segunda-feira, 29 de abril de 2024

Jesus é a vide a que devem estar ligados os discípulos como sarmentos

 

A Liturgia da Palavra do 5.º domingo da Páscoa, no Ano B, fala-nos de Jesus Cristo como a fonte da Vida, de que bebem, unidos a Ele, os discípulos feitos apóstolos, para testemunharem essa Vida em gestos concretos de amor.

No trecho evangélico desta dominga (Jo 15,1-8), que integra o seu discurso de despedida, Jesus apresenta-se como “a verdadeira vide” e convida os discípulos a permanecerem ligados a Ele para receberem a Vida. Jesus, a videira, e os discípulos, os sarmentos, não se ficam na mera decoração do espaço, mas produzirão frutos bons, os que Deus espera. Enquanto se mantiverem unidos a Jesus, os discípulos serão testemunhas verdadeiras, entre os homens, da Vida nova de Deus.

Estamos em Jerusalém, na noite de quinta-feira, antes da celebração da Páscoa judaica, cerca do ano 30. Jesus, reunido com os discípulos à volta da mesa, está cônscio de que os dirigentes judaicos decidiram dar-Lhe a morte e de que a cruz estava no horizonte próximo. Assim, Jesus mandou organizar a ceia de despedida, a preparar os discípulos para o drama que se avizinhava. Não queria que a sua morte os lançasse no caos da desesperança.

Naquele momento, várias questões pairavam no ar. Os discípulos tinham de concretizar o Reino de Deus. Viveriam no Mundo e testemunhariam o que tinham aprendido enquanto caminhavam atrás de Jesus. Podiam e tinham de manter a ligação a Jesus e de continuar a receber d’Ele a Vida de que necessitavam para continuarem a caminhada. Por isso, Jesus conversou longamente com eles e deu-lhes preciosas indicações. Seriam uma comunidade de serviço, poriam no centro de tudo o mandamento do amor (que os identificaria perante o Mundo), teriam o Espírito Santo e a sua paz, nunca ficariam abandonados nem órfãos e continuariam unidos a Ele e entre si. As palavras e os gestos de Jesus, naquela hora, são o seu “testamento”.

O trecho em referência, designado como a “alegoria da videira (ou vide) e dos ramos”, integra o “discurso de despedida”. Esta alegoria tem profundas conotações veterotestamentárias e assume grande significado no universo religioso judaico. No Antigo Testamento – sobretudo nos Profetas – a videira e a vinha eram símbolos do Povo de Deus. Israel era como que a videira que Javé arrancou do Egito, que transplantou para a Terra Prometida e da qual sempre cuidou com amor. Era a vinha que Deus plantou com cepas escolhidas, de que Ele cuidou e da qual esperava frutos abundantes, mas que só produziu frutos amargos e impróprios. A antiga videira ou vinha de Javé revelou-se uma verdadeira desilusão: não produziu os frutos que Ele esperava.

Jesus apresenta-Se como a verdadeira videira, a que estão ligados os ramos, que são os seus discípulos. Esta videira, com estes ramos, forma, portanto, o novo Povo de Deus. Da ação criadora e vivificadora de Jesus nasce o novo Povo de Deus, a comunidade do Reino. Deus continua a ser o agricultor que trata bem a sua vinha. Desta união vital nascerão bons frutos, os frutos que Deus espera, os mesmos que Jesus produziu quando andava pelos caminhos da Galileia e da Judeia a anunciar o Reino de Deus, a curar os doentes, a libertar os que viviam prisioneiros, a dar Vida a todos os que estavam privados de Vida. Se algum dos ramos não der bons frutos, o agricultor (Deus) terá de o cortar. Esse ramo não recebe Vida da videira ou não deixa que essa Vida se traduza nos frutos que Deus espera. Está, assim, a autoexcluir-se da comunidade de Jesus.

Em contrapartida, Deus, o agricultor, cuidará de todos os ramos que dão bons frutos, para que, pelo processo de limpeza (conversão) nunca terminado, se libertem, cada vez mais, do egoísmo e deem frutos, cada vez mais abundantes, de amor e de Vida.

Para que o dinamismo de Vida se concretize, os ramos devem permanecer ligados à videira, pois, como não têm vida própria, não podem produzir frutos por si próprios, mas precisam da seiva da videira. Têm, pois, os discípulos de permanecer em Jesus. O verbo “permanecer” (“ménô”) é uma das palavras-chave do texto (do v. 4 ao v. 8, aparece sete vezes), que exprime a confirmação ou renovação de atitude já antes assumida. Supondo que o discípulo já tenha aderido a Jesus, pretende-se que a adesão adquira solidez, estabilidade, constância e continuidade. É um convite a que o discípulo mantenha a adesão a Jesus e a identificação e a comunhão com Ele. Se o discípulo mantiver a sua adesão, Jesus permanece no discípulo, isto é, continuará fielmente a oferecer ao discípulo a sua Vida, o seu Espírito.

O discípulo permanece em Jesus, se continua a escutar as suas palavras, a acolhê-las no coração, a pautar a sua vida por elas, a ver os gestos que Ele fazia e a desenhar, a partir deles, o seu estilo de vida. O discípulo permanece em Jesus, se não O perde de vista e caminha atrás d’Ele, numa adesão todos os dias renovada. Há uma asserção de Jesus, no “discurso do Pão da Vida”, que pode iluminar o sentido do permanecer unido a Jesus: “Quem realmente come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em Mim e Eu nele” (Jo 6,56). A carne de Jesus é a sua vida, o seu sangue é a sua entrega por amor até à morte. Assim, “comer a carne e beber o sangue” de Jesus é assimilar a sua existência, feita serviço e entrega por amor, até ao dom total de si; é comprometer-se com uma existência feita entrega a Deus e aos irmãos, até à doação completa da vida por amor. E a Eucaristia, em que comemos a carne e bebemos o sangue de Jesus, é a celebração renovada da nossa comunhão e do nosso compromisso com Jesus.

É preciso frisar que a união com Jesus não é automática, que chega no Batismo e que fica para sempre. Depende, antes, da decisão livre e consciente do discípulo, que tem de ser continuamente renovada e assumida.

É possível que os discípulos se mantenham ligados a Jesus e recebam d’Ele Vida, mesmo depois de Ele deixar de caminhar fisicamente no meio deles, porque Ele lhes garantiu que seria sempre a “verdadeira videira” onde os discípulos (os “ramos”) encontram Vida em abundância. Porém, os discípulos têm de permanecer ligados a Jesus, de continuar a escutar as suas indicações e de continuar a assumir, em cada passo da vida, o seu estilo de viver e de amar.

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primeira leitura (At 9,26-31), ao relatar a inserção de Paulo de Tarso na comunidade cristã de Jerusalém, lembra-nos que a experiência cristã se constrói em comunidade. É no diálogo e na partilha com os irmãos que a fé nasce, cresce e amadurece. A comunidade cristã deve ser a casa de portas abertas, onde todos têm lugar e podem fazer, de mãos dadas com os outros irmãos, a experiência de encontro com o Ressuscitado.

O trecho em apreço situa-nos em Jerusalém, logo após o regresso de Paulo. Inclui, num versículo final, um breve sumário da vida da Igreja, como tantos outros, através dos quais Lucas faz um balanço da situação e prepara os temas que vai tratar nas secções seguintes.

Na sua narração, o autor dos Atos dos Apóstolos apresenta um conjunto de informações históricas sobre o acolhimento de Paulo pela comunidade de Jerusalém, após a sua fuga de Damasco. Porém, Lucas, além das informações históricas, deixa entreler algumas interrogações e desafios aos membros das comunidades cristãs – do seu tempo e de todos os tempos e lugares – sobre a forma de viver e de testemunhar, em comunidade, a fé em Jesus.

