domingo, 5 de junho de 2022

Na solenidade do Pentecostes urge saber “de que Espírito somos”

 

É o repto que Frei Bento Domingues lança aos crentes, na crónica dominical do Público do dia 5 de junho, a propósito da celebração da solenidade do Pentecostes, em que se fecha o ciclo litúrgico anual da Páscoa, ficando-nos a Páscoa semanal, no domingo, e a Páscoa diária, na missa. E fá-lo a propósito do apoio de Cirilo I, o Patriarca de Moscovo e de todas as Rússias (ou seja, o chefe de uma das maiores Igrejas Ortodoxas), à invasão da Ucrânia pelas forças armadas da Rússia.

É claro que o Espírito de Cristo é o que dá a verdade, a sabedoria, a liberdade, a paz, o reto conhecimento, a piedade (nas componentes do amor e da compaixão efetiva), a união fraterna. Ao mesmo tempo, é o propulsor da fraternidade em Cristo, pois ninguém pode chamar pai a Deus se o Espírito Santo não o mover a isso, como ninguém pode dizer que o Senhor é Jesus se o Espírito da Verdade o não provocar. Talvez seja oportuno revisitar os clássicos sete dons do Espírito Santo, que, pelo simbolismo do número sete, significam todo o dom de Deus, bem como a listagem dos frutos do Espírito, tão diferentes dos da carne e a eles opostos.   

Saber de que Espírito somos é a provocação que o Pentecostes, na abundância dos dons do Espírito Santo, lança aos trabalhadores da Cúria Romana para quem entra em vigor, neste dia 5 de junho, a Constituição Apostólica “Praedicate evangelium”, de 19 de março de 2022, sobre a Cúria Romana, conferindo-lhe uma estrutura mais missionária para que ela esteja cada vez mais a serviço das Igrejas particulares e da evangelização.

Saber de que Espírito somos é a preocupação que tiveram e têm tantos arautos da paz e da liberdade que Deus quer para todos os seres humanos e para todos os povos, parâmetros que são assaz esquecidos na família, no grupo, na economia, na sociedade, na política e na Igreja, que tantas vezes se deixa vergar sob o peso da estrutura, da acomodação ou da sede de protagonismo.

Bento Domingues menciona o espírito que animou o Padre espiritano Joaquim Alves Correia, nascido em Aguiar de Sousa, concelho de Paredes, da diocese do Porto, a 5 de maio de 1886 e faleceu em Pittsburgh, nos Estados Unidos da América, a 1 de junho de 1951.

Alves Correia foi um sacerdote católico e resistente antifascista, que se ordenou de presbítero em Chevilly, França, a 28 de outubro de 1910. Distinguiu-se pela sua mentalidade progressista em relação à emancipação política das colónias portuguesas e das populações coloniais, muito longe do paternalismo e segregacionismo salazaristas. Opôs-se também a toda a forma de totalitarismo, de direita e de esquerda, integrando o MUD (Movimento de Unidade Democrática), em 1945. A sua frontalidade desassombrada valeu-lhe, pouco depois da publicação do artigo “O Mal e a Caramunha”, sobre a “Noite Sangrenta” de 1921, para evitar um processo judicial, o exílio nos Estados Unidos da América, onde faleceu.

Juntamente com o padre Abel Varzim e o bispo do Porto D. António Ferreira Gomes, foi um dos maiores nomes da oposição católica ao Estado Novo em Portugal, a que se juntam bastantes mais sempre de Evangelho nas mãos, sem esquecer D. Sebastião Soares de Resende (bispo da Beira) e D. Manuel Vieira Pinto, bispo de Nampula, que foi chamado à então Metrópole pelo governo de Marcelo Caetano, poucos dias antes da revolução abrilina, mas voltando, depois, para Nampula.

Porém, o Espírito de que somos tem margem de presença e de atuação em todos os lugares e sempre, ainda que não nos deparemos com a necessidade de fazer oposição. A este respeito, é de reler a homilia que o Papa Francisco proferiu na missa da solenidade, bem como a alocução prévia à recitação da oração crístico-mariana do Regina Coeli.

