sexta-feira, 26 de abril de 2024

Abomino a aposição de rótulos a pessoas

 

Sim, abomino rótulos expressamente colados a pessoas, a não ser numa avaliação muito sintética das qualidades da pessoa, em contexto académico e com a necessária e adequada explicação. Fora desse contexto, a rotulagem pode ser falsa, inadequada, parcelar e até ofensiva. Di-lo quem já foi rotulado com as mais diversas marcas políticas e não só.

Numa cidade onde vivi em regime de independência, em relação à instituição que servia e à família, era rotulado de comunista, pois o cabelo relativamente comprido “o denunciava” e, como participava em algumas sessões de dinamização sociocultural e dinamizava outras, não era inteligível que fosse de outro modo. Era complicado falar às pessoas de igualdade de direitos e de deveres, de liberdades e de garantias sociais, de igualdade entre homens e mulheres ou da necessidade de abolir a condição social e familiar de filhos ilegítimos. Ainda não tinha sido publicado o Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de novembro, a primeira grande reforma do Direito de Família. Abordar a necessidade da partilha cristã de bens, embora não obrigatória por lei, era obstruir o exercício do sagrado direito de propriedade. Porém, a culpa não era minha. Talvez fosse do seminário ou do Concílio Vaticano II, cujos documentos, na edição portuguesa, tinham sido objeto de alguma censura política. Porém, nós sabíamos Latim…  

Além disso, secretariava reuniões de agricultores orientadas por técnicos do Instituto de Reorganização Agrária (IRA), assessoradas por três advogados, com vista à sensibilização para o associativismo agrário, nomeadamente na modalidade de cooperativismo e do emparcelamento de terras, a rotulação pareceria a mais adequada. Na verdade, o diretor do Centro de Promoção Social Rural, que organizava as ditas reuniões, conotado com a direita política, era intocável. Havia três advogados a assessorar as reuniões: um socialdemocrata, um centrista e um comunista. Ora, as pessoas que não estavam nas reuniões só me viam lá a mim e ao advogado comunista.

Efetivamente, durante o processo revolucionário em curso (PREC), quem proferisse asserções díspares das que emolduravam a ação governativa era tido como fascista e reacionário. Também o fui. Ou não tivesse frequentado o seminário até ao fim. E quem proferisse determinadas asserções desalinhadas do pensamento do caciquismo local ou andasse de cabelo comprido era considerado comunista. Também paguei para este peditório, ainda, para mais, andava rodeado de rapazes e de raparigas no quotidiano; por outro lado, quando eu estava na igreja, as pessoas anciãs estavam de olhos fechados e não me viam.

Na manhã de um determinado dia, fui surpreendido com um convite, dito urgente, para fazer uma palestra à Liga Agrária Católica com um paralelo entre os princípios programáticos dos partidos políticos e a doutrina social da Igreja (DSI). Isto, porque o palestrante escolhido se escusara à última da hora, por motivos de força maior. Muni-me dos materiais que chegavam à redação do semanário de que era colaborador e preparei a palestra. À hora aprazada, palestrei e dispus-me para responder às questões que iam sendo levantadas, num serão de cerca de duas horas e meia. Pareceu-me que o auditório ficara bastante esclarecido e satisfeito. Contudo, gente que ali não estava adivinhou “comunismo”.                    

Na vila, onde passei a residir, rotularam-me, no mesmo mês, de comunista (era preciso rezar por mim), de socialista, de socialdemocrata e de democrata-cristão. Viram-me, sem eu estar presente, fisicamente ou em fotografia, em comícios dos respetivos partidos, quando, em dois dos casos, estava de cama com gripe e, nos outos dois, me encontrava fora da vila, em fim de semana.

Quando assumi a paroquialidade de três freguesias, entre alegrias e preocupações, entre aplausos e suspeitas, surgiram também os rótulos. Se entrava na tasca ou no café, obviamente não me chamavam aquário; se punha as pessoas a rezar ou se fazia procissões, era beato ou “aquilo era uma seca”. Se me viam com determinadas pessoas, era comunista; se me viam com outras, ou não reparavam ou chamavam-me fascista. Criticavam-me por não fazer avisos sobre atividades de partidos políticos, “nem pelos nossos” (AD – Aliança Democrática). Condenava os incêndios, mas não dizia que eram os comunistas que os provocavam (eu sabia que não era bem assim); condenava determinadas doutrinas, mas não as atribuía aos comunistas e aos socialistas (sabia que eram transversais); não fiz campanha pela TVI, a TV da Igreja, antes a desaconselhei (sabia que uma sociedade anónima dispersa em bolsa não ficaria vinculada a determinada instituição).

Mais tarde, como sempre insisti no relacionamento institucional, independentemente da cor partidária dos seus dirigentes, colaborava com a câmara municipal (centrista) da vila sede do concelho em cuja área geográfica trabalhava e com a (socialdemocrata) da vila sede do concelho em cuja área geográfica residia. Assim, era tido como centrista, num concelho, e como socialdemocrata no outro. Ainda bem. Passava por entre as pingas da chuva.    

Numa segunda-feira, pela manhã, ia a conduzir, vestido à civil, para o aquartelamento militar onde exercia as funções de capelão. Ao passar em frente do posto da Garda Nacional Republicana (GNR) de uma vila, um militar da GNR mandou-me parar e perguntou se ia para a cidade e podia levar um senhor que ali estava. Respondi que sim e seguimos. Mais adiante, passou por nós uma série de viaturas militares e saudei o respetivo comandante. Porém, o senhor que me acompanhava, lendo, no painel do porta-luvas, o nome do proprietário do veículo (ao tempo, era obrigatório), comentou: “Ó Sr. A…! Há três tipos de pessoas que eu não gramo, nem a tiro!”

Eu retorqui: “Diga lá, que podemos ter a mesma opinião!”  

Ao que adiantou: “Militares, padres e comunistas!”

E eu atirei: “Apanhou-me em duas…” 

“Não me diga que é militar e comunista!”, reagiu.

“Não”, concluí, “sou militar e padre!”

É de referir que, ao longo da viagem, não disse mais palavra e, à despedida, nem sequer disse: “Até à próxima!”  

***

Este já logo comentário pessoal e político, rematado com um episódio real que parece anedótico, surgiu-me a propósito da pretensa e sumaríssima caraterização, pelo Presidente da República (PR), do perfil do atual e do ex-primeiro ministro, que se tornou o assunto mais discutido no país político, na véspera do cinquentenário do 25 de Abril. E isso fez-me lembrar de quando, em jornais, Marcelo Rebelo de Sousa, feito professor, avaliava, pretensiosamente, com notas, como na Academia, os políticos que estavam na berra, nem sempre de forma ajustada.

Agora, o PR vê António Costa como alguém lento e reflexivo, fruto da ascendência “oriental”, enquanto Luís Montenegro é “completamente diferente”, pois tem um perfil “rural” apressado.

O chefe de Estado não deixou de se autoanalisar neste aspeto, definindo-se como “um ocidental apressado”. De presunção e de água benta, cada um toma o que quer.

As declarações presidenciais, que tiveram grande repercussão, durante todo o dia 24 de abril, foram prestadas, inicialmente, num jantar com jornalistas estrangeiros que trabalham em Portugal, no qual também estavam presentes alguns jornalistas portugueses.

As declarações sobre o líder do Partido Social Democrata (PSD) surgiram quando o PR explicava como via a mudança de governo, antes do previsto. “Ele [Luís Montenegro] é uma pessoa que vem de um país profundo, urbano-rural, com comportamentos rurais. É muito curioso, difícil de entender, precisamente por causa disso. Agora, é completamente independente, não influenciável, não populista e improvisador”, explicou.