A desconfiança dos cristãos de Jerusalém em relação a Paulo (“todos o temiam, por não acreditarem que fosse discípulo”) decorre do que os cristãos de Jerusalém sabiam do passado de Paulo. Todavia, sem ser demasiado direto, Lucas põe as comunidades cristãs de sobreaviso para um perigo real: o medo do risco, a excessiva prudência e a instalação nos velhos esquemas de sempre, podem ser obstáculos ao acontecer do hoje de Deus. Se a comunidade cristã de Jerusalém tivesse decidido, por medo ou prudência excessiva, fechar as portas a Paulo, tê-las-ia fechado ao dom de Deus e à novidade do Espírito, o que teria empobrecido imenso a Igreja de Jesus.

O esforço de Paulo em integrar-se (“chegou a Jerusalém e procurava juntar-se aos discípulos”) mostra a importância que dava ao viver em comunidade, à partilha da fé. O cristianismo não é só encontro pessoal com Jesus; é também a experiência de partilha da fé e do amor com os irmãos que aderiram ao mesmo projeto e que são membros desta grande família. No diálogo e na partilha comunitária, questionamos os limites dos entendimentos pessoais, enriquecemo-nos com a experiência dos irmãos, ajudamo-nos mutuamente a vencer as dificuldades, discernimos as sendas do Espírito e purificamos a nossa experiência de fé.

O papel de Barnabé na integração de Paulo é significativo (“Barnabé tomou-o consigo, levou-o aos apóstolos e contou-lhes como Saulo, no caminho, tinha visto o Senhor”): acredita em Paulo e leva a comunidade a acolhê-lo. Mostra o papel de cada cristão na integração comunitária dos irmãos, inclusive dos que, pelo seu percurso de vida, foram rotulados e afastados, e mostra que é tarefa do crente questionar a comunidade e ajudá-la a descobrir os desafios sempre novos de Deus.

Fica realçado o entusiasmo com que Paulo dá testemunho de Jesus e a coragem com que enfrenta as dificuldades e oposições resultantes do seu testemunho – atitude que vai caraterizar toda a sua vida apostólica. O verdadeiro encontro com Jesus resulta no testemunho do Evangelho. Paulo está consciente de que foi chamado por Jesus, de que recebeu de Jesus a missão de anunciar a salvação a todos os homens, pelo que nada nem ninguém será capaz de arrefecer o seu zelo no anúncio do Evangelho. E Lucas sugere, com esta notícia, que todos os que se encontram com Jesus devem tornar-se testemunhas credíveis e corajosas do Evangelho. É verdade que a pregação cristã suscita o conflito com os poderes interessados em perpetuar as trevas, a mentira, a opressão. A fidelidade ao Evangelho e a Jesus provoca sempre a oposição de quem teme a luz e a verdade. O caminho do discípulo de Jesus é um caminho marcado pela cruz (não caminho de morte, mas de Vida). E os discípulos, cônscios disto, não se deixem paralisar pelo medo.

O sumário final recorda um elemento que está sempre presente no horizonte da catequese lucana: é o Espírito Santo que conduz a Igreja na sua marcha pela história. É Ele que lhe dá estabilidade (“como um edifício”), lhe alimenta o dinamismo (“caminhava no temor do Senhor”) e a faz crescer (“ia aumentando”). E esta certeza deve fundamentar a nossa esperança.

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O texto da segunda leitura (1Jo 3,18-24) pertence a uma secção que poderíamos intitular “Viver como filhos de Deus” (1Jo 3,1-24) e conclui a reflexão sobre o amor aos irmãos, apresentado como consequência da filiação divina.

Na base da vida cristã está o “acreditar em Jesus” e o amar os irmãos “como Ele mandou”. São esses os “frutos” que Deus espera de todos os que estão unidos a Cristo. Se testemunharmos em gestos concretos o amor de Jesus, estamos unidos a Jesus e a vida de Jesus circula em nós.

No versículo que antecede o trecho em apreço, a Carta interpela os crentes: “Se alguém possuir bens deste mundo e, vendo o seu irmão com necessidade, lhe fechar o seu coração, como é que o amor de Deus pode permanecer nele?” (1Jo 3,17). E, logo a seguir, conclui que o amor aos irmãos não se manifesta em declarações de boas intenções, mas em gestos concretos de partilha e de serviço, em prol dos irmãos. E é assim que se revela a autenticidade da vivência cristã e se dá testemunho do desígnio salvador de Deus.

Se deixamos o amor conduzir a nossa vida, estamos no caminho da verdade. Com o coração aberto ao amor, ao serviço e à partilha, estamos tranquilos porque estamos em comunhão com Deus. Pode a consciência acusar-nos dos erros passados e reprovar algumas das nossas opções; mas, se amarmos, estamos perto de Deus, pois Deus é amor. O amor liberta-nos de todas as dúvidas e inquietações, pois dá-nos a certeza de que estamos na rota de Deus; e se Deus “é maior do que o nosso coração e conhece tudo”, nada temos a recear. Viver no amor é viver em Deus e estar entregue à sua bondade e à misericórdia. Com a consciência em paz e sabendo que Deus nos acolhe e ama (porque acolhemos o amor e nele vivemos), podemos dirigir-Lhe a oração, certos de que Ele nos escuta, pois atende a oração daquele que cumpre os seus mandamentos.

Os dois versículos finais recapitulam o que ficara dito. A exigência basilar da via cristã é crer em Jesus e amar os irmãos. Crer em Jesus e cumprir o mandamento do amor são a mesma questão. Quem guarda os mandamentos (especialmente o do amor, que tudo resume) vive em comunhão com Deus e já possui algo da natureza divina (o Espírito). É o Espírito de Deus que dá aos crentes a possibilidade de produzirem obras de amor.

2024.04.28 – Louro de Carvalho

domingo, 28 de abril de 2024

Eleições europeias: os temas europeus ofuscarão os nacionais?

A pouco mais de um mês das eleições para o Parlamento Europeu (PE), no próximo mês de junho (em Portugal, no dia 9 e, no resto da UE, entre os dias 6 e 9), a grande questão que se levanta é se os eleitores terão em mente a ação da União Europeia (UE) ou o seu país, quando colocarem o seu voto na urna respetiva. Ou seja, os cidadãos votarão por razões nacionais ou europeias?

Em alguns países, como a França, as eleições europeias são apresentadas por alguns como eleições intercalares ou como antecipação das eleições presidenciais; noutros, como Portugal e a Itália (a primeira-ministra italiana o assume), servem para testar o governo em exercício.

As eleições europeias “são, antes de mais nada, eleições intercalares”, diz Jordan Bardella, cabeça de lista do partido de extrema-direita National Rally, que apela à “sanção da Europa de Macron”.

Pascal Perrineau, professor emérito da Sciences Po Paris e autor de “O gosto pela política” (Éditions Odile Jacob), considera: “A tentativa e a tentação são fortes para utilizar as eleições europeias como ‘eleições intercalares’, como se diz nos Estados Unidos da América (EUA), em que as pessoas descarregam a sua raiva sobre quem está no poder. E a extrema-direita europeia joga este jogo quando não está no poder.

“Se eu estiver na liderança, é claro que vou pedir a dissolução da Assembleia Nacional [AN], nessa mesma noite”, disse Bardella, em entrevista à RTL. Mas isso não passa de um desejo, porque, segundo a Constituição francesa, só o Presidente da República pode tomar tal decisão.

“Sim, as eleições europeias de 2024 vão abrir caminho para as eleições presidenciais de 2027”, disse Jean-Luc Mélenchon, que concorre na lista da France insoumise.

Para Éric Maurice, analista político do Centro de Política Europeia, em França, esta é a grande eleição antes da próxima eleição presidencial. Porque é eleição de lista nacional, a tentação de nacionalizar o escrutínio é forte.

Um ano após as primeiras eleições europeias, em 1979, os investigadores Karlheinz Reif e Hermann Schmitt classificaram o escrutínio de “eleição nacional de segunda ordem”. Permitiriam às forças políticas avaliar a sua popularidade, a nível nacional, sobretudo se realizadas a meio do mandato presidencial. Além disso, os investigadores chamam “nacionais” às eleições europeias, por serem organizadas a nível nacional, de acordo com regras nacionais, e oporem candidatos nacionais a candidatos nacionais sobre questões nacionais. O método, o dia e a idade legal para votar ou para se candidatar diferem de um Estado-Membro para outro. Contudo, vários estudos observaram o aparecimento de atitudes europeias, relativamente às eleições para o PE. Céline Belot e Virginie Van Ingelgom, por exemplo, mostraram a existência de uma escolha eleitoral baseada em posições europeias nas eleições europeias de 2014.

Para já, a tendência para a europeização é ligeira. Foi um pouco visível nas últimas eleições europeias de 2019, quando se registou um aumento da afluência às urnas. Então, ficou a impressão de que mais Europeus estavam interessados nas eleições europeias e no poder do PE.

Éric Maurice  refere que as compras conjuntas de equipamento médico e de vacinas, durante a pandemia de covid-19, e a adoção de sanções contra Moscovo, na sequência da invasão, em grande escala, da Ucrânia pela Rússia, mostram que as crises recentes catapultaram, para o primeiro plano, a UE ou, pelo menos, a ação a nível europeu.

Resta saber se isto será suficiente para dar mais visibilidade às questões europeias nas eleições de junho. Com efeito, o trabalho da UE continua a ser pouco conhecido do grande público.

Neste ano, as questões europeias poderão ser ofuscadas pelas questões nacionais nas eleições europeias, enquanto a atenção de muitos países é desviada por outras eleições. Em 2024, estão a ser organizadas cerca de dez eleições nacionais na UE. Na Bélgica, as eleições federais e regionais realizar-se-ão no mesmo dia que as eleições europeias, 9 de junho. Na Finlândia, na Eslováquia, na Lituânia e na Roménia, realizam-se eleições presidenciais em 2024, enquanto, em Portugal, na Áustria e na Croácia, os eleitores são ou foram chamados às urnas para eleições legislativas.

As eleições europeias podem também ser uma oportunidade para os partidos no poder ou na oposição avaliarem a sua popularidade antes de futuras eleições.

A Espanha realizou eleições em 2023. O seu governo é bastante contestado, nomeadamente no que se refere à sua aliança com os nacionalistas catalães. Este é um teste a Pedro Sanchez.

Na Polónia, as eleições legislativas de outubro de 2023 provocaram a mudança de governo, após a derrota do partido ultraconservador Lei e Justiça (PiS) e a vitória da Coligação Cívica liderada por Donald Tusk. Para o PiS, que foi derrotado no outono, esta será também uma oportunidade para retomar o caminho a nível nacional.

A mesma análise é válida para a Chéquia, onde o partido do antigo primeiro-ministro Andrej Babis, que perdeu as últimas eleições presidenciais, está à frente nas eleições europeias. Para ele, é também a perspetiva de voltar ao poder, talvez nas próximas eleições presidenciais.

É, pois, mais provável que os eleitores votem por razões nacionais, económicas e sociais – neste momento, o aumento dos custos da energia, os problemas da inflação – do que por questões europeias, sejam elas instituições europeias, as políticas europeias ou mesmo a guerra na Ucrânia.

Em França, as questões nacionais prevalecem sobre as europeias, para metade dos inquiridos, segundo uma sondagem da IPSOS para o “Le Monde”, para o Cevipof, para a Fondation Jean Jaurès e para o Institut Montaigne. Afirmaram 53% dos inquiridos que teriam em conta, para determinar o seu voto, “sobretudo as propostas dos partidos sobre questões nacionais”, e 47% sobre questões europeias. Além disso, 52% dos inquiridos afirmaram que “votariam, sobretudo, para manifestar o apoio ou a oposição ao Presidente da República ou ao governo.

De acordo com o estudo, a europeização das preocupações está socialmente dividida. “Em certos círculos – penso, em particular, nos trabalhadores de colarinho branco, nos executivos e nos trabalhadores com menos de 50 anos – há a consciência de que a Europa é mais do que algo distante em Bruxelas ou em Estrasburgo”, explica Pascal Perrineau. “Por outro lado, em certos círculos mais afastados da Europa – penso nos operários, nos empregados, nos desempregados [...] as preocupações nacionais sobrepõem-se muitas vezes às preocupações europeias”, explica o autor de “O gosto pela política”.

Em contrapartida, as questões europeias, como a imigração, a Política Agrícola Comum e o apoio à Ucrânia, também estão a entrar nas eleições nacionais. Além disso, as questões nacionais e europeias estão tão interligadas que, por vezes, é difícil separá-las.

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A maioria dos Europeus prioriza o combate à inflação. Os Portugueses são os mais preocupados com o aumento do custo de vida e as desigualdades. A direita dá mais atenção às questões sociais, na eleição de 2024 do que em sufrágios anteriores, segundo uma sondagem da IPSOS, em exclusivo para a Euronews, a primeira do género a ser realizada em 18 países europeus, na antecâmara do sufrágio europeu.

No contexto da crise inflacionária sentida em 2023, sobretudo no atinente aos alimentos, o aumento do custo de vida preocupa 68% dos inquiridos (mais de um terço). Depois, a maioria dos eleitores (64%) exige a redução das desigualdades e a preservação dos sistemas de proteção social. A preocupação com o bem-estar e o nível de vida está bem presente na mente dos Europeus, com 62% a reclamarem mais crescimento económico. Em quarto lugar nas prioridades, está a luta contra a imigração ilegal (59%), uma das bandeiras da extrema-direita, o que reflete o crescimento desta ideologia na Europa. Logo a seguir, surge o combate ao desemprego (57%). E, por fim, vem a resposta às alterações climáticas (52%).

Os eleitores, com especial incidência no Sul da Europa, estão crescentemente virados para uma UE mais social. De acordo com a referida sondagem, 84% dos Portugueses demonstram maior preocupação, face à subida dos preços. Na segunda posição, aparecem os Espanhóis (76%) e, em terceiro lugar, estão os Italianos (71%), seguidos dos Franceses (69%). 

Na realidade, mais de dois terços dos Europeus (68%) estão preocupados com a alta de preços, apesar do abrandamento registado, em janeiro, em 15 dos 27 países da UE. Só para 7 % dos potenciais eleitores, é que a inflação não é uma prioridade, com os Finlandeses a serem os menos preocupados com o custo de vida. 

Sinal dos tempos de crise é os cidadãos da UE terem um sentimento de empobrecimento geral. Assim, 64% das pessoas querem que o bloco europeu salvaguarde os seus direitos sociais e pedem que as desigualdades sociais sejam reduzidas. Apenas 8 % são contra. 

Os Portugueses (82%) estão, novamente, no topo, enquanto os Polacos são os menos preocupados com as discrepâncias no nível de vida. De Portugal vem também o pedido mais veemente para políticas que estimulem o crescimento económico. Nestes termos, 62% dos inquiridos exigem à UE medidas eficazes para impulsionar o crescimento económico. E os Neerlandeses são os menos favoráveis a qualquer forma de intervenção à escala europeia para robustecer economia.

A direita está mais atenta às questões sociais. Nas eleições de 2024, as questões sociais não são apenas prioridades dos partidos de esquerda e de centro-esquerda. Os  conservadores moderados, os liberais e mesmo os que ainda estão mais à direita parecem reclamar mais intervenção legislativa social e económica da UE do que nos atos eleitorais anteriores. Os partidos de direita, incluindo o grupo dos Conservadores e Reformistas Europeus (ECR, na sigla inglesa) e, sobretudo, a extrema-direita do grupo Identidade e Democracia (ID), sinalizam a importância de medidas contra a inflação. Já no tocante às desigualdades e à proteção social, os partidos de esquerda e de centro-esquerda são, sem surpresa, os mais exigentes.

As formações da Grande Coligação – Partido Popular Europeu (PPE), Aliança Progressista dos Socialistas e Democratas (S&D), Renovar a Europa (RENEW) – são as que querem mais assertividade quando se trata de tomar medidas que estimulem o crescimento económico.

Os líderes da UE para os próximos cinco anos têm de encontrar uma solução para responder às exigências dos cidadãos, que podem exigir mais despesa pública. Assim, não se percebe como algumas listas de candidatos a eurodeputados, em Portugal, são tão pobres.

