sábado, 20 de abril de 2024

Não há indícios de crime na Operação Influencer

 

O Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) decidiu contra o Ministério Público (MP) e mantém os arguidos da Operação Influencer sujeitos apenas a Termo de Identidade e Residência (TIR), a medida menos gravosa prevista na lei processual penal.

“Nenhum dos factos adiantados se traduziam em crimes” e não ultrapassam “o desenvolvimento das funções de cada um dos intervenientes, tendo todos eles atuado no âmbito das mesmas”, diz o comunicado do TRL, de 17 de abril, que acrescenta: “O Tribunal salientou, contudo, que não existe legislação em Portugal sobre a atividade de lóbi, legislação que, a existir, evitaria muitas situações dúbias, como algumas daquelas que foram apuradas nos autos.”

Os juízes desembargadores, porém, criticam “a incorreção de se tratarem assuntos de Estado à mesa de restaurantes, olvidando procedimentos e esquecendo a necessidade de se documentarem as relações havidas entre representantes de interesses particulares e os governantes no âmbito das suas funções”. Em todo o caso, o TRL conclui “que os factos apurados não são, só por si, integradores de qualquer tipo criminal”. Assim, Diogo Machado não tem de pagar a caução de 150 mil euros e fica sem a obrigação de não se ausentar para o estrangeiro; e Vítor Escária fica, igualmente, sem a obrigação de não se ausentar para o estrangeiro. Por isso, o Tribunal Central de Instrução Criminal (CIC) terá então de entregar os passaportes a ambos.

É, no essencial, a reposta ao recurso interposto pelo MP da decisão das medidas de coação, bem como pelos arguidos Vítor Escária, no processo que resultou na demissão do primeiro-ministro (PM), António Costa. Os três recursos apresentados foram distribuídos a diferentes juízes do TRL. A distribuição foi feita, por sorteio, a 16 de fevereiro.

O TRL analisou todos os factos invocados no despacho de apresentação a primeiro interrogatório, salientando bem que não se pode confundir um facto, enquanto acontecimento histórico, com o teor de escutas ou mesmo com notícias de jornais. Desta análise resultou que nenhum dos factos adiantados se traduziam na comissão de crimes, não ultrapassando o desenvolvimento das funções de cada um dos intervenientes [e] tendo todos eles atuado no âmbito das mesmas”.

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A 7 novembro, os cinco arguidos inicialmente detidos ficaram em liberdade. A decisão do juiz de instrução (JIC) Nuno Dias Costa – colocado no TCIC, o chamado “Ticão”, desde setembro – ficou muito aquém do pedido de promoção do MP, que pretendia a prisão preventiva, para Diogo Lacerda Machado e para Vítor Escária (próximos de Costa), cauções de 200 mil euros, para Afonso Salema, e de 100 mil para Rui Oliveira Neves (administradores da Start Campus), e a suspensão do mandato do presidente da Câmara Municipal de Sines, Nuno Mascarenhas. E não validou os crimes de prevaricação e de corrupção ativa e passiva imputados a alguns arguidos, considerando não existir indiciação de qualquer crime relativo ao Nuno Mascarenhas.

Segundo o comunicado do TCIC, o juiz considerou que Lacerda Machado e Vítor Escária estão “fortemente indiciados” em coautoria e na forma consumada de um crime de tráfico de influência.

A Operação Influencer levou à detenção de Vítor Escária (chefe de gabinete do então PM), de Diogo Lacerda Machado (consultor e amigo do então PM), dos administradores da empresa Start Campus Afonso Salema e Rui Oliveira Neves, e do presidente da Câmara de Sines, Nuno Mascarenhas, que ficaram em liberdade, após interrogatório judicial. Existem outros arguidos, como João Galamba, ex-ministro das Infraestruturas, Nuno Lacasta, ex-presidente da Agência Portuguesa do Ambiente (APA), João Tiago Silveira, ex-porta-voz do PS, e a Start Campus.

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Os juízes desembargadores do TRL consideram que o que o MP refere como alegada prevaricação de António Costa é apenas o exercício do poder legislativo e executivo. E, para isso, citam figuras de notáveis do Direito, como Marcello Caetano, Marcelo Rebelo de Sousa, Sérvulo Correia e Diogo Freitas do Amaral, para concluírem que a “função legislativa corporiza as opções vencedoras e a função administrativa dá-lhes execução” e que “jamais se poderá considerar sob o âmbito da previsão contida no tipo legal de prevaricação”.