O chefe de Estado acrescentou que “estaria feliz” e acostumado com a governação de António Costa, até 2026, mas a dissolução do Parlamento foi necessária ante a demissão como primeiro-ministro (PM) e como secretário-geral do Partido Socialista (PS). “Não imaginam como é difícil adaptar-me a um novo começo”, disse, em referência ao novo governo. E salientou que se está a habituar com o estilo do líder do PSD e que o recomeço “é estimulante” e “dá muito trabalho”.

O PR ainda frisou não ter dúvida de que Montenegro vai “ganhar todos os debates no Parlamento”, pela capacidade de oratória. Ora, todos sabemos que é fácil um PM ganhar um debate parlamentar.

Em relação aos desafios futuros, sustenta que o presidente do PSD terá de lidar com a polarização.

Só lhe faltou dizer que Montenegro era parecido com Salazar, também este de origem rural e de atitudes rurais, que lidou muito bem com a polarização: os dele e os que não eram dele.

Acusar de rural um político, no país global, tem como subjacente a divisão entre urbanos e rurais. Aliás, o PR rotulou o PS de urbano e metropolitano, de origem urbana; e o PSD de rural-urbano, de origem rural. Bem sabe o chefe de Estado que a corte na aldeia não funciona. Todos os partidos têm origem urbana. No limite, têm génese numa casa, prédio urbano, e não num prédio rústico.   

Em relação ao ex-primeiro-ministro, é anacrónico o rótulo de oriental. Que se saiba é cidadão português. Não podemos rotular os cidadãos portugueses pela origem étnica ou pela origem continental ou insular. Caso contrário, teremos de questionar se o PR é de origem lisboeta ou minhota. Pelos vistos, uma sua avó era de Celorico de Basto. 

Hoje, Portugal é a mescla e, em muitos, casos de produtos de origens diversas. Há, entre nós, muito sangue árabe, judeu, africano, asiático, americano e de diversos países europeus. Puro-sangue lusitano já nem no cavalo existe. 

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As declarações aos jornalistas estrangeiros, como se disse, tiveram grande impacto, durante todo o dia 24 de abril. E, quando foi questionado pelos jornalistas portugueses, numa passagem pelo Largo do Carmo, o PR explicou as frases: “O primeiro-ministro tinha muito a ver com o PSD profundo base rural-urbana, e assim foi a raiz do PSD, ao contrário do PS, que é metropolitano, urbano-urbano”, reforçou, afastando a ideia de ter sido ofensivo ou mal interpretado: “Foram muito explicativas para jornalistas estrangeiros.”

A este respeito, o constitucionalista Vital Moreira, no blogue “Causa nossa”, não foi parco na crítica ao PR. Classifica de “insólitas” a suas considerações acerca da personalidade daquelas figuras partidárias, “nomeadamente a qualificação de Montenegro como ‘rural’ e de Costa como ‘oriental’, [que] são manifestamente descabidas no discurso presidencial”.

Com efeito, segundo o constitucionalista, “violam manifestamente um elementar dever de respeito e […] reserva institucional do chefe do Estado”; “embora de índole supostamente psicossocial, elas refletem os preconceitos típicos da elite lisboeta, contra os políticos que vêm da ‘província’ (caso de Montenegro) ou os que têm origem étnica exótica (caso de Costa)”; e “foram proferidas perante a imprensa estrangeira, onde se impunha ainda mais discrição e prudência institucional do PR, no seu juízo sobre os chefes de governo”.   

Vital Moreira é perentório: “Uma conduta condenável, sem desculpas nem atenuantes.”

Além disso, o constitucionalista aponta que Marcelo Rebelo de Sousa “esqueceu duas distinções que são essenciais num Presidente da República, como representante de toda a coletividade: a distinção entre aquilo que ele pensa e o que pode dizer e a distinção entre aquilo que ele pode dizer numa tertúlia de amigos de confiança e o que pode dizer publicamente”. Neste sentido, tem de se vincar a distinção entre o político que fala de tudo e de todos e “um PR que respeita a dignidade do seu cargo e a personalidade dos demais servidores da República com quem interage”.

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Não é preciso, nem possível dizer melhor do que Vital Moreira, “sobre o dever de reserva institucional”.

2024.04.25 – Louro de Carvalho

quarta-feira, 24 de abril de 2024

O 25 de abril: um projeto coletivo sempre inacabado

 

É fantástico, à distância de 50 anos, celebrar a Revolução dos Cravos, que encontrou no povo a soberania do seu destino popular. O povo é soberano e, nas democracias representativas, delega apenas o exercício do poder nos seus representantes, eleitos através do sufrágio universal, mas sem abdicar do direito a outros tipos de intervenção, como a crítica e a petição.

Entretanto, a História regista, quer os tempos de democracia – imperfeita ou quase perfeita –, quer os tempos de ditadura, tenha esta a roupagem que tiver. No caso português, um grupo de militares usurpara, em 1926, a soberania do povo e acabou por entregar o governo do país a um homem tido como génio, porque sanou as finanças públicas, à custa de intensos e prolongados sacrifícios, tidos como inevitáveis, mas suportados pelas famílias com menores recursos. Para suporte do regime, eram postos de parte ou até eliminados aqueles que significassem problema, fosse qual fosse o quadrante político de que proviessem, com realce para os considerados comunistas, ainda que não o fossem.

Para fazer vincar o agrado geral do regime, implantou-se um Estado opressivo-repressivo travestido da aparente e propalada brandura de tratamento policial, correspondente à proverbial brandura de costumes do nosso povo. A igualdade de todos perante a lei só funcionava entre os mais pobres. Não entrámos, oficialmente, na guerra civil do país vizinho, nem na II Guerra Mundial, mas vivemos em economias de guerra e, mais tarde, suportámos a guerra colonial de 13 anos, em nome da descontínua integridade territorial da nação e, curiosamente, em nome da elevação civilizacional dos povos colonizados, remando contra a vontade do escol promotor da autonomização dos mesmos, com o geral apoio do concerto das nações.           

Em tudo isso, o líder solitário e genial foi sucedido por um político que se dizia “homem comum”, com o lema da evolução na continuidade. E, sem descaraterizar o regime, antes reforçando, em certos aspetos, o seu rigor, foi avançando com minirreformas de índole social e política.

Porém, o cansaço da guerra colonial, a jugulação dos movimentos fautores de ideias democráticas e dos adversários do pensamento único ou da mordaça censória, a crise petrolífera (Quem não se lembra das enormes filas de automóveis parados à espera de se abastecerem de combustível, bem como das tentativas de açambarcamento?) e a denúncia de vários massacres, em tempo de guerra, criaram ambiente propício ao derrube, pelas armas, do regime ditatorial, que dava pela designação de Estado Novo, definindo o Estado Português como uma “República unitária e corporativa” (maia tarde, a definição intercalava o adjetivo “democrática”), mas em que a maior parte dos cidadãos era impedida de votar para a Assembleia Nacional (AN), a que o regime dava pouca relevância, ou para o chefe de Estado, o qual, a partir de 1958, era eleito por um colégio eleitoral.

Havia, para os crimes políticos (ditos contra a segurança do Estado), tribunais especiais, que funcionavam em plenário. Às vezes, tratava-se de só de delito de opinião. A polícia política, através dos seus agentes e dos informadores, acolitada pelas forças de segurança, vigiava os costumes e as ideias. As pessoas não podiam exprimir ideias que fossem ou aparentassem algo contra o regime, nem podiam tomar determinadas atitudes, sendo, muitas vezes, obrigadas a falar (confessar crimes não cometidos, denunciar, apoiar as autoridades), a bater palmas a discursos e a ir a manifestações. Pessoas desconhecidas abeiravam-se, por vezes, do cidadão a provocar conversa contra o governo, para, a seguir, o denunciarem, se fossem informadores da polícia política, ou para os deterem, se fossem seus agentes.  