Os líderes dos dois principais partidos tomaram decisões inexplicáveis sobre as candidaturas às eleições do PE. O líder do Partido Socialista (PS) prescindiu dos nove eurodeputados, onde se contam três ex-ministros e dois ex-secretários de Estado, prescindindo da experiência adquirida em Bruxelas e em Estrasburgo, geralmente bem avaliada, e das posições adquiridas na bancada do S&D e no PE. E o líder do Partido Social Democrata (PSD), como refere o constitucionalista Vital Moreira, prescindiu do presidente da Câmara do Porto, “trocando-o, à última da hora, por um jovem e politicamente incerto comentador político na moda, cujo registo político inclui uma candidatura a deputado nacional pelo CDS [Partido do Centro Democrático Social], há anos”.

Tais decisões, segundo Vital Moreira, “só podem ser explicadas por desconhecimento sobre as exigências do mandato parlamentar europeu – que não é uma ociosa sinecura, como muita gente pensa – e por uma correspondente incapacidade para levar a sério o Parlamento Europeu e a sua importante agenda política no próximo quinquénio”. Além disso, é de realçar que nenhum líder anterior teve necessidade de substituir todos os candidatos; não se conhece hostilidade do grupo de eurodeputados à nova liderança; esta é uma das maiores delegações do PS no PE, preenchendo nove dos 21 eurodeputados portugueses; e o desempenho do grupo é tido como muito positivo.

Prevê-se que o PE, com 720 deputados, após as próximas eleições, mantenha o peso relativo dos dois principais partidos europeus, o PPE e o PSE/S&D; sofra perda significativa de Renovadores (liberais) e de Verdes; e tenha aumento acentuado da representação dos dois partidos mais à direita, isto é, o ECR e, sobretudo, o ID. Portanto, uma deriva à direita, o que devia ter suscitado mais empenho na formação de listas dos partidos democráticos!

2024.04.28 – Louro de Carvalho


sábado, 27 de abril de 2024

A democracia é imperfeita, mas os seus cravos não podem murchar

 

A 24 de abril, a Euronews publicou um artigo de Joana Mourão Carvalho intitulado “50 anos do 25 de Abril: o que ainda falta cumprir da revolução?”, em que reconhece que “Portugal está hoje melhor que há 50 anos”, mas sustenta que “a pouca produtividade da economia, a precariedade no trabalho e o definhamento dos serviços públicos colocam o país numa posição de atraso, relativamente a outros congéneres europeus”.

Por outro lado, a 25 de abril, publicou um artigo de Ilaria Frederico, sob o título “Portugal: 50 anos depois da revolução, os cravos estão a murchar?”, considerando que “o dia 25 de abril de 2024 marca o 50.º aniversário da Revolução dos Cravos, em Portugal”, a revolução que pôs fim a 50 anos de ditadura e deu início a uma era de democracia”. E aponta que a efeméride é celebrada num momento de mudança do panorama política, com o centro-direita a vencer as últimas eleições e a extrema-direita a ganhar terreno. Ora, a mudança à direita não é inédita. O que é excecional é a ascensão da direita radical. Ironicamente, um partido desses tem assento parlamentar com 50 deputados, no cinquentenário da revolução da Liberdade.    

Joana Mourão Carvalho exalta a comemoração dos 50 anos da democracia, com liberdade de imprensa, com eleições livres, com direito à saúde, à greve, ao ensino – as muitas conquistas da revolução. Porém, nas celebrações do 25 de abril, sempre se discute-se o que falta cumprir. 

A historiadora social Raquel Varela, professora da NOVA FCSH (Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa) aponta as concretizações, sobretudo, ao nível do espaço de trabalho, onde os Portugueses exigiram a amplitude de direitos nunca antes existentes, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) e o sistema educativo, o que, durante muitos anos, significou “avanços qualitativos” a nível social. Ao lado dos direitos, liberdades e garantias, emergiu o Estado social e a segurança e proteção no emprego, tendo muitas dessas coisas retrocedido, a partir do final dos anos 80. Porém, ficou a perceção esperançosa de que é possível viver de outro modo, que não pode ser apagada. “Pode-se voltar atrás nas concretizações materiais, mas não se volta atrás do ponto de vista da ideia em ato”, refere a historiadora.

“A consequência do retrocesso da democracia nos locais de trabalho foi o avanço brutal dos investidores e da remuneração do lucro, que faz com que as pessoas trabalhem 24 horas por dia na indústria, os médicos tenham pessoas, que não são médicos, a dizer quanto tempo devem estar com os doentes, os professores sem uma palavra a dizer sobre o currículo, ou seja uma completa degradação dos serviços públicos e essenciais à nossa vida”, frisa Raquel Varela

Portugal está melhor do que há 50 anos, mas a pouca produtividade, a precariedade e o definhamento dos serviços públicos colocam o país numa posição de atraso, face a outros. A produtividade por trabalhador em Portugal é 28% inferior à média dos países da Zona Euro. Há, pelo menos, 10 anos que o país se mantém na cauda da produtividade do espaço da moeda única. Em seis anos, foi ultrapassado pelos três países Bálticos (Estónia, Letónia e Lituânia) e, no contexto da União Europeia (UE), foi ultrapassado pela Croácia, Roménia e Polónia. Porém, ninguém diz a que preço os outros cresceram, nem se acusa a falta de organização do trabalho.

Para a coautora do livro Breve História de Portugal, as causas do problema de produtividade estão ligadas ao facto de o capital ser mais favorecido em detrimento do trabalho. “Há, sobretudo a partir do século XXI, uma intensa degradação dos serviços públicos com uma alta remuneração dos capitais pela via do juro, portanto, por via de empréstimos, da dívida pública, o que vai destruir a capacidade instalada, a capacidade de produzir do país, e também erodir os serviços públicos”, defende.

O produto interno bruto (PIB) per capita do país continua a abaixo da média europeia. Em 2023, segundo o Eurostat, Portugal ascendeu à 18.ª posição entre os Estados-membros da UE, subindo dois lugares, face a 2022, e ultrapassando a Polónia e a Estónia. No entanto, continua à distância de 17%, face à média comunitária. E o historiador económico Nuno Palma sustenta que “Portugal continua na cauda da Europa Ocidental”, sendo o seu país mais pobre. Assim, Portugal “não melhorou a situação relativa que tinha, em termos de ranking dos países, […] é o último, o mais atrasado em termos do capital humano, em termos dos níveis de educação da sua população, continua a ser o último da lista da Europa Ocidental, em termos do funcionamento das instituições políticas”. Porém, está muito diferente do que era antes. Só que a mentalidade tacanha não foi superada e o serviço à comunidade é objeto de menor empenho do que o interesse privado.

Com cinco décadas de vida democrática e há 38 anos na UE, o país terá de repensar a participação no projeto comunitário e diminuir a dependência, face aos dinheiros europeus, já que o previsível alargamento do bloco à Ucrânia e aos Balcãs Ocidentais se traduzirá numa diminuição dos fundos disponíveis para a política de coesão.

Na ótica do professor da Universidade de Manchester e autor do livro As Causas do Atraso Português, estes fundos levam a população a “nem sempre sentir a urgência de mudar” e as empresas a competir, sem “preocupação em criar dinâmicas transformativas para a economia”. Na sua ótica, “em vez de serem a salvação do país”, como são vistos pelos atores políticos, estes fundos podem ter “efeitos muito negativos”, tanto na economia, em particular na parte sujeita à concorrência internacional (os bens transacionáveis), o setor transacionável da economia, como no nosso processo político que existe em Portugal. No fundo, são “pensos rápidos” que escondem as consequências de algumas más decisões.

Além disso, o historiador acusa os dois grandes partidos que governaram em democracia de não terem sido capazes de gerar reformas que levassem o país a convergir com o resto da Europa.

Há quatro anos, Portugal desceu à categoria de “democracia com falhas”; e, desde então, não mais conseguiu regressar ao estatuto de “democracia plena”, em que estava em 2019.

