva no SNS. E lembrou que a revisão da rede de referenciação materna e infantil fora terminada em 2017 e que os trabalhos envolviam duas vertentes: área materna e área infantil. Considerou que “a revisão das redes referenciação hospitalar é um dos pontos da estratégia de reforma da área hospitalar e faz parte dos compromissos assumidos no contexto do PRR”. E vincou que o objetivo é determinar o melhor funcionamento em rede e os pontos que, em condições de segurança, é preciso implementar, pois é necessário garantir “que equipamentos e infraestruturas estão disponíveis nesses pontos de rede”.

Interpelada sobre se pretende acabar com as Administrações Regionais de Saúde (ARS), Temido lembrou a descentralização de competências na área da saúde para os municípios, cujo calendário assumiu que tinha sido posto em causa pela resposta à pandemia. E, vincando que “é um processo cuja estabilização é essencial antes de equacionar outros passos”, disse que, em contexto de reforma, fará sentido reservar as ARS para uma função que não a prestação de cuidados, dando mais autonomia aos ACES, mas progressivamente, para evitar interrupções na prestação cuidados.

***

O cancro do SNS é não haver profissionais de saúde suficientes em dedicação exclusiva, a par dos “exclusivos” que prestam um mínimo de serviço no SNS e vão a correr para o setor privado. Aliás, quem não está em exclusividade deve cumprir o horário estabelecido e desempenhar todas as suas funções compatíveis com esse horário, sem sugerir ou insinuar o recurso ao setor privado. O recurso a prestadores de serviços, que devem pautar-se pelo sentido do serviço à vida e à saúde, deve ser excecional e não apoucar, em estatuto remuneratório, os profissionais em exclusividade.

Ter profissionais de saúde no SNS implica oferecer-lhes uma carreira apetecível, nomeadamente em termos remuneratórios, de progressão e promoção e de proteção social, dotar os serviços de equipamentos necessários e adequados e promover uma gestão responsável e que funcione em rede. Implica também, mesmo que ao arrepio das ordens profissionais, promover a formação de especialistas suficientes em cada área, tendo em conta as necessidades de médio e longo prazos. E, em situações excecionais, passará pela mobilização do setor privado para a prestação de um serviço público (de que é complementar), a nível de pessoal e de equipamentos, justamente remunerada, mas sem especulação ou esquemas de driblagem do setor público.

Por fim, refiro que não me escandalizaria, se o Estado, uma vez que a formação médica é quase exclusivamente da responsabilidade de instituições do ensino superior públicas, determinasse um período razoável de tempo em que os diplomados fossem obrigados a trabalhar no SNS. Salus Reipublicae lex suprema esto. Por isso, Estado que se preze terá um SNS decente e robusto. 

2022.06.29 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário