domingo, 5 de junho de 2022

Não sendo uma heroína, é uma figura de relevo na vida e no bem-fazer

 

No texto do voto de pesar da Assembleia Municipal de Lisboa, de 2 de março de 2012, pela morte de Maria de Adelaide de Bragança van Uden, no dia anterior, lê-se que foi “uma testemunha ímpar da História da Europa do século XX como membro ativo da resistência ao nazismo na Áustria e como defensora dos mais desprotegidos da margem Sul do Tejo, em Portugal”.

A infanta Dona Maria Adelaide, neta do rei D. Miguel I (exilado na Europa desde 1834 pelos liberais), nasceu em Saint Jean de Luz, França, em 1912, tendo sido padrinhos a rainha D. Amélia e o rei D. Manuel II, já no exílio, tendo este evento simbolizado a reconciliação dos dois ramos da Casa de Bragança divididos desde a Guerra Civil do século anterior. Não obstante, vivia na Áustria onde trabalhava como enfermeira. Jovem destemida, tinha o perigoso hábito perigoso de, mal ouvir as sirenes de aviso de novo bombardeamento aliado na II Guerra Mundial, ascender ao sótão de casa para ver onde caíam as bombas e, depois, esperar que os aviões dispersassem. A seguir, pegava num candeeiro a petróleo e corria em auxílio dos feridos que se amontoavam nos escombros. Numa dessas incursões noturnas, acabou a noite a auxiliar Nicolaas van Uden, jovem estudante de Medicina numa tenda da Cruz Vermelha, por quem se apaixonou. Casaram, em 1945, tiveram dois filhos, antes da mudança para Portugal, e quatro, já em território nacional, onde o apelido Van Uden tem mais descendência do que em qualquer outro país da Europa.

A origem do nome Van Uden é longínqua. No século VIII, havia, na corte de Pepino, o Breve, pai de Carlos Magno, um poderoso palaciano chamado Van Uden com tal influência que se tornou um dos nomes mais importantes de Aix-la Chapelle. Nos séculos subsequentes, o apelido desapareceu dos registos históricos para voltar à tona no século XVII com o holandês Lucas van Uden, pintor, desenhador, gravurista do flamenco de seiscentos, cujas obras estão expostas nos melhores museus do mundo, como o Ermitage, de Sampetersburgo, a National Gallery, de Londres, e o J. Paul Getty Museum, de Los Angeles. Novamente, os Van Uden voltaram a perder-se na espuma do tempo e só mais recentemente é possível localizá-los na genealogia de Nicolaas Maria van Uden, o estudante de Medicina, já referido. Este, que era filho de um oficial das forças armadas holandesas e de Cornélia Baijerns, ingressou na melhor escola de Medicina da Europa, em Viena, depois de terminar o liceu na Holanda com notas máximas, pois achava que “a Holanda era muito pequena e tinha gente a mais”, pelo que foi estudar Medicina para Viena onde acabou por conhecer a futura esposa em plena II Guerra Mundial.

Exilado em 1834, pela lei do banimento, o rei D. Miguel I ficou na penúria. Valeu-lhe o bom-nome que tinha na Europa. E, quando embarcou em Sines, deixou para trás uma fortuna colossal e até os anéis tirou dos dedos, mas, logo que atracou em Roma, foi recebido ao mais alto nível pelo Papa. Casou com a princesa Maria Adelaide Loewenstein e conseguiu que as filhas se ligassem por matrimónio às mais importantes casas reais europeias. Mas, quando regressaram a Portugal, em 1949, com a permissão de Salazar em 1949, Maria Adelaide, Nicolaas e os filhos instalaram-se numa quinta em Murfacém, perto da Trafaria. Não tinham carro e, por vezes, não havia manteiga ao pequeno-almoço. E Maria Adelaide continuou a trabalhar na área da assistência social, vindo a criar a Fundação D. Nuno Álvares Pereira, de apoio a mães pobres em fim de gravidez e às crianças até à puberdade. Por sua vez, o marido dedicou-se à investigação científica, fundou o Instituto Gulbenkian da Ciência e foi o seu diretor de Microbiologia até à sua morte, em 1971.

Maria Adelaide passou as provações das duas guerras mundiais (na primeira como criança), como grande parte da população da Europa. Vive na Áustria, em constante mudança de morada, em lugares emprestados, ao sabor do tumulto da guerra. Tem uma educação prática com uma disciplina que vem a ser relevante para ultrapassar as privações destes períodos. Completou o curso de assistente social, em Viena e fez um vasto trabalho de apoio nos bairros pobres da capital austríaca e nas montanhas. Quando as forças nazis entraram na Áustria, volta ao Sul de Viena, onde dirige uma exploração agrícola como técnica agrónoma de reconhecido mérito.