O Democray Index 2023, divulgado pelo Economist Intelligence Unit, da revista The Economist (o Index foi criado, em 2006, para examinar o estado da democracia em 167 países), coloca o país em 31.º no ranking mundial, três posições abaixo do ano passado e o pior resultado desde 2013, devendo-se a queda, sobretudo, à avaliação atribuída ao critério “funcionamento do governo”, que regista a pontuação de 6,79, uma queda substancial, face ao ano passado (7,50). Assim, Portugal é um dos três países da Europa Ocidental classificados como “democracia com falhas”, a par da Bélgica e da Itália.

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Todavia, a revolução é celebrada institucionalmente e popularmente. A Assembleia da República, o Centro Cultural de Belém e o desfile militar, por um lado, e as ruas das principais cidades e vilas, por outro, bem o testemunham.

As pessoas que a viveram, em 1974, recordam os dias de caos e êxtase que Portugal viveu durante a Revolução dos Cravos e fizeram da data cinquentenária um dia memorável, um dia de festa. Até houve quem tenha guardado uma garrafa de vinho do Porto de 1974 e abriu.

A exposição do fotógrafo Eduardo Gageiro mostra, entre as imagens, uma parada militar, um soldado a retirar um retrato de Oliveira Salazar da sede da polícia e jovens em torno de um tanque com ar jubiloso. Na vasta galeria da Cordoaria Nacional, uma antiga fábrica de cordoaria à beira do Tejo, mergulha-se no passado, enquanto se aquece com a luz e o calor de um dia primaveril.

António de Oliveira Salazar tornara-se presidente do Conselho de Ministros, em 1932, na sequência de quatro anos de ministro das Finanças. Institucionalizou a ditadura, limitando as liberdades civis, impondo censura rigorosa e reprimindo toda a oposição política. Em 1968, sucedeu-lhe Marcelo Caetano, mantendo, sob a capa de modernização do regime do Estado Novo, a sua estrutura autoritária e prosseguiu as guerras coloniais em África, o que levou ao golpe de Estado e ao fim da ditadura, em 1974.

A 25 de abril de 1974, as forças armadas, apoiadas por civis, cansadas e indignadas com o horror das guerras coloniais em Angola, em Moçambique e na Guiné-Bissau, decidiram mudar de rumo. O povo saiu à rua e, no dia 1 de maio, eclodiu a Festa da Liberdade. A Constituição de 1976 lançou as bases da democracia pluralista. E o panorama político tem alternado entre governos do Partido Socialista (PS), de centro-esquerda, e do Partido Social Democrata (PSD), de centro-direita, por vezes, com a muleta do Partido do Centro Democrático Social (CDS).

A 10 de março de 2024, o povo virou mais uma página. Após oito anos de governo do PS, as eleições legislativas viram a oposição de centro-direita sair vitoriosa, por margem muito apertada e o Chega, partido da direita radical, obter 18% dos votos, um enorme avanço, face às eleições legislativas de janeiro de 2022. Esse partido tem um manifesto baseado em posições transfóbicas e xenófobas, entre outras, com forte oposição à imigração.

Vasco Lourenço, agora com 80 anos, tinha 31, em 1974. Enquanto capitão do exército, organizou, em Alcáçovas, a 9 de setembro de 1973, a primeira reunião clandestina para o derrube do regime. Compareceram 95 capitães, 39 tenentes e dois outros oficiais, marcando o primeiro passo para a revolução. Diz que os valores que os empurraram e os motivaram permaneceram na sociedade, o que nos permitiu ter 50 anos de democracia, mas não há democracias perfeitas. Acha que o Chega usa as regras democráticas para chegar ao poder, mas a História diz que, se partidos como este chegarem ao poder, tentarão acabar com a democracia. Por isso temos de os combater, dentro das regras democráticas.

Lourenço, ao regressar da campanha da Guiné-Bissau, decidiu jamais pegar em armas. Sentindo-se “instrumento de um poder ilegítimo em Portugal, um regime de ditadura, de repressão”, decidiu usar o seu estatuto militar “para derrubar esse regime”. E, enquanto a tropa se organizava para derrubar a ditadura, figuras menos visíveis difundiam a propaganda antirregime na diáspora.

Muitos dos ativistas foram parar à prisão, onde passaram pela tortura, pela insónia forçada, pela administração de calmantes. Proibido de exercer qualquer atividade política em Portugal, após a detenção, Arnaldo Silva exilou-se em França. Agora, pensa que a ascensão da extrema-direita se deve, sobretudo, a fracassos de governos, que “não conseguiram dar resposta às preocupações das pessoas”. “Os que votam à direita são, muitas vezes, aqueles que já foram de esquerda e mudaram de lado, porque a esquerda não conseguiu resolver os problemas sociais”, observa.

As questões sociais foram prioridades da Amnistia Internacional (AI), em Portugal, na campanha eleitoral de 2024. Consciente dos avanços significativos em matéria de direitos humanos após a revolução e preocupada com o futuro, a AI emitiu recomendações a todos os partidos políticos, que incluíam a educação, o sistema de saúde e a habitação. “Os temas que realmente nos preocupam: a utilização de migrantes e refugiados como bodes expiatórios para assustar a população e ganhar votos”, especifica Pedro A. Neto, diretor-executivo da AI em Portugal, considerando: O racismo existe. Muitas vezes, manifesta-se de forma muito informal, em conversas de café ou nas redes sociais, onde as pessoas falam mal, só por falar. A diferença do Chega é que ele capitalizou esse racismo para torná-lo um discurso oficial. Normalizou este tipo de discurso, que é completamente desrespeitoso.”

Porém, o historiador e professor Ricardo Noronha, da Universidade Nova de Lisboa, sustenta que “a noção ampla de democracia, enquanto conjunto de direitos individuais e coletivos, não está ameaçada pelo facto de a extrema-direita ter conseguido 18% dos votos, nas últimas eleições”.

Entretanto, a Comissão do 25 de abril está a desenvolver esforços significativos para envolver todos os grupos etários neste ato de memória, especialmente os jovens. “Lançámos campanhas nas redes sociais, muito seguidas pelos jovens, como a #NãoPodias, que enumera 13 proibições e restrições anteriores à revolução, como a impossibilidade de votar livremente ou de se organizar politicamente”, explica comissária executiva Maria Inácia Rezola, e professora de História.

Tais iniciativas visam sensibilizar para as liberdades que hoje são um dado adquirido e que outrora eram inatingíveis. “A liberdade é como a saúde: só nos apercebemos da sua importância quando começamos a perdê-la”, diz Vasco Lourenço, admitindo como natural que quem nasceu em liberdade não questione o seu estado. Porém, os cidadãos jamais aceitariam viver sem liberdade. No entanto, temos de nos manter vigilantes, pois a História é cíclica e não podemos permitir que a liberdade volte a ser ameaçada. Segundo Arnaldo Silva, “a juventude portuguesa continua alerta e não deixará que as ambições políticas, económicas ou militares se sobreponham às suas liberdades e ideais”. E Ricardo Noronha confirma o interesse evidente dos jovens por este período histórico: “Quando visitamos escolas […], o entusiasmo dos alunos é palpável. Ao contrário do que se espera, eles ficam atentos, fazem perguntas e compartilham seus pensamentos, às vezes influenciados por narrativas familiares da época”, observa.

***

Não há de democracias perfeitas. E, registando-se ainda tantas falhas, a atitude correta não é hostilizar ou desvalorizar o 25 de Abril e deslocar o acento para outras datas, por importantes que sejam. É preciso continuar a pedagogia e antropagogia das liberdades, mobilizar as escolas, os trabalhadores, as empresas e os agentes da ação social e cultural para a batalha permanente da democracia política, económica, social e cultural – nas linhas da produtividade e da solidariedade. A democracia tem falhas em todos os países democráticos, mas os seus cravos, vermelhos e brancos, não podem murchar. Está em causa a dignidade humana!   

