No texto do voto de pesar da Assembleia Municipal de Lisboa, de 2 de
março de 2012, pela morte de Maria de
Adelaide de Bragança van Uden, no dia
anterior, lê-se que foi
“uma testemunha ímpar da História da
Europa do século XX como membro ativo da resistência ao nazismo na Áustria e
como defensora dos mais desprotegidos da margem Sul do Tejo, em Portugal”.
A infanta Dona Maria Adelaide, neta do rei D. Miguel I
(exilado na Europa desde 1834 pelos liberais), nasceu em Saint Jean de Luz, França, em 1912, tendo sido
padrinhos a rainha D. Amélia e o rei D. Manuel II, já no exílio, tendo este
evento simbolizado a reconciliação dos dois ramos da Casa de Bragança divididos
desde a Guerra Civil do século anterior. Não obstante, vivia na
Áustria onde trabalhava como enfermeira. Jovem destemida, tinha o perigoso
hábito perigoso de, mal ouvir as sirenes de aviso de novo bombardeamento aliado
na II Guerra Mundial, ascender ao sótão de casa para ver onde caíam as bombas
e, depois, esperar que os aviões dispersassem. A seguir, pegava num candeeiro a
petróleo e corria em auxílio dos feridos que se amontoavam nos escombros. Numa
dessas incursões noturnas, acabou a noite a auxiliar Nicolaas van Uden, jovem
estudante de Medicina numa tenda da Cruz Vermelha, por quem se apaixonou. Casaram,
em 1945, tiveram dois filhos, antes da mudança para Portugal, e quatro, já em
território nacional, onde o apelido Van Uden tem mais descendência do que em
qualquer outro país da Europa.
A origem do nome Van Uden é longínqua. No século VIII,
havia, na corte de Pepino, o Breve, pai de Carlos Magno, um poderoso palaciano
chamado Van Uden com tal influência que se tornou um dos nomes mais importantes
de Aix-la Chapelle. Nos séculos subsequentes, o apelido desapareceu dos
registos históricos para voltar à tona no século XVII com o holandês Lucas van
Uden, pintor, desenhador, gravurista do flamenco de seiscentos, cujas obras
estão expostas nos melhores museus do mundo, como o Ermitage, de
Sampetersburgo, a National Gallery, de Londres, e o J. Paul Getty Museum, de
Los Angeles. Novamente, os Van Uden voltaram a perder-se na espuma do tempo e só
mais recentemente é possível localizá-los na genealogia de Nicolaas Maria van
Uden, o estudante de Medicina, já referido. Este, que era filho de um oficial
das forças armadas holandesas e de Cornélia Baijerns, ingressou na melhor
escola de Medicina da Europa, em Viena, depois de terminar o liceu na Holanda
com notas máximas, pois achava que “a Holanda era muito pequena e tinha gente a
mais”, pelo que foi estudar Medicina para Viena onde acabou por conhecer a futura
esposa em plena II Guerra Mundial.
Exilado em 1834, pela lei do banimento, o rei D. Miguel
I ficou na penúria. Valeu-lhe o bom-nome que tinha na Europa. E, quando
embarcou em Sines, deixou para trás uma fortuna colossal e até os anéis tirou
dos dedos, mas, logo que atracou em Roma, foi recebido ao mais alto nível pelo
Papa. Casou com a princesa Maria Adelaide Loewenstein e conseguiu que as filhas
se ligassem por matrimónio às mais importantes casas reais europeias. Mas, quando
regressaram a Portugal, em 1949, com a permissão de Salazar em 1949, Maria
Adelaide, Nicolaas e os filhos instalaram-se numa quinta em Murfacém, perto da
Trafaria. Não tinham carro e, por vezes, não havia manteiga ao pequeno-almoço. E
Maria Adelaide continuou a trabalhar na área da assistência social, vindo a
criar a Fundação D. Nuno Álvares Pereira, de apoio a mães pobres em fim de
gravidez e às crianças até à puberdade. Por sua vez, o marido dedicou-se à
investigação científica, fundou o Instituto Gulbenkian da Ciência e foi o seu
diretor de Microbiologia até à sua morte, em 1971.
Maria
Adelaide passou as provações das duas guerras mundiais (na primeira como
criança), como grande parte da população da Europa. Vive na Áustria, em
constante mudança de morada, em lugares emprestados, ao sabor do tumulto da guerra.
Tem uma educação prática com uma disciplina que vem a ser relevante para
ultrapassar as privações destes períodos. Completou o curso de assistente
social, em Viena e fez um vasto trabalho de apoio nos bairros pobres da capital
austríaca e nas montanhas. Quando as forças nazis entraram na Áustria, volta ao
Sul de Viena, onde dirige uma exploração agrícola como técnica agrónoma de
reconhecido mérito.
