É
o repto que Frei Bento Domingues lança aos crentes, na crónica dominical do Público do dia 5 de junho, a propósito
da celebração da solenidade do Pentecostes, em que se fecha o ciclo litúrgico
anual da Páscoa, ficando-nos a Páscoa semanal, no domingo, e a Páscoa diária,
na missa. E fá-lo a propósito do apoio de Cirilo I, o Patriarca de Moscovo e de
todas as Rússias (ou seja, o chefe de uma das maiores Igrejas Ortodoxas), à
invasão da Ucrânia pelas forças armadas da Rússia.
É
claro que o Espírito de Cristo é o que dá a verdade, a sabedoria, a liberdade, a
paz, o reto conhecimento, a piedade (nas componentes do amor e da compaixão
efetiva), a união fraterna. Ao mesmo tempo, é o propulsor da fraternidade em
Cristo, pois ninguém pode chamar pai a Deus se o Espírito Santo não o mover a
isso, como ninguém pode dizer que o Senhor é Jesus se o Espírito da Verdade o
não provocar. Talvez seja oportuno revisitar os clássicos sete dons do Espírito
Santo, que, pelo simbolismo do número sete, significam todo o dom de Deus, bem
como a listagem dos frutos do Espírito, tão diferentes dos da carne e a eles
opostos.
Saber de que Espírito somos é a provocação que o
Pentecostes, na abundância dos dons do Espírito Santo, lança aos trabalhadores
da Cúria Romana para quem entra em vigor, neste dia 5 de junho, a Constituição
Apostólica “Praedicate evangelium”, de 19 de março de 2022, sobre a Cúria
Romana, conferindo-lhe uma estrutura mais
missionária para que ela esteja cada vez mais a serviço das Igrejas
particulares e da evangelização.
Saber de que Espírito somos é a preocupação que
tiveram e têm tantos arautos da paz e da liberdade que Deus quer para todos os
seres humanos e para todos os povos, parâmetros que são assaz esquecidos na
família, no grupo, na economia, na sociedade, na política e na Igreja, que tantas
vezes se deixa vergar sob o peso da estrutura, da acomodação ou da sede de protagonismo.
Bento
Domingues menciona o espírito que animou o Padre espiritano Joaquim Alves Correia, nascido em Aguiar de
Sousa, concelho de Paredes, da diocese do Porto, a 5 de maio de 1886 e faleceu
em Pittsburgh, nos Estados Unidos da América, a 1 de junho de 1951.
Alves Correia foi um sacerdote católico e resistente antifascista, que se
ordenou de presbítero em Chevilly, França, a 28 de outubro de 1910. Distinguiu-se pela sua mentalidade
progressista em relação à emancipação política das colónias portuguesas e
das populações coloniais, muito longe do paternalismo e segregacionismo
salazaristas. Opôs-se também a toda a forma de totalitarismo, de direita e
de esquerda, integrando o MUD (Movimento de Unidade Democrática), em 1945.
A sua frontalidade desassombrada valeu-lhe, pouco depois da publicação do
artigo “O Mal e a Caramunha”, sobre a “Noite Sangrenta” de 1921, para evitar um
processo judicial, o exílio nos Estados Unidos da América, onde faleceu.
Juntamente
com o padre Abel Varzim e o bispo do Porto D. António Ferreira Gomes, foi
um dos maiores nomes da oposição católica ao Estado Novo em Portugal, a que se
juntam bastantes mais sempre de Evangelho nas mãos, sem esquecer D. Sebastião Soares
de Resende (bispo da Beira) e D. Manuel Vieira Pinto, bispo de Nampula, que foi
chamado à então Metrópole pelo governo de Marcelo Caetano, poucos dias antes da
revolução abrilina, mas voltando, depois, para Nampula.
Porém, o Espírito
de que somos tem margem de presença e de atuação em todos os lugares e sempre,
ainda que não nos deparemos com a necessidade de fazer oposição. A este
respeito, é de reler a homilia que o Papa Francisco proferiu na missa da
solenidade, bem como a alocução prévia à recitação da oração crístico-mariana do
Regina Coeli.