Sobre a situação difícil que a maioria dos Portugueses vivia, vêm sendo publicados vários dados e até são publicados indicadores muito diferenciadores entre a situação vivida em 2022 e a vivida em 1974. Apenas destaco os seguintes: a maioria dos habitantes das aldeias e das vilas vivia da enxada, uma forma de empobrecer alegremente; a maioria das pessoas não passava do ensino primário (eu, filho de pais pobres, prossegui estudos, graças ao sacrifício da família e às enormes ajudas de pessoas generosas, algumas das quais nunca conheci); a maior parte das pessoas, nas aldeias e nos subúrbios das cidades, morria sem assistência médica, por falta de dinheiro, e muitas parturientes morriam de parto; estava-se longe de tudo, pois a maior parte das aldeias não era servida por estradas, não tinham água canalizada, nem eletricidade, nem saneamento básico; e eram abundantes as barracas, nas cidades. Enfim, era a miséria no seu máximo.

Recordo que, em fins de setembro de 1973 – onde estive, durante três meses, acolhido em casa de família amiga, com outros colegas estudantes em Estrasburgo, passando os dias a trabalhar na limpeza por conta de uma multinacional –, estando de volta a casa, na véspera da viagem de regresso a Portugal, passei por um grupo de argelinos. Um deles dirigiu-se-me, pedindo-me um franco. Com prontidão lho entreguei. Todavia, para entabular um pouco de conversa, perguntou-me pela minha nacionalidade. Como respondi que era português, devolveu-me o franco, explicando: “Não quero o teu franco. Vives num país de miséria. Não há miséria maior do que a guerra. E Caetano não acaba com a guerra. Fico a pedir a Alá que livre o teu país da guerra.” Agradeci e vim embora, mas sem nunca deixar de pensar no recado do argelino.

Como a emigração era travada, por causa da guerra, tinha ido para França, supostamente como estudante turista (pois, por motivo de estudos, havia-me sido concedido o adiamento militar), levando comigo umas centenas de escudos, mas declarando milhares e alegando alojamento em casa de familiares. O dinheiro ganho constituiu boa ajuda para pagar os estudos.

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Américo Tomás fora reeleito (candidato único do regime), pelo colégio eleitoral, a 25 de julho de 1972; e, a 28 de outubro de 1973, a Ação Nacional Popular (ANP) ganhou por esmagadora maioria as eleições para a AN.

Entretanto, multiplicavam-se os rumores da força das ideias oposicionistas e, sobretudo, dos militares. E ganhava corpo a informação de que mais de 200 oficiais estavam contra a guerra, cuja solução era política, não militar. Pensavam alguns que a substituição dos chefes de Estado e do governo resolvia o problema, mas havia um escol politizado que pretendia suscitar a democracia. Quiçá a mostrar disponibilidade para o golpe de Estado, António de Spínola fez publicar o livro “Portugal e o Futuro”, a preconizar a federação de Estados de feição lusíada, que vinha a destempo, face à pressão internacional e às exigências dos movimentos de libertação. E, após a movimentação militar de Caldas da Rainha, a 16 de março de 1974, barrada por tropas fiéis – com a prisão de alguns oficiais e a dispersão de outros por diversas unidades do país –, Marcello Caetano era aplaudido por multidões, mas sem a presença dos militares.  

A 24 de abril, regressado de férias da Páscoa, bisbilhotei, junto de um oficial do Exército, que haveria 200 capitães descontentes. E ele, retorquindo que havia muitos mais, sugeriu-me atenção à noite seguinte. Obviamente, passei-a colado ao transístor. Espantou-me ouvir, à meia-noite, na Rádio Renascença, “Grândola, Vila morena”. Mudava de estações e ouvia o reiterado apelo do Posto de Comando das Forças Armadas, via Rádio Clube Português.

A primeira reação foi de dúvida, mas logo emergiu a fiabilidade da mudança: a revolução na rua tonou-se popular; e os cravos substituíram as balas.

Os acontecimentos ditaram a saída das duas figuras de topo para a Madeira e o subsequente exílio no Brasil, a assunção do poder pela Junta de Salvação Nacional (JSN), a publicitação do Programa do Movimento das Forças Armadas (MFA), a revogação da Constituição de 1933, a dissolução da Assembleia Nacional e a destituição do Governo e do Conselho de Estado. A JSN e o MFA nomearam o Presidente da República, que empossou o governo provisório, a que se seguiram outros, com respaldo no Conselho de Estado (a partir de 11 de março de 1975, Conselho da Revolução), com poder constitucional e legislativo. Surgidos os partidos, houve eleições (em festa) – por voto universal, direto e secreto – para a Assembleia Constituinte, que elaborou a Constituição, que passou por sete revisões. Entretanto, foi proclamado o direito das colónias à autodeterminação e à independência. A primeira a ficar independente foi a Guiné-Bissau e a última foi Angola. Era o reino da liberdade no seu fulgor e da democracia política que se ia aprendendo, exercitando-a, por vezes, não da melhor forma.

Até 25 de novembro de 1975, a liberdade – de festa ou de tensão – marcava a luta pela democracia representativa, contraposta à democracia direta, de cariz soviético ou terceiro-mundista, mas a evolução foi para a democracia representativa, com eleições livres, por sufrágio universal. A partir de 25 de abril de 1976, elege-se a Assembleia da República (AR, de que emana o governo), o chefe de Estado, as autarquias e os parlamentos regionais. Porém, ficou legitimada a ação de estruturas de base, como as comissões de moradores, e reconhecido o direito de petição da parte de grupos de cidadãos, sem censuras.

No ano letivo de 1974/1975, passei a lecionar numa escola privada. Em paralelo, trabalhava na redação de um semanário e secretariava reuniões de agricultores, dinamizadas pelo Instituto de Reorganização Agrária, em prol da sensibilização para o associativismo, nomeadamente o cooperativismo. Participei em diversas manifestações e sessões de esclarecimento (e promovi algumas); e o que, a princípio, era consensual, em torno da democracia, passou a divergente, sobre o ritmo da revolução, que obedecia a um programa, e sobre o tipo de democracia a instaurar.  

Os incêndios florestais eram atribuídos aos comunistas. Houve problemas em escolas primárias, devido à pretensa educação sexual e à queima de livros. Faculdades, escolas técnicas e liceus eram geridos por comissões de gestão. E os maiores de 14 anos puderam autopropor-se a exames, por disciplina, do 2.º ano de então e os maiores de 15 a exames do 5.º ano.

O encerramento do República e a ocupação da Rádio Renascença espoletaram a reação nacional, com protestos organizados por militantes da Igreja Católica, do Partido Socialista (PS), do Partido Social Democrata (PSD) e do Partido do Centro Democrático Social (CDS) (dito democrata-cristão). Tal reação, replicada, sobretudo, no Norte, sensibilizou os militares moderados e ao 5.º Governo Provisório sucedeu o de Pinheiro de Azevedo. Entretanto, a partir de 4 de novembro de 1975, passei ao ensino público, em que me profissionalizei, e fui aprendendo a perceber as pessoas e a apostar na inclusão. A polarização cedeu à convivência. Para todos, o 25 de Abril veio para ficar. A liberdade, nota essencial da democracia, é o bem que todos apreciam e não querem perder. E a democracia política abre para a democracia económica, social e cultural. Todos dizem gostar da democracia política, mas alguns hostilizam as outras vertentes.

