Na audição perante os deputados da Comissão de Saúde, Marta Temido assumiu,
neste dia 29 de junho, a responsabilidade política por “tudo o que falha” no Serviço
Nacional de Saúde (SNS), do que pediu desculpa, e anunciou que o novo estatuto do
SNS seria aprovado na semana de 4 a 8 de julho, em Conselho de Ministros, esperando
resolver algumas dificuldades com a contratação direta de médicos e lembrando
que deve deixar
melhores condições do que as que encontrou.
A ministra da Saúde respondeu a críticas dos deputados sobre a gestão do SNS,
a saída de especialistas, o encerramento de serviços de urgência de obstetrícia
e ginecologia, a falta de médicos de famílias e a falta de recursos humanos nos
hospitais. Especificou, a título de exemplo, aspetos da sua
responsabilidade:
telefonemas por fazer, casas de banho que não funcionam, ares condicionados
inoperacionais, pessoas que estão à espera, contactos que ficam feitos, por
vezes, com rudeza e ausência de falas. E, mais do que pedir desculpa, disse dever deixar
a outros ministros da Saúde um melhor contexto e melhores condições, o que se
faz com reformas, com medidas, com políticas, como disse acreditar que “a
direção executiva do SNS não é um lugar a mais”.
Sustentou que essa direção
executiva será um lugar difícil e pesado e “um lugar que permitirá que as
respostas dos serviços funcionem mais integradamente e haja uma maior visão de
conjunto”. Competir-lhe-á, sem prejuízo da
autonomia das entidades, coordenar a resposta assistencial das unidades que
integram o SNS, assegurar funcionamento em rede e proceder à sua avaliação.
Sobre a carência de recursos humanos, frisou o aumento do número de profissionais. Em 2015, no início da
legislatura, o SNS tinha 119.000 profissionais, hoje tem cerca de 151.000. Lembrou
a abertura de um concurso para a contratação de mais 1.639 médicos
recém-especialistas.
Este número de vagas é superior ao número de recém-especialistas (1.020),
porque há a perceção de que é preciso “atrair para o sistema mais profissionais
de saúde do que apenas” os que acabaram a formação. E recordou que ficaram por preencher 50 vagas para acesso à
especialidade, um problema complexo, cuja resposta é também complexa.
Marta Temido vincou o esforço feito em termos salariais: 2.779 euros é o vencimento que recebe um
recém-especialista depois de colocado e 1.111 euros é o valor do incentivo que
já estava atribuído e que tinha melhorado. E, quanto a médicos de Medicina Geral e Familiar, o
Orçamento de Estado estabeleceu um adicional de 60%, o que corresponde a cerca
de mais 1.600 euros.
Do Novo Estatuto do SNS disse ter
soluções estratégicas, visão em termos de recursos humanos com a autonomia das
contratações, com incentivos aos profissionais e com pactos de permanência,
pois é “essencial
continuar a aperfeiçoar a política de reforço dos recursos humanos da saúde”.
Frisando que “o
SNS enfrenta problemas na organização da sua resposta”, sobretudo na retenção,
organização do trabalho e motivação dos profissionais que se traduzem nas
dificuldades de acesso com que os utentes se confrontam e que os últimos dias
têm demonstrado, disse que a atribuição de equipas de
saúde familiar aos residentes permanece “a primeira prioridade setorial”.
Revelou que, após a abertura, a 15 de junho, de 4.302 vagas para
contratação de médicos de família e depois de o Governo ter assumido que dessas
67 eram carenciadas, auferindo mais 40% de vencimento, no dia 28, foi aprovado
o despacho que identifica as 239 vagas em unidades de cuidados de saúde
personalizados, cuja taxa de cobertura, inferior à média nacional, será compensada
com mais 60% de remuneração no caso dos profissionais que aceitem nelas
trabalhar.
Além disso, referiu que o programa do Governo, a Lei do Orçamento de
Estado, o novo estatuto do SNS e o Programa de Recuperação e Resiliência (PRR) “são
claros nos compromissos” assumidos para com estes profissionais de saúde.
Apontou o regime de plena dedicação, a valorização das carreiras de enfermagem,
designadamente pela reposição dos pontos perdidos aquando da entrada em vigor
da nova carreira e os investimentos na transição digital da saúde, no valor de
300 milhões euros.
Adiantou que o programa de trabalho que se retoma envolve um terceiro eixo
central: o Programa de Gestão Estratégica dos Recursos Humanos do SNS, com três
eixos: consolidar o sistema das profissões de saúde, promover o desenvolvimento
de competências dos profissionais do SNS e melhorar os ambientes de trabalho.
Anunciando aumentos de resposta em todas as
linhas, designadamente nos rastreios oncológicos, frisou que o rastreio ao cancro da mama é
realidade em todos agrupamentos de centros de saúde (ACES) da região de Lisboa
e Vale do Tejo – necessidade estrutural que foi “ultrapassada”.
A governante reconheceu que os concursos para médicos especialistas não respondem
a todas as necessidades, pelo que o Governo espera responder a algumas através
da contratação direta. E apresentou, como uma das apostas do governo, a dedicação plena dos médicos ao SNS.
