terça-feira, 16 de abril de 2024

A solidão do Papa Francisco: sina, emblema e necessidade

 

É proverbial a ironia do Papa Francisco por trás do seu reconhecimento de que está sozinho nas escolhas pastorais corajosas, como na recente concessão de bênçãos religiosas, embora não litúrgicas, a casais em situação irregular à Igreja, incluindo os casais de pessoas do mesmo sexo. Também parece deixar transparecer um certo medo, misturado com amargura, ao perceber que grandes setores da Igreja, incluindo alguns dos mais praticantes, não o seguem.

A este respeito, o teólogo Vito Mancuso aborda a crescente solidão de Bergoglio, tendo como pano de fundo a sua participação no programa Che tempo che fa.

Os apelos do Papa pelo meio ambiente e pela paz caem regularmente no vazio. Todavia, ainda que as suas advertências não sejam acolhidas, é certo que não há, no Mundo, outra autoridade moral e espiritual como a sua. E essa capacidade de questionar o poder político e económico, mesmo com o risco de fracasso, constitui o destino de Francisco.

É um extraordinário comunicador cuja solidão induz um sentimento de ternura. É bom termos um Papa que, apesar da dificuldade em governar e em se fazer ouvir nos níveis mais altos, é capaz de sintonizar, como poucos, sobre os problemas dos homens e das mulheres do nosso tempo, de escrever poderosas encíclicas em defesa da criação e da Humanidade, fáceis de compreender, mas difíceis de levar à prática. Afinal, a solidão de Bergoglio é a dos profetas que escutam a voz de Deus e olham além das contingências.

A solidão papal era obrigatória nos tempos de Pio IX e Pio XII, quando o Pontífice era distante das pessoas. Agora, desaparecido, há décadas, o plural majestático (nós) e banida a cadeira gestatória, o facto de o Papa estar isolado é problema eclesial. O próprio Francisco percebeu que não faltam os que, profanando o sentido genuíno da oração, já não rezam por ele, mas contra ele.

Não acertou totalmente as contas com as forças efetivas à sua disposição na Igreja. Em mais de dez anos de pontificado, criticou publicamente as condutas da Cúria Romana. É como se um primeiro-ministro criticasse, publicamente, os seus ministros. Daí resulta que não recebe especial simpatia do seu executivo, embora haja honrosas exceções.

Além disso, persiste um contínuo descontentamento à direita católica e à esquerda, com a primeira a censurá-lo por ter desconsiderado a Tradição e a segunda por falta de coragem. É paradigmática a questão da bênção a casais em situação irregular: por um lado, o Pontífice aprova-as; por outro, logo em seguida, especifica que devem ser feitas rapidamente e sem publicidade. Aparenta que desejaria isto, mas que não pode, o que se mostra difícil de se conciliar com o sentido último da religião. Com efeito, quem acredita, precisa de pontos firmes de apoio à fé.

Sobre esta matéria, chegou-se até a um documento do episcopado africano substancialmente contrário ao que estabelecido pelo Papa – quase um unicum na História da Igreja. É sintoma de que desapareceu o princípio de autoridade, outrora expresso na frase “Roma locuta, causa finita”. Todavia, foi o próprio Francisco quem contribuiu para o destruir, com a sua insistência sobre a colegialidade e sobre a sinodalidade. Infelizmente, a Igreja mostra que não está preparada para acolher estas mudanças. Se Bento XVI era um teólogo e menos um Papa, o seu sucessor é um profeta, mais do que um Pontífice.

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Já o jornalista Francesco Peloso sustenta que Francisco está cada vez mais sozinho e talvez isolado, não confiando em quase ninguém. Com efeito, faz e desfaz com base em critérios que podem ser compreendidos ou que podem ser difíceis de entender; dá entrevistas em quais cede a várias polémicas e avança, sem hesitação, rumo ao Jubileu de 2025, um ano cheio de eventos.

A solidão papal aparenta ser a condição em que se encontra, de momento, o líder da Igreja católica, mas trata-se de solidão mais procurada do que imposta.

Muitas das últimas decisões do Papa Bergoglio, além de serem surpreendentes no mérito, contradizem a vontade de afirmar o princípio sinodal na vida da Igreja.