A democracia conhece várias datas, mas o dia 25 de abril de 1974 é fundante, primordial, inesquecível e digno de celebração popular e institucional. E a liberdade desafia-nos a lutar por ela e a usá-la com responsabilidade, no respeito pela liberdade dos outros, no exercício dos direitos e na satisfação dos deveres. A dignidade humana o impõe.

Na alvorada de 25 de abril de 1974, surgiu a democracia, que foi sendo trabalhada, com avanços e recuos e cujo processo de institucionalização se concluiu em dezembro de 1976.

O país está muito melhor do que em 1974, como o demonstram os números percentuais dos indicadores que vêm sendo publicados. É óbvio que podia estar melhor. A pobreza devia ter sido erradicada, a economia devia estar mais forte, o sistema de saúde devia prosseguir sem falhas, o sistema educativo não devia ter lacunas. Todos têm direito a casa, trabalho, proteção e segurança. Porém, há sempre um “mas”. Como todos sabemos, não há bela sem senão. Assim, é preciso continuar o projeto coletivo de democracia política, económica, social e cultural, que nunca estará acabado, enquanto houver pessoas, com necessidades, com ambições, numa sociedade de contrastes e de contradições. Além disso, a liberdade e a democracia têm inimigos (muitos valem-se das instituições democráticas, que minam e descredibilizam).

Portanto, impõe-se o zelo, a vigilância e o trabalho democráticos.

Entretanto, haja festa. Apesar dos escolhos, o 25 de Abril é sempre a andar!

2024.04.24 – Louro de Carvalho

terça-feira, 23 de abril de 2024

Em vésperas do cinquentenário do 25 Abril: demissão da DE-SNS (!)

 

Fernando Araújo, diretor-executivo da Direção Executiva do Serviço Nacional de Saúde (DE-SNS) e a respetiva equipa não querem ser “um obstáculo” à tutela liderada pela ministra da Saúde, Ana Paula Martins, pelo que puseram, a 23 de abril, os seus cargos à disposição do governo. Todavia, estão na disposição de cumprir a exigência, que a tutela lhes endossou, da produção de um relatório sobre a reforma em curso, no prazo de 60 dias.

“Na primeira, e única reunião tida com a tutela, foi transmitido pela DE-SNS a abertura para à continuidade de funções, no sentido de ser terminada a reforma em curso, mas, naturalmente, estávamos ao dispor da nova equipa governativa, se ela entendesse mudar as políticas e os rostos do sistema. […] É esse sentido, respeitando o princípio da lealdade institucional, que irei apresentar à senhora Ministra da Saúde, em conjunto com a equipa que dirijo, o pedido de demissão do cargo de Diretor-Executivo do Serviço Nacional de Saúde”, lê-se no comunicado enviado às redações.

Uma decisão “difícil”, mas que “permitirá que a nova tutela possa executar as políticas e as medidas que considere necessárias, com a celeridade exigida, evitando que “a atual DE-SNS possa ser considerada um obstáculo à sua concretização”.

Ainda assim, Fernando Araújo compromete-se a cumprir o exigido pela ministra, mas aproveita o ensejo para deixar uma crítica à atuação de Ana Paula Martins. “Solicitaremos que a data de produção de efeitos da demissão seja o dia seguinte a apresentarmos o relatório da atividade exigido pela tutela, do qual tivemos conhecimento por e-mail, na mesma altura que foi divulgado na comunicação social”, atirou, vincando: “Não nos furtamos a apresentar o documento solicitado, que já começamos a elaborar, até porque pensamos que se trata, não apenas de uma responsabilidade, como de um dever, expor os resultados do trabalho efetuado, para que possa ser escrutinado, algo salutar na vida pública.”.

O tempo “foi sempre curto”, pelo que “saímos com a noção de que não fizemos tudo o que tinha sido planeado e [de] que cometemos seguramente erros”, ao executar uma reforma desta dimensão, mas “os primeiros sinais são bastante positivos e mais favoráveis do que as previsões que tinham sido inicialmente inscritas nos instrumentos de planeamento”.

Exerci estas funções com imensa honra e um sentimento de dever público, e irei agora, de forma tranquila, voltar à atividade assistencial, de docente e de investigação, como médico do SNS e professor universitário”, remata Fernando Araújo, médico e professor universitário, que foi nomeado pelo anterior ministro da Saúde, Manuel Pizarro.

Aliás, referiu que toda a equipa tem atividade profissional: dois elementos no SNS, um no Ministério das Finanças e outro no setor empresarial privado.

Na carta que enviou à ministra, o diretor executivo do SNS diz que, apesar dos condicionalismos externos, nos 15 meses em que esteve no cargo, liderou a maior reforma que alguma vez foi feita nos 45 anos, em termos organizacionais, nos 45 anos de existência do SNS. “As reformas em qualquer área são difíceis, mas na saúde [são] particularmente complexas e exigentes. No entanto, foi possível concretizar alterações legislativas, introduzir novos modelos económicos, planear estratégias e organizar processos, envolver as equipas das várias instituições, instituir mecanismos externos para monitorizar e avaliar a reforma e, realmente, mudar o SNS”, explicitou.

O gestor não se esquece de agradecer aos “profissionais a disponibilidade e empenho que sempre demonstraram e, em particular, aos membros do conselho de gestão da DE-SNS que me acompanharam neste desafio e acreditaram que era possível”, deixando também uma palavra de reconhecimento ao XXIII Governo, “por nos ter confiado esta nobre missão”, e ao Presidente da República, “por todo o apoio manifestado desde o primeiro dia, de forma pessoal e pública, que guardarei com enorme honra e respeito”.

Em nota pessoal, refere, que como utente e profissional do SNS, deseja as maiores felicidades à equipa governativa e à futura DE-SNS, assegurando que, no ano do cinquentenário do 25 de Abril, “foi um privilégio ter servido o país e os Portugueses”.

A direção-executiva do SNS, foi criada a 22 de novembro de 2022 e iniciou a sua atividade em 1 de janeiro de 2023, na sequência do novo Estatuto do Serviço Nacional de Saúde proposto ainda pela então ministra Marta Temido, para coordenar a resposta assistencial de todas as unidades do SNS e para modernizar a sua gestão. Em janeiro de 2024, arrancou uma nova fase da reforma organizativa do SNS, com o alargamento a todo o país das Unidades Locais de Saúde (ULS) e a generalização das Unidades de Saúde Familiar de modelo B (USF-B), assentes num regime de incentivos à produtividade.

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A notícia foi confirmada pelo Diário de Notícias (DN) junto do gabinete de Ana Paula Martins, que se encontrava em Bruxelas, na reunião dos ministros da Saúde da União Europeia (UE), e que prometeu uma reação, para quando chegasse ao país. 

Esta posição da DE-SNS era expectável. Recorde-se que Ana Paula Martins, nomeada por Fernando Araújo, há um ano, para presidente do então Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte, mas saiu do cargo, no final de dezembro, por considerar que a sua função não se adequava ao novo modelo de gestão que integrava aquela unidade, como noutras ULS. As divergências entre a visão do novo governo para a Saúde e o gestor cedo começaram a aflorar, nomeadamente na gestão das mesmas ULS.

A 10 de abril, o programa do governo avançava a reformulação da DE-SNS, que passará por alterações à “estrutura orgânica” da direção executiva, para a tornar mais “simples”, mas também por mudanças nas competências funcionais do organismo, com o objetivo de dar uma resposta mais adequada e articulada nas diferentes áreas do SNS, desde as infraestruturas, ao financiamento e recursos humanos, passando pela transformação digital.