Faz uma
oposição convicta a Hitler desde o primeiro instante. Foi presa, pela primeira
vez em 1944, onde teve um tratamento “digno” (?), segundo relatou, passando
pela “solitária” e por diversos interrogatórios. Partilhou a cela com cúmplices
do autor do atentado contra Hitler. Porém, Salazar interveio para obter a
libertação da cidadã portuguesa. Passado algum tempo, integra um grupo de
resistência ativa ao nazismo, “O Cinco”. Escapa a novo mandato de captura
refugiando-se numa casa semidestruída em Viena, mas, descoberta pela Gestapo,
passa um mês na prisão. Desta vez, em 1945, o tratamento era mais agressivo e
muitos camaradas seus foram fuzilados. Quando os soviéticos entraram na cidade,
a situação da Infanta era delicada, porque integrava uma organização católica
que seria deportada para a Sibéria. Maria Adelaide é salva pelos arquivos da Gestapo
que continham um relatório sobre a sua intervenção no salvamento de um membro
da resistência comunista. E, na
Viena devastada, socorre, de novo,
quem pode, trabalhando como enfermeira na Cruz Vermelha. Em Portugal, a partir
de 1949, perante a pobreza e doença que encontra na margem sul do Tejo,
empenha-se na construção de obras de assistência social e expressa abertamente
críticas ao Governo no setor da assistência social. Com efeito, chegou admirar
o Presidente do Conselho de Ministros pelo saneamento das finanças públicas,
mas discordando dos seus métodos.
Adelaide Manuela Amélia Micaela
Rafaela de Bragança van Uden, a
última neta de um rei português, quando completou 100 anos de vida, foi agraciada
com o grau de Grande Oficial da Ordem de Mérito Civil pelo Presidente da
República, que vincou o seu papel na Resistência aos nazis e a criação, em
Portugal, da Fundação Nun’Álvares Pereira para apoio aos mais carenciados.
***
“É um exemplo
de vida pela estatura moral”, disse à agência Lusa Raquel Ochoa, autora de uma biografia de Maria Adelaide de Bragança.
Para a infanta, “a resistência era como respirar, perante a educação que tinha
tido e os ideais que tinha” e “não resistir é que era uma violência contra ela
mesma”, pois “resistir era um ato natural”. E a biógrafa frisou que Maria
Adelaide “teve outros atos heróicos”, referindo o seu trabalho “como assistente
social em prol das populações desfavorecidas” na margem sul do Tejo,
desenvolvido de “forma discreta”. Na verdade, “percebeu que, através da
discrição não era notada nem perseguida, além de, por educação, não gostar de
fazer alarde do que faz” – a “antítese da sociedade em que vivemos”.
Sobre a
posição da infanta em relação ao regime que antecedeu o 25 de Abril, Raquel
Ochoa afirmou que “reconheceu Salazar como quem pôs em ordem as contas do
Estado, mas insurgiu-se sempre contra os métodos usados”.
Desde muito cedo, foi testemunha de um mundo em
transformação. Assistiu à queda de impérios, viveu por dentro uma guerra mundial
e participou ativamente na resistência contra os nazis. Por duas vezes esteve
presa e em ambas foi condenada à morte. A intervenção direta de Salazar numa
delas e um desenlace surpreendente noutra permitiram que continuasse a sua
luta. Mas, chegada a Portugal, com o seu estilo sincero, direto e inconformado,
continua a defender as ideias em que acredita, no auxílio aos mais
desfavorecidos, desagradando a uma sociedade que considerava a sua atuação
pouco adequada a uma pessoa da sua condição.
***
A Infanta Rebelde mostra-nos a vida de uma figura ímpar na
História Contemporânea de Portugal, mas, acima de tudo, o retrato de uma mulher
que teve a coragem de ultrapassar todos os obstáculos e lutar pelo ideal que
dava sentido à sua vida tornar a sociedade, tal como a sua natureza, mais justa
e benévola.
É de frisar
que, durante a II Guerra Mundial, passou a acolher resistentes judeus e
ingleses na quinta da família, em Seebenstein, a 70 quilómetros de Viena, e
ingressou no grupo de resistência “O Cinco” ou “O 5”. Meses depois, a filha
mais nova de Dom Miguel II, filho do Rei expulso de Portugal após a guerra
civil no século XIX, estava detida pelos nazis num antigo hotel de Viena e fez
chegar ao exterior informações de que estavam guardadas no edifício listas de
alvos a abater pela Gestapo. Católica convicta, rezou por uma bomba que
destruísse o edifício, mesmo sabendo que podia morrer. As bombas britânicas não
tardaram. Maria Adelaide sobreviveu às explosões, mas a sua ficha desapareceu
nas ruínas do hotel onde estava presa. Ao fim de um mês de cativeiro – em que
passou fome e sede, e foi interrogada horas a fio –, Viena caiu nas mãos dos
comunistas russos. Quando tomaram o local onde Dona Adelaide estava detida, os
prisioneiros não tinham documentos e os russos não sabiam quem eram os ‘bons’ e
os ‘maus’. Por feliz acaso, a sua ficha apareceu no chão. Estava lá escrito que
fora presa por apoiar um comunista. E assim se livrou da deportação para a
Sibéria, destino trágico de vários dos seus companheiros.
***
A vida não é toda a preto e branco. E as boas personalidades estão na
República e na Monarquia. E é o espírito democrático, traduzido em comunicação,
ação e testemunho de vida, que nos torna cidadãos dum mundo mais justo, mais
humano, onde reina a fraternidade, a justiça e a igualdade, tendo a verdadeira
liberdade como lastro e pano de fundo, tendo a verdade por meta a atingir.
2022.06.05 – Louro de Carvalho
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