Assim, depois de ter chamado, no verão passado, a Roma, um dos poucos colaboradores em quem parece confiar, o cardeal argentino Víctor Fernández, atual prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé (DDF), o Papa avança, a passos rápidos para dar corpo à visão de Igreja descrita e anunciada, muitas vezes, ao longo da última década. Porém, há atitudes que parecem ir em detrimento do sínodo geral da Igreja, convocado pelo Papa argentino, para chegar a escolhas mais partilhadas e colegiais, envolvendo também os leigos no processo. Às vezes, até parece que esse estilo de atuação em Igreja já não é uma prioridade.

Além disso, o Pontífice entrou numa dinâmica de “pressa”, provavelmente cônscio de que o seu tempo à frente da Igreja, ultrapassado o limiar de 87 anos, não será muito. Terá, segundo alguns, feito uma mudança de volta inteira (de 360 graus) na sua forma de proceder, tornando-se mais um papa soberano e um pouco menos bispo de Roma. Não obstante, não deixa de assumir o perfil de pastor, que assoma, pelo menos, em dois aspetos: na multiplicidade das vezes em que abandona o discurso escrito e passa ao improviso, mais em consonância com situação aqui e agora; e na constante preocupação com os temas que asfixiam a vida no Mundo.

Não pode passar eclipsado o facto de Bergoglio ter acelerado em alguns temas, depois da morte de Bento XVI. A presença do Papa Emérito foi pesada para Francisco, mais do que transpareceu.

Prova disso é a nomeação para o DDF – o instrumento principal da ação teológica e de governo de Ratzinger – precisamente do Cardeal Fernández, acompanhada de uma carta do Papa a declarar encerrado o período do antigo Santo Ofício como órgão de controlo: “A Igreja”, escrevia o Papa Francisco, em julho de 2023, “precisa de crescer na sua interpretação da Palavra revelada e na sua compreensão da verdade, sem que isso implique impor uma forma única de a expressar. Porque as diferentes linhas de pensamento filosófico, teológico e pastoral, quando se deixam harmonizar pelo Espírito no respeito e no amor, também podem fazer a Igreja crescer. Esse crescimento harmonioso preservará a doutrina cristã de forma mais eficaz do que qualquer mecanismo de controlo.”

É, pois, o contrário do que Ratzinger fizera, primeiro, como prefeito e, depois, como Papa. Assim se chega, em poucos meses, à “ Fiducia supplicans”, o documento que permite a bênção dos casais em situação irregular, e, recentemente, à “Dignitas infinita”, a declaração sobre a dignidade humana, talvez algo confusa nos conteúdos, apesar dos cinco anos de desenvolvimento, o que, se, por um lado confirma a doutrina clássica da Igreja sobre temas eticamente sensíveis, como o aborto, a eutanásia, a teoria de género, por outro lado, na orientação bergogliana, associa esses temas às grandes questões sociais da época: a guerra, a pobreza, o tráfico de seres humanos, a violência contra as mulheres, etc. Assim, estabelece que não há uma espécie de verdade “maior” e outra de verdade “menor”, na defesa da vida e da moral.

Também no caso, não parece que os protestos que surgiram no Mundo católico LGBTQ pela facilidade com que foi “liquidada” a discussão sobre a diversidade sexual – pelo Papa que maior sensibilidade mostrara sobre o assunto – voltando ao clássico bíblico “Deus os criou homem e mulher", afetem em muito a Santa Sé, interessada em desmantelar a abordagem de quem o havia precedido, mais do que em desenvolver uma discussão em sentido sinodal. Entretanto, da Alemanha e de outros ambientes católicos “liberais” no Mundo, chegaram ataques violentos contra a parte bioética da Declaração, sinal de que adicionar temas sociais em chave progressista, mantendo intacto o arcabouço tradicionalista no restante, é artifício que difícil de incorporar.

Também a referência ao vínculo entre Francisco e Bento XVI, reivindicada por Bergoglio em várias entrevistas, retratando um Bento XVI, o aliado mal aconselhado, quando não manipulado, por Monsenhor Georg Gänswein, seu secretário, descrito como uma espécie de Rasputin na corte vaticana, não só não é muito credível, dado o calibre da personagem, mas também parece ser o indicador do desconforto vivido ao longo do pontificado pelo Papa argentino, que pouco transpareceu. Além disso, Francisco vai nomear núncio apostólico Gäswein, para encerrar o caso.