Em matéria de Saúde, o programa do executivo aponta que será feita uma avaliação das ULS, em particular das que integram hospitais universitários.

A 18 de abril, a ministra da Saúde informou ter remetido à DE-SNS um despacho a solicitar um conjunto de informações relacionadas com as recentes alterações levadas a cabo, informações a prestar no prazo de 60 dias. Em particular, a tutela destaca as alterações na “reorganização das atribuições das diversas instituições do Sistema de Saúde, nomeadamente da Administração Central do Sistema da Saúde (ACSS), da Direção-Geral da Saúde (DGS), da Secretaria-Geral do Ministério da Saúde (SGMS) e, ainda, das Administrações Regionais de Saúde (ARS)”.

Desse leque de informação solicitada faz parte: um relatório com as principais medidas adotadas; documentos que sustentaram a proposta de reorganização das entidades públicas empresariais no modelo de organização e de funcionamento em ULS, nomeadamente o parecer da Unidade Técnica de Acompanhamento e Monitorização do Setor Público Empresarial, bem como uma análise SWOT sobre o desempenho dos cuidados de saúde primários no contexto das ULS; a identificação dos riscos – assistenciais, operacionais, logísticos e financeiros – decorrentes do processo de transição para o modelo de ULS; informação sobre o modelo de contratualização e financiamento das ULS; e a “avaliação da sustentabilidade económico-financeira dos principais projetos a desenvolver pela DE-SNS, nomeadamente no que se refere à reorganização em modelo de ULS, à contratualização e à política de investimentos.

Sejamos claros. Tentar, em Fernando Araújo e na sua equipa, a paciência de Job, apenas significa provocar a demissão!

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Em reação, Joana Bordalo e Sá, presidente da Federação Nacional dos Médicos (FNAM), disse à Lusa que ao novo governo caberá decidir o modelo de governação do SNS e se mantém a DE-SNS, mas deixou críticas à estrutura, como sendo estrutura muito pesada, pouco funcional, com orçamento descabido e com muitos recursos humanos alocados, que não se traduziu no trabalho desenvolvido, e com poderes excessivos, que esvaziaram entidades como a ACSS, as ARS e algumas competências da DGS. Além disso, censurou a profusa produção legislativa do último ano, sobretudo à “feita de forma atabalhoada” e que resultou no modelo das ULS.

A presidente da FNAM insiste que, sem a valorização da carreira dos médicos, “vai ser muito difícil para uma DE-SNS conseguir fazer o seu trabalho”.

Por seu turno, Nuno Rodrigues, secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos (SIM), sustentou, em declarações à Lusa, que “as reformas estruturais, no SNS, devem ser para manter, as estruturas técnicas e as instituições devem fazer o seu trabalho, independentemente da cor política do governo”, e que “há um caminho conjunto que estava a ser percorrido e que pode ser interrompido”. Nestes termos, o SIM espera que quem suceder a Fernando Araújo – “uma pessoa considerada, respeitada e competente” – consiga “também atender aos problemas do SNS e trabalhar com os sindicatos para resolver os problemas que persistem”.

O bastonário da Ordem dos Médicos (OM), Carlos Cortes, considerou que era expectável a demissão da DE-SNS e defendeu uma reformulação das competências do órgão.

“Penso que é fundamental manter uma direção executiva do Serviço Nacional de Saúde mas revendo as suas competências”, disse o bastonário à Lusa, a propósito da demissão da DE-SNS.

Ouvido pela Lusa, o bastonário salientou o que considerou o mérito, a capacidade de trabalho e a entrega e dedicação de Fernando Araújo à causa da Saúde e do SNS, mas anotou a evidência das visões diferentes entre Fernando Araújo e a ministra da Saúde, sobre o caminho a seguir no SNS, nomeadamente em relação às ULS.

Carlos Cortes considerou fundamental manter uma DE-SNS, mas defendeu que as competências devem ser revistas, porque, em sua opinião, no anterior governo, havia como que uma “liderança bicéfala”, porque Fernando Araújo tinha competências que deviam ser do ministro da Saúde.

“A ministra tem de ter capacidade para tomar decisões, sobre o Serviço Nacional de Saúde” e a DE-SNS a capacidade de as concretizar, defendeu o bastonário da OM.

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Cotejando o programa do governo, a atitude da líder da tutela da Saúde, as declarações da FNAM e, de certo modo, a posição do bastonário da OM, vê-se bem qual o lado que a governante defende. Aliás, é de questionar como, sendo adversa de uma reforma em curso, na área da Saúde, é escolhida para sobraçar essa pasta ministerial, a não ser que seja para estrangular a reforma e colocá-la ao serviço de interesses privados. Esquece o drama daquelas pessoas que o setor privado descarta, porque precisam mais de saúde do que de faturar, que isso interessa aos privados! Como dizem alguns, sabemos do que falamos.

Estou à vontade. Tenho sido bem atendido no setor público e no privado. Por outro lado, sempre disse que, para fazer reformas na Saúde, não precisávamos de criar uma nova entidade, mas de imprimir sangue novo e dinamismo nas existentes. Todavia, fazer pôr em sentido uma entidade, recém-criada, cuja ação no papel e no terreno está por concluir significa estrangular uma reforma em curso e cujas potencialidades ainda estão por explorar. Não estaremos, ironicamente, perante uma contrarrevolução da Saúde, no cinquentenário da Revolução do 25 de Abril?!           

2024.04.23 – Louro de Carvalho

segunda-feira, 22 de abril de 2024

Juízes dos Tribunais Judiciais têm um novo código de conduta

 

O plenário do Conselho Superior da Magistratura (CSM) aprovou, a 16 de abril, o Código de Conduta dos Juízes dos Tribunais Judiciais (CCJTJ), segundo o qual estes magistrados deixam de receber vantagens, de aceitar convites ou de usar informações para seu benefício ou de terceiros, em resultado do cargo ou das funções desempenhadas.

Esta deliberação vem na sequência da aprovação, “por maioria”, a 5 de dezembro de 2023, do projeto do CCJTJ, após ampla discussão entre os juízes conselheiros e depois de introduzidas as correções sugeridas. Subsequentemente a esta deliberação, foi determinado que o referido projeto fosse divulgado junto da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJ) e pelos juízes, para se pronunciarem, querendo, no prazo de 60 dias.

Entende o CSM que, no exercício das funções que lhes são atribuídas constitucionalmente, “os magistrados judiciais gozam das garantias e estão sujeitos aos deveres decorrentes do Estatuto dos Magistrados Judiciais [EMJ], designadamente quanto à independência, imparcialidade, urbanidade, humanismo, diligência e reserva”. Com efeito, o EMJ (aprovado pela Lei n.º 21/85, de 30 de Julho, cuja última alteração lhe foi introduzida pela Lei n.º 2/2020, de 31 de março) estipula, no atinente à conduta, os seguintes deveres dos magistrados judiciais:

Dever de imparcialidade: no exercício de funções, devem agir com imparcialidade, assegurando a todos um tratamento igual e isento quanto aos interesses particulares e públicos que lhes cumpra dirimir” (ver artigo 6.º-C).

Dever de cooperação: devem cooperar com o CSM e com os presidentes dos tribunais no exercício das suas atribuições legais de gestão e organização e estes com aqueles no exercício das suas atribuições legais de administração da justiça”; “são atribuições de gestão e organização todas as que não contendam com a concreta tramitação e decisão processual” (ver artigo 7.º-A).