2024.04.27 – Louro de Carvalho

Presidente da Comissão Europeia pode não ser reconduzida

 

A recondução de Ursula von der Leyen na chefia do executivo da União Europeia (UE) parecia óbvia. Na verdade, o seu trabalho, nestes cinco anos de mandato, vale-lhe elogios, mas os últimos desenvolvimentos ameaçam o que parecia certo, pois a sua liderança perdeu brilho, na sequência da anulação da nomeação de Markus Pieper como enviado da Comissão Europeia para as pequenas empresas, um nome que fora escolhido por Von der Leyen. Além disso, é vista como um pouco errática a sua gestão da crise no Médio Oriente.

Assim, com o horizonte das eleições europeias por perto, vários pontos de interrogação se levantam sobre a que parecia a maior certeza para o próximo quinquénio: a recondução de Ursula von der Leyen para o cargo de presidente da Comissão Europeia. Ou seja, a possibilidade de não obter a aprovação dos líderes da UE e dos novos deputados europeus, no próximo verão, tornou-se uma perspetiva realista.

O principal argumento de Von der Leyen para a sua candidatura é a continuidade e a falta de concorrentes. No entanto, em Bruxelas, já circulam nomes alternativos e, mais tarde, podem surgir outros. “É óbvio que há sempre uma grande tentação de encontrar possíveis situações de fratura e encontrar divisões no Partido Popular Europeu (PPE), para pôr em causa a reeleição de Von der Leyen”, afirmou a vice-presidente do grupo parlamentar do PPE, Lídia Pereira, vincando que, nos últimos cinco anos, a presidente da Comissão levou a cabo “um mandato muito rico, em situações muito difíceis, com a pandemia e a guerra na Europa”.

Assumiu uma série de responsabilidades, nomeadamente na coordenação na área da Saúde, que se traduziu em iniciativas legislativas para robustecer a resposta da UE no plano da Saúde”, sendo o exemplo mais claro a gestão do processo de vacinação, só possível fazê-lo de forma célere, porque a presidente da Comissão Europeia assumiu a responsabilidade da sua coordenação”.

É consensual, em Bruxelas, que Von der Leyen soube impor-se como líder, alcançando um capital político na gestão de crises sem precedentes, na História da construção europeia, que tornariam natural a sua recondução no cargo. Contudo, embora seja cedo para abordar o tema da futura liderança da Comissão Europeia, pois é necessário aguardar o resultado das eleições europeias, de junho (em Portugal, no dia 9 e, no resto da UE, entre os dias 6 e 9), para se ver a configuração do Parlamento Europeu (PE), já se nota, nos corredores europeus, um ruído de fundo sobre a possibilidade de Von der Leyen não continuar na liderança do Executivo comunitário.

O caso mais recente é o Piepergate, assim denominado em alusão ao nome do eurodeputado Markus Pieper, do partido conservador alemão (CDU), nomeado como enviado da UE para as Pequenas e Médias Empresas. Ora, o facto de pertencer à família política europeia e ao partido alemão de Ursula von der Leyen, levou a nomeação a ser vista como “favorecimento político”. Para o PPE, que inclui a CDU alemã, “é um assunto encerrado”, já que o próprio Pieper retirou a sua candidatura, pelo que o processo de escolha pode continuar.

Não obstante, a bancada dos socialistas entende que o caso evidenciou fissuras na liderança de Von der Leyen. Alguns comissários europeus, incluindo alguns dos mais destacados do Executivo comunitário, manifestaram o seu descontentamento. Foi o caso do comissário com a pasta da Indústria e Mercado Interno, o liberal francês Thierry Breton, ou do comissário com a pasta da Economia, o socialista italiano Paolo Gentiloni, que solicitaram a revisão transparente e colegial do processo de nomeação. A crítica foi acompanhada, no Executivo comunitário, por outros dois socialistas: Josep Borrell e Nicolas Schmit – respetivamente, o chefe da diplomacia europeia e o candidato dos Socialistas e Democratas (S&D) à presidência da Comissão.

O Comissário Europeu do Orçamento e Administração, Johannes Hahn, defendeu a nomeação de Markus Pieper, afirmando que o processo foi transparente e seguiu as regras e procedimentos estabelecidos. Todavia, a controvérsia alcançou um patamar tal que o PE votou uma emenda a exigir que a nomeação fosse reconsiderada e o processo de nomeação “transparente”. A emenda, proposta por membros dos Verdes, do S&D e do Renovar Europa, marcou a insatisfação pela escolha de Pieper, que teria sido favorecido, em relação a outros candidatos, incluindo mulheres, de Estados-membros com menor representação e com melhor qualificação.  

A este caso junta-se o que corre na Justiça, sobre a transparência na aquisição de vacinas, levando a que Von der Leyen tenha ficado fragilizada, num contexto em que “precisará sempre” do voto favorável de outras famílias políticas, como os socialistas, os verdes e os liberais. Porém, mesmo fora da família política de Von der Leyen, alguns, como o socialista Pedro Marques, reconhecem que a presidente “fez um trabalho muito sólido”, no primeiro mandato. Exemplo disso é o papel importante da Comissão na pandemia, quando era preciso unir os europeus, ou a unidade que Von der Leyen conseguiu no Conselho, após a agressão russa à Ucrânia.

Por outro lado, a reação hesitante de Von der Leyen, que tardou em condenar a resposta de Israel aos ataques do Hamas, gera mais divergência na segunda maior força política no PE. Contudo, mantém-se a ideia de que Ursula von der Leyen “será sempre uma candidata forte”, apesar de, quando foi eleita como Spitzenkandidat (cabeça de lista) pela maior família política no PE, no congresso do PPE, a 7 de março, em Bucareste, na Roménia, a aparente certeza num segundo mandato ter sido questionada, de imediato, pelo comissário Thierry Breton, que destilou todo o seu azedume numa mensagem na rede social X, com o detalhe curioso de ser a conta oficial como comissário da Indústria e Mercado Interno.

De acordo com os dados apresentados pelo PPE, 737 delegados tinham direito de voto, mas só 591 se registaram para votar. Von der Leyen recolheu 400 votos a favor e 89 contra.

“Apesar das suas qualidades, Ursula von der Leyen foi superada pelo seu próprio partido”, publicou Breton no X. “O próprio PPE parece não acreditar na sua candidata”, continuou Breton, levantando a possibilidade de Von der Leyen não continuar como presidente da Comissão.

Para a eurodeputada Lídia Pereira, foi um gesto de grande deselegância e de grande infelicidade, desde logo por se tratar de um colega de Von der Leyen e que faz parte da sua equipa, quando se exigia maior recato no papel de comissário. “Cada um tem as suas agendas”, salienta Lídia Pereira, admitindo que, sendo Thierry Breton alguém que é “conhecido por fazer o seu finca-pé”, pode “ter sido enviado por [Emmanuel] Macron [presidente de França] para fazer aquele número”. “Acho que Macron tem sido dos piores líderes europeus da História. Associado ao chanceler alemão, mas em particular a Macron, que se assume como europeísta convicto, mas não fez, nos últimos anos, mais do que garantir única e exclusivamente os interesses franceses”, afirmou, considerando que Macron “pode estar melindrado com alguma coisa que não tenha conseguido”.

A recondução para segundo mandato não é tradição na UE, embora haja exceções, como Jaques Delors que, entre 1985 e 1995, cumpriu três mandatos, um dos quais de dois anos. Também Walter Hallstein, o primeiro presidente da Comissão da então Comunidade Europeia, esteve no cargo entre 1958 e 1967, num longo mandato. Recentemente, vários líderes estiveram à frente das instituições por mais de um mandato, por exemplo, Durão Barroso, que liderou a Comissão Europeia entre 2004 e 2014. E, no Conselho Europeu, o cargo de presidente, criado com o Tratado de Lisboa, teve já três líderes e todos repetiram o mandato.

***

Perfilam-se vários candidatos à presidência da Comissão, surgindo, em primeiro lugar, o italiano Mario Draghi, de 76 anos. O ex-presidente do Banco Central Europeu (BCE) e primeiro-ministro de Itália, entre fevereiro de 2021 e outubro de 2022, foi apontado a presidente do Conselho Europeu, mas o facto de já estar de volta a Bruxelas, onde está a trabalhar num plano para tornar a UE mais competitiva, dão-no como hipótese para a Comissão. Próximo do presidente francês, Emmanuel Macron, a sua ausência de filiação política pode ser uma desvantagem, com o PPE a hesitar em deixar o cargo nas mãos de alguém sem lealdades claras.