Há, em certa medida, a corroboração, via judicial, do teor das declarações do ex-primeiro-ministro (ex-PM) aos jornalistas convocados para a residência oficial do chefe do governo, uns dias depois da apresentação do seu pedido de demissão e conhecida que foi a decisão do Presidente da República (PR) de dissolver a Assembleia da República (AR). Efetivamente, o ex-PM mantinha o princípio da autonomia do MP e o da independência dos tribunais, bem como o tempo próprio da Justiça, mas clamava que a Justiça não podia impedir, nem condicionar a ação política dos outros órgãos de soberania, nomeadamente pela produção legislativa e regulamentadora, bem como a capacidade de os governos promoverem ações e negociações para captar investimento (nomeadamente estrangeiro) e a desenvolver projetos considerados de interesse nacional.

Foi um dizer “Basta!” à Justiça, para o seu condicionamento do poder político stricto sensu.        

Desta feita, o TRL considera, como Nuno Dias Costa, que o crime de prevaricação não pode ser imputado a estes factos do alegado favorecimento da Start Campus, durante o processo legislativo do Simplex industrial, realizado por João Tiago Silveira. O que servirá também para as suspeitas do mesmo crime que, agora, o Departamento Central de Investigação Penal (DCIAP) imputa a Costa. “Em qualquer destas asserções, jamais se poderá considerar sob o âmbito da previsão contida no tipo legal da prevaricação”, diz o acórdão.

O acórdão do TRL invoca a autoridade doutrinária de Marcello Caetano (Manual de Direito Administrativo, 10.ª ed., 1.º vol., pg. 8), sobre as definições de ação política: “Várias podem ser as definições de função política: atividade dos órgãos do Estado cujo objeto direto e imediato é a conservação da sociedade política e a definição e a prossecução do interesse geral, mediante a livre escolha dos rumos ou soluções consideradas preferíveis.

Cita, a seguir, Marcelo Rebelo de Sousa (Lições de Direito Administrativo, Vol. I, 1999, pg. 10), sobre a noção de interesses essenciais da coletividade: “Prática de atos que exprimem opções sobre a definição e prossecução dos interesses essenciais da coletividade, e que respeitam, de modo direto e imediato, às relações dentro do poder político e deste com outros poderes políticos.”

De Sérvulo Correia (Noções de Direito Administrativo, vol. 1.º, pg. 30) recolhe o atinente aos fins últimos da comunidade: “Atividade de ordem superior, que tem por conteúdo a direção suprema e geral do Estado, tendo por objetivos a definição dos fins últimos da comunidade e a coordenação das outras funções à luz desses fins.”

E cita Freitas do Amaral (Curso de Direito Administrativo, 1.º, 2.ª ed., pgs. 48/49), sobre a função legislativa: “Nas grandes opções que o país enfrenta ao traçar os rumos do seu destino coletivo, a função legislativa corporiza as opções vencedoras e a função administrativa dá-lhes execução.”

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O acórdão do TRL também se pronuncia sobre o ex-PM, embora este não tenha sido constituído arguido, o que alguns entenderam como abusivo, já que não houve recurso da parte do mesmo, pois nem sequer foi notificado. Porém, segundo a alegação do MP, no seu recurso, o então PM é suspeito da prática do crime de prevaricação, pela aprovação do novo Regime Jurídico de Urbanização e Edificação no Conselho de Ministros, a 19 de outubro de 2023.

Corria, por isso, um inquérito no Supremo Tribunal de Justiça (STJ), por ser então o fórum competente. Porém, como perdeu a qualidade de PM, o STJ decidiu entregar a investigação ao DCIAP. Ou seja, o processo passou para a primeira instância, ficando o suspeito igual a qualquer cidadão, mas a investigação será autónoma das restantes investigações da Operação influencer.

O ex-PM demitiu-se, a 7 de novembro, depois de o seu nome ter sido citado num comunicado da Procuradoria-Geral da República sobre uma investigação judicial ao centro de dados de Sines e a negócios do lítio e do hidrogénio. Ora como, no recurso do MP, António Costa é associado à ação dos demais suspeitos, é natural que o TRL o tenha incluído no teor do acórdão.

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Reagindo à decisão do TRL, a procuradora-geral da República reforça que a investigação vai continuar: “O Ministério Público, pese embora a decisão proferida, prosseguirá as investigações, tendo por objetivo, nos termos da lei, apurar os factos suscetíveis de integrar a prática de crimes, determinar os seus agentes e a sua responsabilidade”, disse fonte oficial de Lucília Gago.