Deveres de sigilo e de reserva: “não podem revelar informações ou documentos a que tenham tido acesso no exercício das suas funções que, nos termos da lei, se encontrem cobertos por segredo; “não podem fazer declarações ou comentários públicos sobre quaisquer processos judiciais”, salvo quando autorizados pelo CSM, “para defesa da honra ou para a realização de outro interesse legítimo”; “não são abrangidas pelo dever de reserva as declarações e informações que, em matéria não coberta por segredo de justiça ou por sigilo profissional, visem a realização de direitos ou interesses legítimos, nomeadamente o acesso à informação e a realização de trabalhos técnico-científicos, académicos ou de formação”; sem prejuízo das regras estabelecidas na lei processual, a prestação de tais informações deve ser assegurada pelo CSM, pelos juízes presidentes dos tribunais ou por outros magistrados judiciais a quem este Conselho, sob proposta do juiz presidente respetivo, defira essa competência (ver artigo 7.º-B).

Dever de diligência: “Os magistrados judiciais devem pautar a sua atividade pelos princípios da qualidade e eficiência de modo a assegurar, designadamente, um julgamento justo, equitativo e em prazo razoável a todos os que recorrem aos tribunais” (artigo 7.º-C).

Dever de urbanidade: “Os  magistrados judiciais devem adotar um comportamento correto para com todos os cidadãos com que contactem no exercício das suas funções, designadamente na relação com os demais magistrados, funcionários, advogados, outros profissionais do foro e intervenientes processuais” (artigo 7.º-D).

Dever de declaração: “Os magistrados judiciais apresentam declarações de rendimentos e [de] património nos termos da lei” (artigo 7.º-D).

No campo dos impedimentos, nos termos do artigo 7.º, n.º 1, é vedado aos magistrados judiciais: exercer funções em juízo ou tribunal de competência territorial alargada em que sirvam juízes de direito, magistrados do Ministério Público (MP) ou funcionários de justiça a que estejam ligados por casamento ou união de facto, parentesco ou afinidade em qualquer grau da linha reta ou até ao 2.º grau da linha colateral; exercer funções em juízo da mesma comarca ou tribunal de competência territorial alargada em que sirvam juízes de direito, magistrados do MP ou funcionários de justiça, se estiverem em alguma das situações descritas, que gere sistemático impedimento do juiz; exercer funções na mesma secção do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) ou dos tribunais da Relação (TR) em que sirvam magistrados judiciais, se estiverem em alguma das situações descritas; exercer funções em tribunal de comarca a cujo presidente estejam ligados por alguma das situações anteriormente descritas; servir em juízo cuja área territorial abranja o concelho em que, nos últimos cinco anos, tenham desempenhado funções de MP ou de advogado ou defensor nomeado no âmbito do apoio judiciário ou em que, em igual período, tenham tido escritório de advogado, solicitador, agente de execução ou administrador judicial.”

O artigo 8.º estabelece que os magistrados judiciais têm domicílio necessário na área da comarca onde se estão instalados os juízos da comarca ou as sedes dos tribunais de competência territorial alargada onde exercem funções, mas podendo residir em qualquer local da comarca, desde que não haja prejuízo para o exercício de funções. Os do quadro complementar consideram-se domiciliados na sede do respetivo TR ou da respetiva comarca, em caso de desdobramento, podendo, todavia, residir em qualquer local da circunscrição judicial, desde que não haja prejuízo para o exercício de funções. Quando as circunstâncias o justifiquem, e não haja prejuízo para o exercício das suas funções, os juízes de direito podem ser autorizados pelo CSM a residir em local diferente do previsto acima. Os magistrados judiciais do STJ e dos TR estão isentos da obrigação de domicílio necessário. Os magistrados judiciais abrangidos pelo EMJ não podem indicar mais do que um domicílio.

Por seu turno, o artigo 8.º A estabelece que “os magistrados judiciais em efetividade de funções ou em situação de jubilação não podem desempenhar qualquer outra função pública ou privada de natureza profissional”.

Não são consideradas de natureza profissional as funções diretivas não remuneradas em fundações ou em associações de que sejam associados que, pela sua natureza e objeto, não ponham em causa a observância dos respetivos deveres funcionais, devendo o exercício dessas funções ser precedido de comunicação ao CSM. Não são incompatíveis a docência ou a investigação científica de natureza jurídica, não remuneradas, bem como as comissões de serviço ou o exercício de funções estranhas à atividade dos tribunais cuja compatibilidade com a magistratura se encontre especialmente prevista na lei, mas o exercício destas funções carece de autorização do CSM, não podendo envolver prejuízo para o serviço nos casos da docência ou investigação científica de natureza jurídica.

Carecem, ainda, de autorização do CSM, só concedida, se a atividade não for remunerada e não envolver prejuízo para o serviço ou para a independência, dignidade e prestígio da função judicial: exercício de funções não profissionais em quaisquer órgãos estatutários de entidades públicas ou privadas que tenham como fim específico exercer a atividade disciplinar ou dirimir litígios; e o exercício de funções não profissionais em quaisquer órgãos estatutários de entidades envolvidas em competições desportivas profissionais, incluindo as respetivas sociedades acionistas.

Não é incompatível o recebimento de quantias resultantes da produção e criação literária, artística, científica e técnica, assim como das publicações derivadas.

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Definidos, pelo EMJ, os deveres, os impedimentos, o domicílio e as incompatibilidades, a que propósito vem um código de conduta? O CSM considera que a matéria estritamente disciplinar regulada no EMJ “não esgota o universo de condutas que têm repercussão direta e indireta no exercício das funções dos juízes” e na “perceção deste exercício pelos cidadãos”. Assim, entende que há deveres que assentam num conjunto de valores comuns e que se projetam em deveres de conduta de ressonância mais ética do que jurídica. E sublinha que o Grupo de Estados Contra a Corrupção (GRECO), criado no âmbito do Conselho da Europa, em linha com a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (de 2003), tem feito recomendações no sentido que de que o EMJ não substitui um código de conduta, “nomeadamente por não regular o recebimento de ofertas e os conflitos de interesses”.

Por outro lado, nos termos do artigo 19.º, n.º 1, da Lei n.º 52/2019, de 31 de julho, as entidades públicas abrangidas devem aprovar Códigos de Conduta a publicar no Diário da República e nos respetivos sítios na Internet, para desenvolvimento, entre outras, das matérias relativas a ofertas institucionais e hospitalidade.

Assim, o CCJTJ é um instrumento orientador que visa estabelecer um compromisso de conduta dos juízes dos Tribunais Judiciais, tanto no exercício das suas funções como nos atos da sua vida privada com repercussão no desempenho funcional e na dignidade do seu cargo (ver artigo 1.º). Abrange todos os juízes dos Tribunais Judiciais, incluindo os jubilados e os que desempenham funções no âmbito de comissões de serviço. Por conseguinte, em nome da transparência, “os juízes dos Tribunais Judiciais abstêm-se de participar em atividades extrajudiciais que possam ser considerados, por uma pessoa razoável, bem informada, objetiva e de boa-fé, como suscetíveis de afetar a confiança dos cidadãos na imparcialidade das suas análises e decisões”. E, em nome da integridade, não se podem aproveitar do estatuto ou prestígio profissional, nem invocar tal qualidade em atos da sua vida privada, para obter vantagens ou precedências indevidas, para si ou para terceiro, e não podem utilizar informação confidencial a que tenham acesso por via das suas funções em benefício privado, próprio ou de terceiro.