Finalmente, mais um golpe de freio ao Sínodo, que deveria marcar nova etapa no caminho da reforma empreendida pelo Concílio Vaticano II, foi dado por Francisco, ao instituir dez grupos de trabalho – sobre os temas que emergiram da primeira fase da assembleia sinodal, do ecumenismo a “algumas questões teológicas e canónicas, em torno de formas ministeriais específicas” (incluindo o diaconato feminino) – que acompanharão o sínodo até à fase final de outubro, mas depois (surpresa) os seus trabalhos continuarão até junho de 2025 e, sobretudo, serão coordenados pelos diversos dicastérios da Cúria Romana. Resta saber que peso real que terão, a esse ponto, as resoluções tomadas pela assembleia sinodal, em outubro próximo.

Além disso, entre as decisões surpreendentes tomadas pelo Papa, no último período, está a defenestração de cardeal vigário para a diocese de Roma, Angelo De Donatis, nomeado penitenciário-mor (um papel menor na Cúria) e, por isso, demitido do cargo que ocupava. De Donatis tem 70 anos, quando o limite canónico que obriga a apresentar a renúncia à liderança de uma diocese para um bispo é de 75 anos, sem considerar que, se não houver óbices particulares, o Papa, muitas vezes, concede alguns anos de prorrogação. Ao despedir o vigário mais cedo, Francisco fez um ato com poucos precedentes históricos, o que em si não é escandaloso, mas não são claras as razões da escolha do Pontífice. E, há um ano, Francisco havia promulgado uma nova constituição apostólica, “In ecclesiarum communione”, com a qual reorganizava a sua diocese, destituindo o cardeal vigário e atribuindo os poderes ao vice-gerente, um dos bispos auxiliares (atualmente, Monsenhor Baldassarre Reina) que, em vários assuntos, incluindo os de caráter administrativo, agora responde ao bispo de Roma, ou seja, ao próprio Papa.

Não é por acaso que o Pontífice decidiu adiar a nomeação de novo cardeal vigário. A razão prende-se, provavelmente, com uma auditoria contabilística iniciada, em 2021, pelo gabinete do auditor geral da Santa Sé, sobre a diocese de Roma. Entre as coisas a avaliar, estavam os balancetes finais e de previsão, bem como vários aspetos da administração e dos procedimentos, como investimentos financeiros, gestão do património, incluindo imóveis e recursos humanos.

Nada se sabe sobre os resultados dessa investigação interna, como é um mistério bem guardado a verdadeira situação financeira da diocese do Papa, a qual, segundo se especula, estará à beira da falência. Porém, são apenas rumores, para já.

De Donatis também acabou no olho do furacão pela gestão desajeitada do caso de Marko Ivan Rupnik, ex-jesuíta artista-teólogo, acusado de abusos sexuais e de poder, por numerosas freiras pertencentes à comunidade Loyola, que o próprio fundou. O jesuíta – que também contou com o apoio de Bergoglio, durante muito tempo – foi, defendido por De Donatis, durante o tempo todo; por outro lado, os seus mosaicos adornam a capela do seminário maior de Roma, obra cujos custos não são conhecidos. Além disso, na diocese da capital italiana, não se sabe qual é a situação do tema abusos e, também nesse aspeto, a transparência não o forte da casa.

Francisco, portanto, está cada vez mais sozinho e isolado. Não se pode governar de joelhos, disse Francisco, nos últimos meses, referindo-se aos problemas de saúde que o afligem, há tempo, e aos rumores recorrentes daqueles que falaram de renúncia, mas talvez a questão esteja agora a tornar-se mais amplificada. Aliás, já dispôs que pretende ser sepultado, não no Vaticano, mas na Basílica de Santa Maria Maior (pela sua devoção à Virgem “Salus Populi Romani”) e que, se renunciar, ficará com o título de Bispo Emérito de Roma.

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A solidão é a sina dos grandes homens, que agradam a poucos. E, quanto à sinodalidade, um estilo que se impõe à Igreja como uma das suas marcas ônticas, é de advertir que se trata de caminho difícil (com altos e baixos), parecendo que, às vezes, há mais pedras do que caminho. Por isso, a sinodalidade e a colegialidade precisam de ser calibradas com indicadores claros de firmeza, de trabalho intenso e de autoridade não fragilizada.   

2024.04.16 – Louro de Carvalho

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