sábado, 25 de junho de 2022

Coração de Jesus ou o rosto do Deus que é dedicado pastor amoroso

 

Este ano, a Solenidade do Sagrado Coração de Jesus, por ter ocorrido a 24 de junho (é uma celebração móvel que ocorre na segunda sexta-feira, após a Solenidade do Corpus Christi), apesar ter implicado a transferência da Solenidade do Nascimento de São João Batista para o dia 23, ficou um tanto eclipsada pelas populares festas joaninas.

Sem desprimor pelo santo Precursor do Messias, importa aprofundar o mistério de Cristo, fornalha ardente de caridade e protagonista do martírio máximo, o do Gólgota.  

A liturgia da Solenidade insta à contemplação da bondade, terna e a misericordiosa de Deus pelos homens todos, sem exceção. E, como imagem privilegiada para exprimir esta realidade, a Palavra de Deus utiliza a figura do Pastor, que, na inefabilidade do amor divino, cuida do seu rebanho.

A 1.ª leitura (Ez 34,11-16) apresenta Deus como o Belo Pastor, em contraste com os líderes de Israel, maus pastores, que guiaram o Povo por vias de egoísmo e de morte. Neste contexto, o profeta anuncia a obra do Pastor/Deus: a libertação do rebanho/Povo, o êxodo para a terra da liberdade, a condução do rebanho para pastagens excelentes, de que fala o salmo 23, e os cuidados amorosos que o Pastor dispensará a cada uma das suas ovelhas, as perdidas, as frágeis e também as robustas e bem nutridas. Deus é fator de inclusão, não de rejeição ou exclusão.

Ezequiel integrou a primeira leva de exilados que, em 597 a.C., Nabucodonosor enviou para a Babilónia, onde o profeta da esperança se sentiu chamado por Deus para desenvolver a sua missão profética entre os exilados (de 592 a 571 a.C., aproximadamente).

Numa primeira fase (de 592 a 586 a.C.), a mensagem que o profeta se propõe transmitir procura desfazer as falsas esperanças dos exilados e anuncia novo castigo para Jerusalém: não somos nós que regressaremos rapidamente à nossa terra; os que estão em Jerusalém e que continuam a trilhar caminhos de pecado e de infidelidade ao Senhor é que virão ao nosso encontro.

Numa segunda fase (de 586 a 571 a.C.), a mensagem é, sobretudo, mensagem de salvação, a consolar os exilados e a alimentar a esperança num futuro novo de felicidade e de paz. É desta fase o trecho bíblico proclamado na liturgia da Solenidade.

Depois de denunciar a responsabilidade dos dirigentes da nação (os maus pastores) na catástrofe nacional (cf Ez 34,1-10), o profeta anuncia uma nova fase da história, em que o próprio Deus vai apascentar o seu Povo. A ideia de apresentar Deus como o pastor que apascenta o seu Povo não é original: os sumérios, os babilónios e os egípcios aplicavam esta imagem quer aos deuses, quer aos homens. E, em Israel, é uma imagem que, recorrentemente, se aplica a Deus (cf Sl 23; 80; Jr 23,1-8). Portanto, o tema alicerçante do texto é Deus como o “belo pastor”, que trata, com amor dedicado, o rebanho que é o seu Povo.

É Deus que toma a iniciativa de, “em pessoa”, vir ao encontro do Povo escravizado e tomar conta das suas ovelhas. Apesar do pecado do Povo, Deus não o abandona: até no Exílio os membros do Povo continuam a ser, para Deus, “as minhas ovelhas”. E o objetivo de Deus, ao vir ao encontro das ovelhas é libertá-las da escravidão, reuni-las e reconduzi-las à terra prometida, na perspetiva de um novo êxodo: saída da terra da opressão e da precessão e entrada na terra prometida, a terra da liberdade.

Todavia, com a chegada dos exilados à terra da liberdade, não termina a ação de Deus. O Deus pastor continuará a dispensar-lhes todo o cuidado. As imagens utilizadas sublinham, por um lado, a abundância de vida e, por outro, a tranquilidade e a paz que Deus Se propõe dar sempre ao seu rebanho. A ação amorosa e salvadora de Deus concretizar-se-á, ainda, na solicitude com que tratará a ovelha perdida, a desgarrada, a ferida, a enferma – na concretização da justiça de Deus que é amor, solicitude, ternura, misericórdia para com os pobres, os marginalizados e os débeis – mas também na conservação da robustez e boa nutrição das ovelhas que estão bem.

Por sua vez, o trecho evangélico (Lc 15,3-7) situa-se no contexto do caminho para Jerusalém, durante o qual Jesus prepara os discípulos para virem a ser, após a sua partida para o Pai, as testemunhas do Reino no meio dos homens, movidas pela força que lhes virá do Alto. Em várias lições, Jesus revela aos discípulos o ser do Pai e apresenta-lhes os valores nevrálgicos do Reino, mas, nesta lição, apresenta uma catequese que revela o amor e a misericórdia do Pai.