Relativamente a ofertas, convites e hospitalidade, ficam impedidos de receber quaisquer vantagens, patrimoniais ou não, diretas ou indiretas, para si ou para terceiros, em razão do cargo ou funções que desempenham, que não sejam socialmente adequadas. Também ficam impedidos de usar a condição de magistrado judicial para levar a cabo ação ou omissão que, objetivamente, “possa ser interpretada como solicitação de benefício indevido para si ou para terceiro, interveniente processual ou não”.

“Os juízes dos Tribunais Judiciais abstêm-se de aceitar, a qualquer título, de pessoas singulares e coletivas, vantagens ou ofertas de bens ou serviços, de qualquer valor, ou convites para espetáculos ou outros eventos sociais, culturais ou desportivos, que possam condicionar a objetividade, a imparcialidade ou a integridade do exercício das suas funções”, lê-se no documento. Porém, há exceções. Podem aceitar convites ou benefícios similares relacionados com a participação em cerimónias oficiais, conferências, congressos, seminários ou outros eventos análogos, “quando subsista interesse público relevante na participação, nomeadamente, em razão de representação oficial que importe assegurar”. Também se excetuam os casos que ocorram em contexto de relações pessoais e familiares.

Para acompanhar e supervisionar o cumprimento do CCJTJ, foi criado o Conselho de Ética, de natureza “exclusivamente consultiva” e que não intervém em qualquer procedimento de caráter disciplinar. Entre as suas funções, emitirá pareceres sobre a compatibilidade de determinados comportamentos com o CCJTJformulará opiniões ou recomendações sobre questões conexas com a sua aplicação ou com a sua atualização.

O Conselho de Ética será constituído por um juiz conselheiro, um juiz desembargador, um juiz de Direito e duas personalidades de reconhecido mérito, indicadas pelo CSM. O mandato é de quatro anos, não renovável. E o exercício de funções não implica qualquer compensação económica, além do reembolso de despesas incorridas para participação nas reuniões, mediante a apresentação ao CSM de documento comprovativo das mesmas.

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Passará a administração Justiça a ser, doravante, mais rigorosa e mais prudente?

2024.04.22 – Louro de Carvalho

domingo, 21 de abril de 2024

Jesus: belo, bom e verdadeiro Pastor do seu rebanho visível e espiritual

 

“A Igreja antiga encontrou, na escultura do seu tempo, a figura do pastor que carrega a ovelha nos próprios ombros. Talvez estas imagens façam parte do sonho idílico da vida campestre que tinha fascinado a sociedade dessa época. No entanto, para os cristãos, esta figura tornava-se, com toda a naturalidade, a imagem daquele que se encaminhou para buscar a ovelha tresmalhada, a Humanidade; a imagem daquele que nos acompanha nos nossos desertos e nas nossas confusões; a imagem daquele que tomou sobre os seus ombros a ovelha perdida, que é a Humanidade, e a leva para casa. Ela tornou-se a imagem do verdadeiro Pastor, Jesus Cristo.”

Bento XVI, Vaticano, 7 de Maio de 2006

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O 4.º domingo da Páscoa é considerado o “Domingo do Belo (Kalós, em grego) ou Bom Pastor”, pois todos os anos, neste domingo, somos convidados a escutar um trecho do capítulo 10 do Evangelho de João, que mostra Jesus como “o Belo Pastor”, pois conhece e ama as suas ovelhas, cuida delas, em cada passo do caminho, e dá a vida por elas, se for necessário. Por sua vez, as ovelhas de Jesus sabem que podem confiar n’Ele, incondicionalmente. Ele chama-as pelo nome de cada uma e cada uma ouve a sua voz e segue-O.

O evangelista utiliza esta imagem para uma catequese sobre a missão de Jesus: a obra do Messias é levar os homens a pastagens verdejantes e a fontes cristalinas de onde brota a Vida em plenitude.

Literariamente falando, este discurso simbólico assenta em materiais do Antigo Testamento (AT), e, em especial, no texto de Ez 34, como chave da compreensão da metáfora do pastor e do rebanho.

Falando aos exilados da Babilónia, Ezequiel observa que os líderes de Israel, maus pastores, levaram o Povo por caminhos de sofrimento, de injustiça e de morte, mas o próprio Deus assumirá a condução do seu Povo: colocará à frente do rebanho um Belo Pastor (o “Messias”), que o livrará da escravidão e o conduzirá à Vida. Esta promessa de Deus cumpre-se em Jesus.

Segundo João, Jesus teria pronunciado o “discurso do Belo Pastor” em Jerusalém, no contexto da “festa da Dedicação do Templo”, chamada, em hebraico, “Hanûkkah”, e que celebra a purificação do Templo de Jerusalém (164 a.C.), por Judas Macabeu, depois de o rei selêucida Antíoco IV Epifânio o ter profanado (167 a.C.), edificando, ali, um altar a Zeus. O símbolo por excelência dessa festa, a festa da Luz, é um candelabro de oito braços (“hanûkkiyyah”), que vão sendo progressivamente acesos nos oito dias da festa. Jesus tinha, pouco antes, curado um cego de nascença, assumindo-se como a Luz que veio iluminar as trevas do Mundo.

Apesar do ambiente festivo, a relação entre Jesus e os líderes judaicos é de grande tensão. Vendo a pressão dos líderes sobre o cego de nascença, para que não abraçasse a luz, Jesus denuncia a forma como tratam a comunidade, interessados em proteger os interesses pessoais e usando o Povo em benefício próprio. São, pois, “ladrões e salteadores”, que tomaram de assalto o rebanho que lhes foi confiado e roubam ao Povo a oportunidade de encontrar a Vida.

O evangelho desta dominga começa com a solene apresentação que Jesus faz de si próprio: “Eu sou o Belo (Bom) Pastor”. O adjetivo “belo” ou “bom” deve entender-se no sentido de “modelo” ou “ideal”. E Jesus diz que o pastor modelo é capaz de dar a vida pelas suas ovelhas.

Jesus põe em confronto dois tipos de cuidadores do rebanho. O primeiro tipo é o do pastor mercenário. O mercenário é contratado por dinheiro. O rebanho não é seu e ele não ama as ovelhas que lhe foram confiadas. Limita-se a cumprir contrato, fugindo de tudo o que ponha em perigo a sua vida ou os seus interesses. O seu coração não está com o rebanho. Por isso, ao sentir perigo, abandona o rebanho, a fim de salvaguardar os seus interesses egoístas. O mercenário, se vê o lobo a preparar-se para atacar o rebanho, foge. O lobo representa tudo o que põe em perigo a vida das ovelhas: interesses dos poderosos, opressão, injustiça, violência e ódio do Mundo. Os dirigentes judeus são “mercenários”. O outro tipo é o “Belo Pastor”. O pastor verdadeiro presta o serviço por amor. Não está interessado em cumprir contrato, mas em fazer com que as ovelhas tenham vida e sejam felizes. A prioridade é o bem delas. Ele ama-as. Por isso, arrisca tudo em benefício do rebanho. Está disposto a dar a vida pelas ovelhas, que ama e que podem confiar n’Ele. Jesus é o modelo do verdadeiro pastor.

Depois, Jesus aprofunda a ligação do Belo Pastor com as suas ovelhas. Conhece cada uma delas, tem uma relação pessoal e única com cada, conhece-lhes os sofrimentos, os dramas, os sonhos e as esperanças. É relação tão especial que é semelhante à relação de amor e de intimidade que tem com o próprio Deus, seu Pai. Este amor, pessoal e íntimo leva Jesus a pôr a vida ao serviço das suas ovelhas, e até a oferecê-la para que todas elas tenham Vida e Vida em abundância. Quando as ovelhas estão em perigo, Ele não as abandona. A sua atitude de defesa intransigente do rebanho é ditada por um amor sem limites, que vai até ao dom de si próprio.