Comentando que Ele nos ensinará tudo, Francisco adverte que não se trata de fazer de nós enciclopédias ambulantes, mas de nos fazer ver por onde começar, que rotas seguir e como caminhar, ou seja, que estilo de vida devemos assumir.

E, referindo que Ele nos recordará tudo quanto Jesus fez e ensinou, conclui que o Espírito Santo é memória de Deus, memória ativa, que nos torna proativos.

Mas o Espírito, que provisoriamente pode suscitar a confusão de línguas e a multiplicidade de pontos de vista ou de atitudes, quer ardentemente a unidade, a união de todos, num regime de fraternidade afetiva e efetiva, de olhos voltados para o Alto, mas com pés de peregrinos e mãos solidárias na Terra, de que somos administradores e promotores da produção abundante de bens e sua equitativa distribuição por todos.  

Da aludida alocução prévia ao Regina Coeli, apraz-me destacar a referência que o Pontífice fez ao verbo “recordar”, explanando que, nos fixamos apenas no ensino, “corremos o risco de fazer da fé uma peça de museu”, mas que o Espírito a coloca em sintonia com os tempos e a incultura nos diversos lugares, na perspetiva da encarnação nas culturas que serve em que deve ser professada e praticada. E fá-lo precisamente através da memória.

Assim, o Papa fixa-se no verbo “recordar”, do Latim “recordari” (do prefixo “re”, com o sentido de volta, regresso; o nome “cor, cordis”, coração; e os convenientes morfemas da flexão verbal), a significar “trazer de volta ao coração”. Por isso, “recordar” será trazer de volta ao coração, como sucedeu com os apóstolos. Eles ouviram Jesus falar tantas vezes, mas, com o Pentecostes passaram de um conhecimento exterior a uma relação viva, convicta e alegre com o Senhor.

“É o Espírito que faz isso, fazendo passar do ‘ouvir dizer’ ao conhecimento pessoal de Jesus, que entra no coração” – diz o Papa.

Com efeito, se nos ativermos ao trazer de volta à mente o que ensinou o Senhor, seremos bons pensadores, ilustres teólogos, mestres na verdade especulativa, mas não seremos possuídos pelo Espírito, dom de Deus.

Ao invés, se assumirmos a volta do ensinamento do Senhor ao coração, seremos movidos, não pela superabundância da erudição ou pelo ónus da azáfama, mas possuídos pela força do Alto que nos faz saborear o que aprendemos com o Espírito de Deus que transforma o caos em cosmos, nos faz discípulos, nos converte em apóstolos e nos coloca em saída alegre e decidida para a missão, a começar pelo terreno que pisamos, pelo ambiente que já conhecemos, porém, sem fronteiras ou limites.

***

E que devemos reter e ensinar para que robusteçamos a nossa fé e levemos os outros a crerem? Em primeiro lugar, a pessoa de Cristo, pois, sem esta pessoa, o que ensinamos não tem substrato e pode soar a vazio ou a hipocrisia. Depois, a doutrina. De facto, Jesus não se fixou por generalidades na sua mestria, antes, enunciou e explanou conteúdos em linguagem bem acessível, embora dura, por vezes. E ensinou postura, atitudes, procedimentos e comportamentos que enquadram um verdadeiro estilo de vida de irmãos de todos. Por último, mandou fazer o que Ele fez e como Ele fez: amar servindo. Tudo isto a proclamar aos quatro ventos, mesmo que tenha de ser por cima dos telhados, em todos os tempos e lugares, arriscando a vida se for preciso.

Enfim, o Espírito de que somos é de inclusão, contrário a qualquer tipo de exclusão ou banimento, a não ser o do mal.

Resta saber se é este o Espírito que nos move ou se o tentamos anular ou limitar e moldar segundo as nossas bitolas – ibéricas ou outras bem piores.

2022.06.05 – Louro de Carvalho

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