Questionada sobre o facto de os hospitais não terem autonomia para preencher
vagas de quadro vazias e de mais de metade dos médicos de saúde pública estarem
no setor privado, Marta Temido respondeu que, mesmo que o Governo conseguisse
captar todos os especialistas formados no país, o SNS continuaria com
dificuldades de resposta em algumas áreas, até porque muitos profissionais, mercê
da idade, não são obrigados a fazer urgências. E garantiu o empenho do governo
na dedicação plena, de modo a cativar os profissionais para o SNS, apontando
para maior autonomia dos hospitais e ACES, designadamente para contratação.
Em resposta às críticas dos deputados sobre consultas de Medicina Geral e
Familiar, que exibiram 1,4 milhões de portugueses sem médico de família, Marta
Temido alegou que “os utentes que não têm médico de família têm acesso a
consultas de medicina geral e familiar no SNS” e especificou que, em 2021, as consultas para utentes sem médico de
família no SNS foram 4 milhões e, até maio de 2022, foram 1.700.000. Destas, 1
milhão foi na região de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo.
Segundo os dados avançados pela governante, foram realizadas mais 1,2
milhões de consultas médicas, mais 193 mil consultas de enfermagem e mais 78
mil consultas de outros técnicos de saúde, nos cuidados de saúde primários, bem
como mais 112 mil consultas e 23 mil cirurgias nos hospitais. E, no âmbito do regime excecional de incentivos
à recuperação da atividade assistencial, no verão de 2020, ano do início da
pandemia, foram realizadas 142 mil consultas e 70 mil cirurgias em produção
adicional no SNS, com incentivos de 74 milhões de euros aos seus profissionais.
A ministra destacou o aumento de cobertura dos rastreios oncológicos, com o
número de mulheres rastreadas ao cancro da mama a crescer 13% e 16% no rastreio
do cancro do colo do útero, bem como o
número de
rastreios de cancros do cólon e do reto, que aumentou 4%, salientando o
crescimento de 32% do número de operados em cirurgia oncológica em abril de
2002 face a 2019.
Questionada sobre o processo de descentralização de competências para os
municípios na saúde, adiantou que, até ao dia 27, já 49 municípios já tinham os
autos de transferência homologados.
Quanto à mortalidade materna, desde 2014 a 2019, a ministra observou que os
números devem ser analisados “numa lógica de séries temporais de cinco a 10
anos” e que a comissão de saúde materna fará a avaliação até ao fim do ano,
embora todo o óbito seja
fator de consternação e solidariedade.
Sobre os problemas nas urgências de ginecologia e obstetrícia, Marta Temido
reconheceu: “Sabendo-se que havia momentos deste verão em que era difícil
garantir o funcionamento de todos os serviços, poder-se-ia ter tomado logo a
iniciativa de garantir o funcionamento articulado”, o que passa a acontecer com
a criação da predita direção executiva no SNS. E lembrou que a revisão da rede de referenciação materna e infantil fora terminada
em 2017 e que os trabalhos envolviam duas vertentes: área materna e área
infantil. Considerou
que “a revisão das
redes referenciação hospitalar é um dos pontos da estratégia de reforma da área
hospitalar e faz parte dos compromissos assumidos no contexto do PRR”. E vincou que o objetivo é determinar o
melhor funcionamento em rede e os pontos que, em condições de segurança, é
preciso implementar, pois é necessário garantir “que equipamentos e
infraestruturas estão disponíveis nesses pontos de rede”.
Interpelada sobre se pretende acabar com as Administrações Regionais de Saúde
(ARS), Temido lembrou a descentralização de competências na área da saúde para
os municípios, cujo calendário assumiu que tinha sido posto em causa pela
resposta à pandemia. E, vincando que “é um processo cuja estabilização
é essencial antes de equacionar outros passos”, disse que, em contexto de
reforma, fará sentido reservar as ARS para uma função que não a prestação de
cuidados, dando mais autonomia aos ACES, mas progressivamente, para evitar interrupções
na prestação cuidados.
***
O
cancro do SNS é não haver profissionais de saúde suficientes em dedicação
exclusiva, a par dos “exclusivos” que prestam um mínimo de serviço no SNS e vão
a correr para o setor privado. Aliás, quem não está em exclusividade deve
cumprir o horário estabelecido e desempenhar todas as suas funções compatíveis
com esse horário, sem sugerir ou insinuar o recurso ao setor privado. O recurso
a prestadores de serviços, que devem pautar-se pelo sentido do serviço à vida e
à saúde, deve ser excecional e não apoucar, em estatuto remuneratório, os
profissionais em exclusividade.
Ter
profissionais de saúde no SNS implica oferecer-lhes uma carreira apetecível,
nomeadamente em termos remuneratórios, de progressão e promoção e de proteção
social, dotar os serviços de equipamentos necessários e adequados e promover
uma gestão responsável e que funcione em rede. Implica também, mesmo que ao
arrepio das ordens profissionais, promover a formação de especialistas
suficientes em cada área, tendo em conta as necessidades de médio e longo prazos.
E, em situações excecionais, passará pela mobilização do setor privado para a
prestação de um serviço público (de que é complementar), a nível de pessoal e
de equipamentos, justamente remunerada, mas sem especulação ou esquemas de driblagem
do setor público.
Por
fim, refiro que não me escandalizaria, se o Estado, uma vez que a formação
médica é quase exclusivamente da responsabilidade de instituições do ensino
superior públicas, determinasse um período razoável de tempo em que os
diplomados fossem obrigados a trabalhar no SNS. Salus Reipublicae lex suprema esto. Por isso, Estado que se preze
terá um SNS decente e robusto.
2022.06.29 – Louro de Carvalho
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