Todo o capítulo 15 do Evangelho de Lucas é a apologia parabólica da misericórdia de Deus. Numa tríplice parábola, Jesus desenvolve o tema da busca e do encontro do que estava perdido, para mostrar o amor solícito de Deus para com todos, nomeadamente para com os pecadores e os marginais – um tema muito caro ao evangelista Lucas, o da inclusão universal.

A história da “ovelha perdida” aparece também em Mateus (cf Mt 18,12-14), mas, enquanto Mateus a aplica ao mister dos chefes da Igreja no atinente aos “pequenos” das comunidades, Lucas aplica-a à ilustração da misericórdia de Deus e do seu cuidado para com os pecadores. Sem dúvida, o sentido de Lucas está muito próximo do sentido com que Jesus contou a história.

Tudo começa com uma observação dos escribas e fariseus que, vendo como os publicanos e pecadores se aproximavam de Jesus para O ouvirem, comentam: “Este acolhe os pecadores e come com eles” (hoûtos hamartôloûs prosdékhetai kaì synesthíei autoîs). Para os fariseus, era escandaloso manter contactos com um pecador notório. Por exemplo, um cobrador de impostos não podia fazer parte da comunidade farisaica e não podia ser juiz, nem prestar testemunho em tribunal sendo, para efeitos judiciais, equiparado ao escravo. Estava, pois, inibido de certos direitos cívicos, políticos e religiosos. E Jesus mostra àqueles que o criticam, que a lógica dos fariseus (fator de exclusão e de marginalidade) é oposta à lógica de Deus. O símile do pastor que abandona noventa e nove ovelhas no deserto para ir à procura de uma que se perdeu e que, chegado a casa, convoca os amigos e vizinhos para celebrar o achamento da ovelha perdida, é estranho, se o olharmos pela pauta da coerência e da lógica, nos termos da qual não faz sentido deixar noventa e nove ovelhas por causa de uma, nem faz sentido tanta euforia ante os amigos e os vizinhos por um facto tão banal como é o de o pastor reencontrar uma ovelha que, por acaso, se extraviou. Ora, é nesses exageros e nessas reações desproporcionadas que transparece a mensagem essencial da parábola.

Os relatos evangélicos põem, com frequência, Jesus em contacto com gente apontada a dedo pela sociedade, como cobradores de impostos e mulheres de má vida. Ora, ninguém da comunidade cristã estaria interessado em atribuir a Jesus um comportamento politicamente incorreto, se isso não correspondesse à realidade. Jesus deu-Se, efetivamente, com gente duvidosa, com pessoas a quem os ditos justos preferiam evitar, com pessoas anatematizadas e marginalizadas por causa dos seus comportamentos escandalosos, atentatórios da moral pública. E não foram os discípulos a inventar para Jesus o apelativo de “comilão e bêbedo, amigo de publicanos e de pecadores (Mt 11,19; cf Lc 15,1-2).

Porém, Jesus dava-se com tais pessoas, porque, na ótica lucana, Jesus é o amor de Deus que Se faz pessoa e vem ao encontro de todos os homens, para os libertar da s miséria e para lhes expor a realidade de vida nova, que é o projeto do Reino. A solicitude de Jesus para com os pecadores mostra-lhes que Deus os ama, que Deus os convida a fazer parte da sua família e a integrar a comunidade do Reino. É que o projeto de salvação de Deus não é condomínio fechado, com seguranças para barrar a entrada a indesejáveis, mas é a proposta universal, onde todos têm lugar, porque todos são filhos amados do Pai/Deus. A lógica de Deus é marcada pelo amor.

A atitude desproporcionada de “deixar as noventa e nove ovelhas no deserto para ir ao encontro da que estava perdida” sublinha a imensa preocupação de Deus por cada homem que se afasta da comunidade da salvação e o “inqualificável” amor de Deus por todos os homens que necessitam de libertação. E “pôr a ovelha aos ombros” significa o cuidado e a solicitude de Deus, que trata com amor e com cuidados de Pai os filhos amados e magoados; e a alegria desmesurada do pastor significa a felicidade imensa de Deus, sempre que o homem reentra no caminho da vida plena.

Jesus anuncia a salvação de Deus oferecida aos pecadores, não porque estes se tornaram dignos dela mediante as suas obras, mas porque Deus Se solidariza com os excluídos e marginalizados e lhes oferece a salvação. É o cumprimento da profecia de Ezequiel: Deus vai assumir-Se (através de Jesus) como o Belo Pastor a cuidar de todas as ovelhas e, de modo especial, das perdidas.

Por fim, o texto de Paulo aos Romanos (Rm 5,5b-11) lembra-nos que o amor de Deus se derrama continuamente sobre os homens. E a prova cabal desse imenso amor é Jesus Cristo, o Filho que o Pai enviou ao nosso encontro para nos libertar do egoísmo e do pecado e que deu a própria vida para que o desígnio de amor do Pai se concretize e atinja a humanidade inteira. O cristão não é um pobre coitado, que se tornou escravo de ritos e vive prisioneiro de uma moral pré-histórica ou de uma hierarquia centralizadora, mas é alguém a quem Deus ama. E esta é a boa notícia que Paulo dá a todos e que muito nos enche de júbilo na Solenidade do Sagrado Coração de Jesus.

2022.06.25 – Louro de Carvalho

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