Se Von der Leyen não avançar, outras mulheres do PPE podem ter a sua hipótese, com maltesa Roberta Metsola, atual presidente do PE, a liderar a lista. Eleita pela “Time” como uma de cem líderes emergentes que ajudaram a definir o Mundo, em 2023, manteve-se acima das disputas políticas e assumiu um papel de liderança na política externa, tendo sido a primeira líder da UE a visitar Kiev, após a invasão russa. Tem carisma e juventude, mas falta-lhe experiência em cargos executivos. A par disso, a ilha onde nasceu tem pouco peso político em Bruxelas.

O presidente romeno, Klaus Iohannis, é elogiado tanto por Macron como por Olaf Scholz e é apreciado pelos líderes conservadores da UE, por ter mantido o seu país próximo do campo pró-europeu e pró-Ocidente. Tem a seu favor o facto de muitos acharem que chegou a hora de um dirigente de um país de Leste liderar a Comissão Europeia. Se Von der Leyen não avançar, ele contará com o apoio do PPE. Tudo dependerá do desfecho da corrida a secretário-geral da Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO), em que protagonizou o desafio ao neerlandês Mark Rutte, o favorito que tem o apoio dos Estados Unidos da América (EUA). 

Há quem veja na relutância de Macron em declarar apoio a Von der Leyen uma estratégia do presidente francês para tentar colocar um compatriota à frente da Comissão Europeia. E Christine Lagarde, presidente do BCE, surge bem colocada, devido à sua experiência em cargos executivos. Além desse lado mais económico, é mulher. Contra ela joga o facto de não ser muito popular junto da equipa no BCE, além de a própria nunca ter deixado transparecer o desejo de deixar a liderança daquela instituição antes do fim do mandato de oito anos, que termina em 2027.

Caso Von der Leyen caia, o PPE pode fazer avançar o primeiro-ministro croata, Andrej Plenkovic, para a presidência da Comissão. A sua candidatura às europeias pelo seu partido HDZ leva alguns analistas a pensar que pode estar cansado da política nacional. E os oito anos à frente do governo deram-lhe a experiência e as relações necessárias em Bruxelas.

E há outros possíveis candidatos. Basta recordar o que aconteceu em 2019, com a escolha de Von der Leyen, para perceber que o processo de escolha dos líderes das instituições europeias pode estar cheio de surpresas. E, sem falar num eventual nome saído da cartola de última hora, há outros que surgem nas listas de potenciais candidatos, a começar pelo francês Thierry Breton. O comissário da Indústria e do Mercado Interno não se coibiu de criticar a chefe; e, se algumas fontes dizem que terá sido criticado por Macron, outras garantem que o presidente francês não terá ficado muito incomodado. Outro candidato pode ser o primeiro-ministro grego, Kyriakos Mitsotakis, cuja experiência e popularidade no PPE e o facto de ser poliglota jogam a seu favor.

O certo é que o grupo dos Conservadores e Reformistas Europeus (ECR, na sigla inglesa), de direita, decidiu não apresentar candidato à presidência da Comissão. Em comunicado, adiantou que a decisão de não apresentar candidato principal (‘spitzenkandidat’) ao cargo ocupado por Von der Leyen foi tomada por unanimidade pela liderança do grupo, presidida pela primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni. Tal decisão prende-se com o facto de o sistema ter sido contornado, em 2019, com a escolha de Ursula von der Leyen, que não estava na corrida. Por outro lado, o ECR não é favorável ao sistema de “spitzenkandidat”, de tendência federalista, e sustenta que a escolha do presidente da Comissão se mantenha como prerrogativa do Conselho Europeu.

O ECR proclama a soberania dos Estados e defende prioridades como o reforço da indústria de defesa da UE, a cooperação com a NATO e o investimento em tecnologia e segurança.

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Na UE, a mediocridade leva a que se gaste muita energia nos jogos de poder, tal como nos seus Estados-membros. Nem sempre a competência é o critério principal.

2024.04.26 – Louro de Carvalho


sexta-feira, 26 de abril de 2024

Abomino a aposição de rótulos a pessoas

 

Sim, abomino rótulos expressamente colados a pessoas, a não ser numa avaliação muito sintética das qualidades da pessoa, em contexto académico e com a necessária e adequada explicação. Fora desse contexto, a rotulagem pode ser falsa, inadequada, parcelar e até ofensiva. Di-lo quem já foi rotulado com as mais diversas marcas políticas e não só.

Numa cidade onde vivi em regime de independência, em relação à instituição que servia e à família, era rotulado de comunista, pois o cabelo relativamente comprido “o denunciava” e, como participava em algumas sessões de dinamização sociocultural e dinamizava outras, não era inteligível que fosse de outro modo. Era complicado falar às pessoas de igualdade de direitos e de deveres, de liberdades e de garantias sociais, de igualdade entre homens e mulheres ou da necessidade de abolir a condição social e familiar de filhos ilegítimos. Ainda não tinha sido publicado o Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de novembro, a primeira grande reforma do Direito de Família. Abordar a necessidade da partilha cristã de bens, embora não obrigatória por lei, era obstruir o exercício do sagrado direito de propriedade. Porém, a culpa não era minha. Talvez fosse do seminário ou do Concílio Vaticano II, cujos documentos, na edição portuguesa, tinham sido objeto de alguma censura política. Porém, nós sabíamos Latim…  

Além disso, secretariava reuniões de agricultores orientadas por técnicos do Instituto de Reorganização Agrária (IRA), assessoradas por três advogados, com vista à sensibilização para o associativismo agrário, nomeadamente na modalidade de cooperativismo e do emparcelamento de terras, a rotulação pareceria a mais adequada. Na verdade, o diretor do Centro de Promoção Social Rural, que organizava as ditas reuniões, conotado com a direita política, era intocável. Havia três advogados a assessorar as reuniões: um socialdemocrata, um centrista e um comunista. Ora, as pessoas que não estavam nas reuniões só me viam lá a mim e ao advogado comunista.

Efetivamente, durante o processo revolucionário em curso (PREC), quem proferisse asserções díspares das que emolduravam a ação governativa era tido como fascista e reacionário. Também o fui. Ou não tivesse frequentado o seminário até ao fim. E quem proferisse determinadas asserções desalinhadas do pensamento do caciquismo local ou andasse de cabelo comprido era considerado comunista. Também paguei para este peditório, ainda, para mais, andava rodeado de rapazes e de raparigas no quotidiano; por outro lado, quando eu estava na igreja, as pessoas anciãs estavam de olhos fechados e não me viam.

Na manhã de um determinado dia, fui surpreendido com um convite, dito urgente, para fazer uma palestra à Liga Agrária Católica com um paralelo entre os princípios programáticos dos partidos políticos e a doutrina social da Igreja (DSI). Isto, porque o palestrante escolhido se escusara à última da hora, por motivos de força maior. Muni-me dos materiais que chegavam à redação do semanário de que era colaborador e preparei a palestra. À hora aprazada, palestrei e dispus-me para responder às questões que iam sendo levantadas, num serão de cerca de duas horas e meia. Pareceu-me que o auditório ficara bastante esclarecido e satisfeito. Contudo, gente que ali não estava adivinhou “comunismo”.                    

Na vila, onde passei a residir, rotularam-me, no mesmo mês, de comunista (era preciso rezar por mim), de socialista, de socialdemocrata e de democrata-cristão. Viram-me, sem eu estar presente, fisicamente ou em fotografia, em comícios dos respetivos partidos, quando, em dois dos casos, estava de cama com gripe e, nos outos dois, me encontrava fora da vila, em fim de semana.