Comentando que
Ele nos ensinará tudo, Francisco adverte que não se trata de fazer de nós enciclopédias
ambulantes, mas de nos fazer ver por onde começar, que rotas seguir e como
caminhar, ou seja, que estilo de vida devemos assumir.
E, referindo
que Ele nos recordará tudo quanto Jesus fez e ensinou, conclui que o Espírito
Santo é memória de Deus, memória ativa, que nos torna proativos.
Mas o
Espírito, que provisoriamente pode suscitar a confusão de línguas e a multiplicidade
de pontos de vista ou de atitudes, quer ardentemente a unidade, a união de
todos, num regime de fraternidade afetiva e efetiva, de olhos voltados para o
Alto, mas com pés de peregrinos e mãos solidárias na Terra, de que somos administradores
e promotores da produção abundante de bens e sua equitativa distribuição por todos.
Da aludida alocução
prévia ao Regina Coeli, apraz-me
destacar a referência que o Pontífice fez ao verbo “recordar”, explanando que, nos
fixamos apenas no ensino, “corremos o risco de fazer da fé uma peça de museu”,
mas que o Espírito a coloca em sintonia com os tempos e a incultura nos diversos
lugares, na perspetiva da encarnação nas culturas que serve em que deve ser
professada e praticada. E fá-lo precisamente através da memória.
Assim, o Papa
fixa-se no verbo “recordar”, do Latim “recordari” (do prefixo “re”, com o
sentido de volta, regresso; o nome “cor, cordis”, coração; e os convenientes morfemas
da flexão verbal), a significar “trazer de volta ao coração”. Por isso, “recordar”
será trazer de volta ao coração, como sucedeu com os apóstolos. Eles ouviram
Jesus falar tantas vezes, mas, com o Pentecostes passaram de um conhecimento
exterior a uma relação viva, convicta e alegre com o Senhor.
“É o Espírito
que faz isso, fazendo passar do ‘ouvir dizer’ ao conhecimento pessoal de Jesus,
que entra no coração” – diz o Papa.
Com efeito,
se nos ativermos ao trazer de volta à mente o que ensinou o Senhor, seremos bons
pensadores, ilustres teólogos, mestres na verdade especulativa, mas não seremos
possuídos pelo Espírito, dom de Deus.
Ao invés, se assumirmos
a volta do ensinamento do Senhor ao coração, seremos movidos, não pela superabundância
da erudição ou pelo ónus da azáfama, mas possuídos pela força do Alto que nos
faz saborear o que aprendemos com o Espírito de Deus que transforma o caos em
cosmos, nos faz discípulos, nos converte em apóstolos e nos coloca em saída alegre
e decidida para a missão, a começar pelo terreno que pisamos, pelo ambiente que
já conhecemos, porém, sem fronteiras ou limites.
***
E que devemos
reter e ensinar para que robusteçamos a nossa fé e levemos os outros a crerem? Em
primeiro lugar, a pessoa de Cristo, pois, sem esta pessoa, o que ensinamos não
tem substrato e pode soar a vazio ou a hipocrisia. Depois, a doutrina. De facto,
Jesus não se fixou por generalidades na sua mestria, antes, enunciou e explanou
conteúdos em linguagem bem acessível, embora dura, por vezes. E ensinou postura,
atitudes, procedimentos e comportamentos que enquadram um verdadeiro estilo de
vida de irmãos de todos. Por último, mandou fazer o que Ele fez e como Ele fez:
amar servindo. Tudo isto a proclamar aos quatro ventos, mesmo que tenha de ser
por cima dos telhados, em todos os tempos e lugares, arriscando a vida se for
preciso.
Enfim, o Espírito
de que somos é de inclusão, contrário a qualquer tipo de exclusão ou banimento,
a não ser o do mal.
Resta saber
se é este o Espírito que nos move ou se o tentamos anular ou limitar e moldar segundo
as nossas bitolas – ibéricas ou outras bem piores.
2022.06.05 – Louro de Carvalho
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