Do lado do Partido Socialista (PS), há quem peça explicações ao MP e até a demissão da procuradora-geral da República. Ana Catarina Mendes, ex-ministra e deputada do PS, frisa que o MP deve “explicações aos Portugueses”, uma vez que António Costa se demitiu, “sabendo que era inocente”. Assim, a Justiça “derrubou um governo e um parlamento”, com base em meras suspeitas, o que “é gravíssimo em democracia”.

Pedro Nuno Santos, secretário-geral do PS, lembra que caiu um governo de maioria absoluta e reforça que António Costa, como cidadão e ex-PM, merece ser ouvido. E insiste que a questão é mais ampla: “Somos todos nós. É a Democracia que está em causa”, atira. E a deputada Mariana Vieira da Silva, ex-ministra da Presidência, assumiu que o acórdão do TRL exige “explicações e consequências”. Exige que o ex-PM seja ouvido. E sublinha que, à medida que o tempo passa, havendo decisões de juízes sobre o processo, continuamos sem saber o que justificou “aquele parágrafo” e quais são as acusações a António Costa para que se possa defender.

Mariana Mortágua, deputada do Bloco de Esquerda (BE) assume que as explicações da Procuradoria-Geral da República sobre o envolvimento de Costa foram “insuficientes”.

Rui Rio, ex- líder do Partido Social Democrata (PSD) questiona se o PR não se arrepende de não ter querido a reforma da justiça. “Um Tribunal superior a humilhar um MP, que, ao funcionar assim, envergonha o País e agride a democracia e a separação de poderes. Continuará o PR a não se arrepender de não ter querido a reforma da justiça e de orientar as suas decisões pela PGR que temos?”, refere Rio.

André Coelho Lima, ex-deputado do PSD, assume que “todos errámos nas nossas vidas pessoais e profissionais”, mas que somos responsáveis pelos nossos erros. E diz que “O princípio da irresponsabilidade decisória que vigora no sistema de Justiça cauciona a leviandade de atuação”.

Ao invés, André Ventura, líder do Chega, acredita que existe “pressão civil”, para ilibar Costa, defende uma investigação, na AR, aos negócios do lítio e do hidrogénio e sustenta que ou se tem uma justiça igual para todos ou não se tem. Ainda assim, não crê que “haja uma tentativa da Presidência, muito menos do tribunal, de fazer branqueamento”.

A defesa de Afonso Salema assume que as suspeitas que recaem sobre António Costa vão cair por terra. “Com os elementos que se conhecem não há suspeitas contra ele”, disse Pedro Duro.

O advogado de Vítor Escária considerou que a decisão do Tribunal da Relação é uma vitória para a defesa dos arguidos e que o MP devia ter “parado para pensar”. E defende que o MP deve refletir “serena, mas seriamente, naquilo que foi a sua atuação no âmbito deste processo”. “Impõe-se que haja alguma reflexão sobre a conduta do Ministério Público”, sublinhou.

António Marçal, presidente do Sindicato dos Funcionários Judiciais (SFJ), considerou que a evolução deste processo “não é natural”. “É normal que o MP faça uma investigação e, depois, um juiz considere que não corresponde à sua análise, é o sistema de justiça a funcionar”. E, sobre a Operação Influencer e o que levou à demissão do ex-PM, diz que “não é natural”. Todavia, questiona se a demissão se deve, única e simplesmente, à investigação do caso Influencer.

Já Paulo Lona, presidente do Sindicato dos Magistrados do MP, defende que a atuação do MP deve ser “avaliada globalmente”, mas que ainda é cedo para ser feita uma análise do trabalho.

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É grave operadores judiciários terem, voluntária ou involuntariamente, originado a queda do governo de maioria absoluta e da AR, de que dimanara tal executivo. No mínimo, exige-se-lhes a respetiva autocrítica. Todavia, a figura de topo do MP, nomeada pelo poder político stricto sensu, deve tirar consequências e apresentar o pedido de demissão, mesmo que não haja cometido erro pessoal. O MP, se não tem agenda partidária, deve acautelar coincidências políticas como as que têm surgido e evitar a perceção de que existe guerra entre o MP e os tribunais.  

Também o PR não tem de dar palpites públicos sobre o futuro do ex-PM, que precisa de discrição, nem deve aduzir justificações que envolvam remorso ou reconhecimento de precipitação nas decisões soberanas, boas ou más, que tomou e que são totalmente da sua lavra e não de outrem.    

2024.04.21 – Louro de Carvalho

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