Mais adiante, Jesus diz quais são as suas ovelhas e quem pode fazer parte do rebanho. Ao dizer “tenho ainda outras ovelhas que não são deste redil e preciso de as reunir”, deixa claro que a sua missão não se encerra nas fronteiras limitadas do Povo judeu, mas é universal e destina-se a dar Vida a todos os povos da Terra. A comunidade de Jesus, a Igreja, não se esgota numa determinada instituição nacional, social ou cultural, mas é comunidade sem fronteiras, onde todos têm lugar. É comparável, como diz o Papa Francisco, à Capelinha das Aparições do Santuário de Fátima, transparente e de portas abertas a todos, todos, todos. O que é decisivo, para integrar a comunidade de Jesus, é acolher o seu projeto. Nascerá, então, a comunidade única, cuja referência é Jesus e que caminhará com Ele ao encontro da Vida eterna (“elas ouvirão a minha voz e haverá um só rebanho e um só pastor”).

Por fim, Jesus revela que a sua missão se insere no desígnio do Pai de dar Vida aos homens. Assume esse desígnio e dedica toda a sua vida terrena a cumprir a missão que o Pai lhe confiou. Ao cumprir o projeto de amor do Pai em prol dos homens, age de acordo com a sua condição de Filho. Ao dar a sua vida, Jesus está cônscio de que não perde nada. O seu dom não termina em fracasso, mas em glorificação. Para quem ama, não há morte, pois o amor gera a Vida definitiva. A sua entrega não é acidente ou inevitável fatalidade, mas o gesto livre de alguém que ama o Pai, ama os homens e escolhe o amor até às últimas consequências. O seu dom, livre, gratuito e generoso, manifesta o seu amor pelo Pai e pelos homens.

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primeira leitura (At 4,8-12) dá-nos um testemunho de Pedro, proclamado em Jerusalém ante as autoridades judaicas: Jesus é o único Salvador, já que “não existe debaixo do céu outro nome, dado aos homens, pelo qual possamos ser salvos”. É a forma particular de Pedro para dizer que Jesus é o único pastor que nos conduz à Vida verdadeira.

O trecho em referência é, sobretudo, uma catequese destinada aos crentes, mostrando-lhes como se deve concretizar o testemunho dos discípulos sobre Jesus. A primeira indicação que Lucas dá é que Pedro estava “cheio do Espírito Santo”. Os discípulos não estão sozinhos ou abandonados à sua sorte, quando vão ao Mundo para anunciar a salvação. É o Espírito que os conduz na missão, os orienta no testemunho e lhes dá a coragem necessária para enfrentarem a hostilidade do Mundo. Cumpre-se a promessa de Jesus: “Quando vos levarem às sinagogas, aos magistrados e às autoridades, não vos preocupeis com o que haveis de dizer em vossa defesa, pois o Espírito Santo vos ensinará, no momento próprio, o que haveis de dizer” (Lc 12,11-12).

“Cheio do Espírito Santo”, Pedro – o paradigma do discípulo que testemunha Jesus e o seu projeto ante o Mundo – passa de réu a acusador. Os dirigentes judaicos, barrados pelos seus preconceitos e interesses, catalogaram a doutrina de Jesus como contrária ao desígnio de Deus e assassinaram Jesus, mas a ressurreição demonstrou que Jesus veio de Deus e que o projeto d’Ele tem o selo de garantia de Deus. Ao ressuscitar Jesus, Deus desautorizou os líderes religiosos de Israel e deu razão a Jesus. Citando um salmo, Pedro compara a insensatez dos Judeus à cegueira do construtor que rejeita como imprestável a pedra que vai aproveitada por outro construtor como pedra principal. Jesus é a pedra base do projeto que Deus tem para o Mundo. A prova é o paralítico que adquiriu a mobilidade pela ação de Jesus (“é por Ele que este homem se encontra perfeitamente curado na vossa presença”). Os Judeus rejeitaram Jesus, porque estão longe da lógica de Deus.

Pedro remata o discurso, garantindo que Jesus é a fonte única de onde brota a salvação, ou seja, a libertação dos males físicos e a salvação entendida como totalidade. Jesus (o nome hebraico “Jesus” significa “Javé salva”) é o único canal por onde a salvação de Deus atinge os homens. É afirmação contundente, porque é feita “olhos nos olhos” aos que condenaram Jesus como blasfemo. E aos que aderiram a Jesus a exortação é a que sejam testemunhas da salvação, levando o nome de Jesus a toda a parte, com toda a “parresía”, palavra grega que significa audácia, valentia, contra o medo, contra a adversidade e a hostilidade ambiente hostil e adverso.

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segunda leitura, da 1.ª Carta de João (1Jo 3,1-2), convida-nos a contemplar o amor de Deus pelo homem. É porque nos ama com “amor admirável” que Deus está apostado em levar-nos a superar a nossa condição de debilidade e de fragilidade e nos enviou Jesus, o Belo Pastor. E, à laia de prólogo à segunda parte da carta, o autor recorda aos cristãos que Deus os constituiu seus “filhos”. Por detrás dessa iniciativa de Deus está o seu imenso amor. O título de “filhos de Deus” que os crentes ostentam não é só título honorífico, mas título que define a situação dos que são amados por Deus com um amor “admirável” e que receberam de Deus Vida nova.

Ser “filho de Deus” implica estar em comunhão com Ele e viver consoante com o seu desígnio. Os “filhos de Deus” realizam as obras de Deus, ao passo que os “filhos do diabo” rejeitam a vida nova de Deus e não praticam “a justiça, nem amam o seu irmão”.

A condição de “filhos de Deus”, que fazem as obras de Deus, situa os crentes numa posição singular ante o “Mundo”. Vivendo em conformidade com o desígnio de Deus, conduzem as suas vidas com valores diferentes dos valores do “Mundo”, pelo que este irá ignorá-los e, mesmo, persegui-los. Com efeito, o “Mundo” também recusou Cristo e a sua proposta de salvação.

Apesar de serem já “filhos de Deus” desde o dia do Batismo (o dia em que aceitaram a vida nova de Deus), os crentes continuam a caminho da sua realização definitiva, a caminho do dia em que a fragilidade e a finitude humanas serão superadas. Então, manifestar-se-á, nos crentes, a Vida plena. Os crentes estarão em total comunhão com Deus e serão “semelhantes a Ele”. A filiação divina é uma realidade que marca a caminhada dos seres humanos pela Terra e que implica uma vida de coerência com as obras de Deus. Porém, só no céu, depois de se libertar da sua condição de fragilidade, o crente conhecerá a sua realização plena.

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Têm razão os filhos de Deus, quais ovelhas amadas pelo Belo Pastor, que deu a vida por elas, para cantarem, sobretudo em Tempo de Páscoa:

“A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se pedra angular.

Dai graças ao Senhor, porque Ele é bom, porque é eterna a sua misericórdia.
Mais vale refugiar-se no Senhor do que fiar-se nos homens.
Mais vale refugiar-se no Senhor do que fiar-se nos poderosos.

Eu Vos darei graças, porque me ouvistes e fostes o meu Salvador.
A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se pedra angular.
Tudo isto veio do Senhor: é admirável aos nossos olhos.

Bendito o que vem em nome do Senhor, da casa do Senhor nós vos bendizemos.
Vós sois o meu Deus: eu Vos darei graças. Vós sois o meu Deus: eu Vos exaltarei.
Dai graças ao Senhor, porque Ele é bom, porque é eterna a sua misericórdia.”

2024.04.21 – Louro de Carvalho