Faz uma oposição convicta a Hitler desde o primeiro instante. Foi presa, pela primeira vez em 1944, onde teve um tratamento “digno” (?), segundo relatou, passando pela “solitária” e por diversos interrogatórios. Partilhou a cela com cúmplices do autor do atentado contra Hitler. Porém, Salazar interveio para obter a libertação da cidadã portuguesa. Passado algum tempo, integra um grupo de resistência ativa ao nazismo, “O Cinco”. Escapa a novo mandato de captura refugiando-se numa casa semidestruída em Viena, mas, descoberta pela Gestapo, passa um mês na prisão. Desta vez, em 1945, o tratamento era mais agressivo e muitos camaradas seus foram fuzilados. Quando os soviéticos entraram na cidade, a situação da Infanta era delicada, porque integrava uma organização católica que seria deportada para a Sibéria. Maria Adelaide é salva pelos arquivos da Gestapo que continham um relatório sobre a sua intervenção no salvamento de um membro da resistência comunista. E, na Viena devastada, socorre, de novo, quem pode, trabalhando como enfermeira na Cruz Vermelha. Em Portugal, a partir de 1949, perante a pobreza e doença que encontra na margem sul do Tejo, empenha-se na construção de obras de assistência social e expressa abertamente críticas ao Governo no setor da assistência social. Com efeito, chegou admirar o Presidente do Conselho de Ministros pelo saneamento das finanças públicas, mas discordando dos seus métodos.    

Adelaide Manuela Amélia Micaela Rafaela de Bragança van Uden, a última neta de um rei português, quando completou 100 anos de vida, foi agraciada com o grau de Grande Oficial da Ordem de Mérito Civil pelo Presidente da República, que vincou o seu papel na Resistência aos nazis e a criação, em Portugal, da Fundação Nun’Álvares Pereira para apoio aos mais carenciados.

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“É um exemplo de vida pela estatura moral”, disse à agência Lusa Raquel Ochoa, autora de uma biografia de Maria Adelaide de Bragança. Para a infanta, “a resistência era como respirar, perante a educação que tinha tido e os ideais que tinha” e “não resistir é que era uma violência contra ela mesma”, pois “resistir era um ato natural”. E a biógrafa frisou que Maria Adelaide “teve outros atos heróicos”, referindo o seu trabalho “como assistente social em prol das populações desfavorecidas” na margem sul do Tejo, desenvolvido de “forma discreta”. Na verdade, “percebeu que, através da discrição não era notada nem perseguida, além de, por educação, não gostar de fazer alarde do que faz” – a “antítese da sociedade em que vivemos”.

Sobre a posição da infanta em relação ao regime que antecedeu o 25 de Abril, Raquel Ochoa afirmou que “reconheceu Salazar como quem pôs em ordem as contas do Estado, mas insurgiu-se sempre contra os métodos usados”.

Desde muito cedo, foi testemunha de um mundo em transformação. Assistiu à queda de impérios, viveu por dentro uma guerra mundial e participou ativamente na resistência contra os nazis. Por duas vezes esteve presa e em ambas foi condenada à morte. A intervenção direta de Salazar numa delas e um desenlace surpreendente noutra permitiram que continuasse a sua luta. Mas, chegada a Portugal, com o seu estilo sincero, direto e inconformado, continua a defender as ideias em que acredita, no auxílio aos mais desfavorecidos, desagradando a uma sociedade que considerava a sua atuação pouco adequada a uma pessoa da sua condição.

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A Infanta Rebelde mostra-nos a vida de uma figura ímpar na História Contemporânea de Portugal, mas, acima de tudo, o retrato de uma mulher que teve a coragem de ultrapassar todos os obstáculos e lutar pelo ideal que dava sentido à sua vida tornar a sociedade, tal como a sua natureza, mais justa e benévola.

É de frisar que, durante a II Guerra Mundial, passou a acolher resistentes judeus e ingleses na quinta da família, em Seebenstein, a 70 quilómetros de Viena, e ingressou no grupo de resistência “O Cinco” ou “O 5”. Meses depois, a filha mais nova de Dom Miguel II, filho do Rei expulso de Portugal após a guerra civil no século XIX, estava detida pelos nazis num antigo hotel de Viena e fez chegar ao exterior informações de que estavam guardadas no edifício listas de alvos a abater pela Gestapo. Católica convicta, rezou por uma bomba que destruísse o edifício, mesmo sabendo que podia morrer. As bombas britânicas não tardaram. Maria Adelaide sobreviveu às explosões, mas a sua ficha desapareceu nas ruínas do hotel onde estava presa. Ao fim de um mês de cativeiro – em que passou fome e sede, e foi interrogada horas a fio –, Viena caiu nas mãos dos comunistas russos. Quando tomaram o local onde Dona Adelaide estava detida, os prisioneiros não tinham documentos e os russos não sabiam quem eram os ‘bons’ e os ‘maus’. Por feliz acaso, a sua ficha apareceu no chão. Estava lá escrito que fora presa por apoiar um comunista. E assim se livrou da deportação para a Sibéria, destino trágico de vários dos seus companheiros.

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A vida não é toda a preto e branco. E as boas personalidades estão na República e na Monarquia. E é o espírito democrático, traduzido em comunicação, ação e testemunho de vida, que nos torna cidadãos dum mundo mais justo, mais humano, onde reina a fraternidade, a justiça e a igualdade, tendo a verdadeira liberdade como lastro e pano de fundo, tendo a verdade por meta a atingir. 

2022.06.05 – Louro de Carvalho


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