Quando assumi a paroquialidade de três freguesias, entre alegrias e preocupações, entre aplausos e suspeitas, surgiram também os rótulos. Se entrava na tasca ou no café, obviamente não me chamavam aquário; se punha as pessoas a rezar ou se fazia procissões, era beato ou “aquilo era uma seca”. Se me viam com determinadas pessoas, era comunista; se me viam com outras, ou não reparavam ou chamavam-me fascista. Criticavam-me por não fazer avisos sobre atividades de partidos políticos, “nem pelos nossos” (AD – Aliança Democrática). Condenava os incêndios, mas não dizia que eram os comunistas que os provocavam (eu sabia que não era bem assim); condenava determinadas doutrinas, mas não as atribuía aos comunistas e aos socialistas (sabia que eram transversais); não fiz campanha pela TVI, a TV da Igreja, antes a desaconselhei (sabia que uma sociedade anónima dispersa em bolsa não ficaria vinculada a determinada instituição).

Mais tarde, como sempre insisti no relacionamento institucional, independentemente da cor partidária dos seus dirigentes, colaborava com a câmara municipal (centrista) da vila sede do concelho em cuja área geográfica trabalhava e com a (socialdemocrata) da vila sede do concelho em cuja área geográfica residia. Assim, era tido como centrista, num concelho, e como socialdemocrata no outro. Ainda bem. Passava por entre as pingas da chuva.    

Numa segunda-feira, pela manhã, ia a conduzir, vestido à civil, para o aquartelamento militar onde exercia as funções de capelão. Ao passar em frente do posto da Garda Nacional Republicana (GNR) de uma vila, um militar da GNR mandou-me parar e perguntou se ia para a cidade e podia levar um senhor que ali estava. Respondi que sim e seguimos. Mais adiante, passou por nós uma série de viaturas militares e saudei o respetivo comandante. Porém, o senhor que me acompanhava, lendo, no painel do porta-luvas, o nome do proprietário do veículo (ao tempo, era obrigatório), comentou: “Ó Sr. A…! Há três tipos de pessoas que eu não gramo, nem a tiro!”

Eu retorqui: “Diga lá, que podemos ter a mesma opinião!”  

Ao que adiantou: “Militares, padres e comunistas!”

E eu atirei: “Apanhou-me em duas…” 

“Não me diga que é militar e comunista!”, reagiu.

“Não”, concluí, “sou militar e padre!”

É de referir que, ao longo da viagem, não disse mais palavra e, à despedida, nem sequer disse: “Até à próxima!”  

***

Este já logo comentário pessoal e político, rematado com um episódio real que parece anedótico, surgiu-me a propósito da pretensa e sumaríssima caraterização, pelo Presidente da República (PR), do perfil do atual e do ex-primeiro ministro, que se tornou o assunto mais discutido no país político, na véspera do cinquentenário do 25 de Abril. E isso fez-me lembrar de quando, em jornais, Marcelo Rebelo de Sousa, feito professor, avaliava, pretensiosamente, com notas, como na Academia, os políticos que estavam na berra, nem sempre de forma ajustada.

Agora, o PR vê António Costa como alguém lento e reflexivo, fruto da ascendência “oriental”, enquanto Luís Montenegro é “completamente diferente”, pois tem um perfil “rural” apressado.

O chefe de Estado não deixou de se autoanalisar neste aspeto, definindo-se como “um ocidental apressado”. De presunção e de água benta, cada um toma o que quer.

As declarações presidenciais, que tiveram grande repercussão, durante todo o dia 24 de abril, foram prestadas, inicialmente, num jantar com jornalistas estrangeiros que trabalham em Portugal, no qual também estavam presentes alguns jornalistas portugueses.

As declarações sobre o líder do Partido Social Democrata (PSD) surgiram quando o PR explicava como via a mudança de governo, antes do previsto. “Ele [Luís Montenegro] é uma pessoa que vem de um país profundo, urbano-rural, com comportamentos rurais. É muito curioso, difícil de entender, precisamente por causa disso. Agora, é completamente independente, não influenciável, não populista e improvisador”, explicou.

O chefe de Estado acrescentou que “estaria feliz” e acostumado com a governação de António Costa, até 2026, mas a dissolução do Parlamento foi necessária ante a demissão como primeiro-ministro (PM) e como secretário-geral do Partido Socialista (PS). “Não imaginam como é difícil adaptar-me a um novo começo”, disse, em referência ao novo governo. E salientou que se está a habituar com o estilo do líder do PSD e que o recomeço “é estimulante” e “dá muito trabalho”.

O PR ainda frisou não ter dúvida de que Montenegro vai “ganhar todos os debates no Parlamento”, pela capacidade de oratória. Ora, todos sabemos que é fácil um PM ganhar um debate parlamentar.

Em relação aos desafios futuros, sustenta que o presidente do PSD terá de lidar com a polarização.

Só lhe faltou dizer que Montenegro era parecido com Salazar, também este de origem rural e de atitudes rurais, que lidou muito bem com a polarização: os dele e os que não eram dele.

Acusar de rural um político, no país global, tem como subjacente a divisão entre urbanos e rurais. Aliás, o PR rotulou o PS de urbano e metropolitano, de origem urbana; e o PSD de rural-urbano, de origem rural. Bem sabe o chefe de Estado que a corte na aldeia não funciona. Todos os partidos têm origem urbana. No limite, têm génese numa casa, prédio urbano, e não num prédio rústico.   

Em relação ao ex-primeiro-ministro, é anacrónico o rótulo de oriental. Que se saiba é cidadão português. Não podemos rotular os cidadãos portugueses pela origem étnica ou pela origem continental ou insular. Caso contrário, teremos de questionar se o PR é de origem lisboeta ou minhota. Pelos vistos, uma sua avó era de Celorico de Basto. 

Hoje, Portugal é a mescla e, em muitos, casos de produtos de origens diversas. Há, entre nós, muito sangue árabe, judeu, africano, asiático, americano e de diversos países europeus. Puro-sangue lusitano já nem no cavalo existe. 

***

As declarações aos jornalistas estrangeiros, como se disse, tiveram grande impacto, durante todo o dia 24 de abril. E, quando foi questionado pelos jornalistas portugueses, numa passagem pelo Largo do Carmo, o PR explicou as frases: “O primeiro-ministro tinha muito a ver com o PSD profundo base rural-urbana, e assim foi a raiz do PSD, ao contrário do PS, que é metropolitano, urbano-urbano”, reforçou, afastando a ideia de ter sido ofensivo ou mal interpretado: “Foram muito explicativas para jornalistas estrangeiros.”

A este respeito, o constitucionalista Vital Moreira, no blogue “Causa nossa”, não foi parco na crítica ao PR. Classifica de “insólitas” a suas considerações acerca da personalidade daquelas figuras partidárias, “nomeadamente a qualificação de Montenegro como ‘rural’ e de Costa como ‘oriental’, [que] são manifestamente descabidas no discurso presidencial”.

Com efeito, segundo o constitucionalista, “violam manifestamente um elementar dever de respeito e […] reserva institucional do chefe do Estado”; “embora de índole supostamente psicossocial, elas refletem os preconceitos típicos da elite lisboeta, contra os políticos que vêm da ‘província’ (caso de Montenegro) ou os que têm origem étnica exótica (caso de Costa)”; e “foram proferidas perante a imprensa estrangeira, onde se impunha ainda mais discrição e prudência institucional do PR, no seu juízo sobre os chefes de governo”.   

Vital Moreira é perentório: “Uma conduta condenável, sem desculpas nem atenuantes.”

Além disso, o constitucionalista aponta que Marcelo Rebelo de Sousa “esqueceu duas distinções que são essenciais num Presidente da República, como representante de toda a coletividade: a distinção entre aquilo que ele pensa e o que pode dizer e a distinção entre aquilo que ele pode dizer numa tertúlia de amigos de confiança e o que pode dizer publicamente”. Neste sentido, tem de se vincar a distinção entre o político que fala de tudo e de todos e “um PR que respeita a dignidade do seu cargo e a personalidade dos demais servidores da República com quem interage”.

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Não é preciso, nem possível dizer melhor do que Vital Moreira, “sobre o dever de reserva institucional”.

2024.04.25 – Louro de Carvalho