terça-feira, 2 de abril de 2024

SNS ou privatização da Saúde?

 

Do recém-empossado governo da Aliança Democrática (AD) é de esperar maior aposta na privatização dos cuidados de saúde, sob o pretexto do défice de resposta do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Ganha, pois, oportunidade, uma leitura atenta do artigo “The effect of health-care privatisation on the quality of care” (“O efeito da privatização dos cuidados de saúde na qualidade dos cuidados”), de Benjamin Goodair, publicado na revista Lancet, a questionar as alegadas vantagens da privatização, de que respigam os aspetos mais pertinentes.

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Nos últimos 40 anos, muitos sistemas de saúde, que eram propriedade pública ou financiados pelo erário público, avançaram para a privatização, sobretudo pela externalização para o setor privado. O principal objetivo era, alegadamente, melhorar a qualidade dos cuidados pelo aumento da concorrência no mercado, juntamente com os benefícios do setor privado, mais flexível e centrado no doente. Porém, surgiram preocupações de que as reformas podiam resultar em piores cuidados, por ser mais fácil reduzir custos do que aumentar a qualidade dos cuidados de saúde, e numerosos estudos examinaram os efeitos na qualidade dos cuidados recebidos pelos doentes.  

Em países de elevado rendimento, os hospitais que passaram do público para o privado tenderam a obter lucros mais elevados do que os públicos que não passaram, sobretudo pela admissão seletiva de doentes e pela redução do número de funcionários. Além disso, os aumentos agregados na privatização correspondem, não raro, a piores resultados de saúde para os doentes. Poucos estudos avaliaram esta reforma em todas as suas dimensões e há lacunas na literatura. Contudo, há evidências que desafiam as justificações para a privatização dos cuidados de saúde, sendo fraco o apoio científico a uma maior privatização dos serviços de saúde.

Desde os anos 80, muitos serviços de saúde nacionalizados vêm procurando a privatização, esperando que os mercados mistos e a inclusão de interesses privados melhorem a qualidade a custo inferior ao do setor público. Embora haja muitas formas de privatização, incluindo a transferência do financiamento do Estado para os privados, a mais popular é a subcontratação ou externalização de serviços. O governo mantém o poder de decisão, mas contrata uma organização privada para prestar o serviço acordado. Embora o modelo seja apelativo, a sua conveniência é contestada por quem aduz que os mecanismos de mercado não funcionam eficazmente na saúde.

Os seus defensores aduzem que a responsabilidade financeira obriga os privados a garantir o bem-estar dos doentes, a inovar e a eliminar a burocracia desnecessária. Estes motivos de lucro dariam a vantagem competitiva sobre o setor público, limitado por culturas, por regulamentos rígidos e por poucos incentivos à inovação. E os privados podem ter efeitos concorrenciais, melhorando o desempenho do sistema, pois são incentivados a prestar serviços de qualidade, para ganharem a confiança dos organismos que os contratam (sobretudo quando os preços são fixos, em grande parte, o que sucede quando há comprador único, o governo).

Não obstante, a motivação do lucro nem sempre dá os resultados desejados. Incentivar os privados a priorizar a qualidade dos cuidados de saúde é desafiante para os organismos públicos, pois a qualidade pode ser difícil de verificar e de ser prioritária. A assimetria de informação surge quando os contratantes se esforçam por identificar os níveis de qualidade e de desempenho dos prestadores. Os mercados competitivos desencorajam os prestadores de revelar informações sobre a qualidade dos serviços. Assim, os resultados observáveis (por exemplo, o custo do serviço) podem ser prioritários, quando é difícil melhorar a qualidade, em relação aos concorrentes.

Assim, nos sistemas de saúde, a relação entre concorrência e qualidade é difícil de identificar, se não houver dados fiáveis que a meçam. Na ausência de incentivos corretos para que os prestadores privados priorizem a qualidade dos cuidados, podem adotar-se políticas que façam sacrifícios marginais na qualidade, em troca de reduções nos custos, como a redução do pessoal, a diminuição dos salários, a escolha seletiva de doentes rentáveis, a prescrição excessiva de serviços ou a alta prematura de doentes.

Anteriores análises centraram-se nos efeitos da propriedade dos hospitais na qualidade, de forma transversal, isto é, comparando os resultados de prestadores públicos e de privados. Estes comportam-se de forma diferente daqueles. No entanto, esta asserção não é absoluta. Com efeito, as análises transversais, quanto à propriedade, nem sempre identificam um grupo de comparação que preste serviços semelhantes a tipos de doentes semelhantes. O setor privado trata, em geral, pessoas mais saudáveis em sistemas de saúde em que alguns serviços são prestados pelo Estado e outros pelos privados. Os indivíduos que acedem a cuidados de saúde privados tendem a ter mais recursos e melhor saúde. Por isso, ao comparar resultados em hospitais públicos e privados, é difícil controlar o enviesamento dos doentes menos graves que são selecionados em hospitais privados e que têm melhores resultados, não devido à qualidade, mas devido ao estado de saúde subjacente desses doentes. O efeito da propriedade é só parte da justificação para privatizar.

Por outro lado, a concentração no tipo de propriedade esquece o facto de a concorrência entre prestadores dever produzir efeitos indiretos positivos na qualidade dos cuidados prestados pelos prestadores públicos. Se a externalização funcionar como os defensores teorizam, os prestadores públicos melhorarão a sua qualidade, aprendendo com os prestadores inovadores do setor privado, ou devido a motivação intrínseca para evitar perder contratos para os privados. E a concorrência permitirá que os contratantes sejam mais exigentes no processo de contratação. Assim, quaisquer diferenças entre prestadores públicos e privados podem ser tendenciosas para compreender todos os efeitos do crescimento das externalizações.

A nível ecológico, elevadas taxas de privatização e de externalização corresponderam, quase sempre, a piores resultados em termos de saúde. Analisados os níveis regionais de privatização para um país inteiro, concluiu-se que o aumento da percentagem de externalização correspondia a taxas de mortalidade evitáveis mais elevadas do que antes da externalização.  E, avaliadas as taxas de mortalidade em populações encarceradas, encontraram-se taxas de mortalidade evitáveis mais elevadas, à medida que aumentava a proporção de cuidados de saúde externalizados. Além disso, os serviços de limpeza externalizados correspondiam a taxas mais elevadas de infeção hospitalar do que os serviços de limpeza internos.  

Foram encontrados resultados mais matizados na Suécia, quando os resultados em termos de hospitalizações evitáveis melhoraram em todo o país, após a reforma de privatização dos cuidados primários. O estudo não mostrou uma variação dose-resposta – isto é, as áreas reformadas primeiro ou que tiveram os maiores aumentos de prestadores privados não mostraram as maiores melhorias na qualidade. Por isso, este fator não é atribuível a causa conhecida. 

Até agora, nenhum dos estudos descobriu que o aumento da privatização correspondia a melhores resultados de saúde para os doentes.

Alguns estudos avaliaram o pessoal como medida intrínseca da provável qualidade dos cuidados recebidos pelos doentes ou em termos das condições de emprego do pessoal. Vários artigos mediram a diferença relativa das taxas de contratação de pessoal antes e depois da privatização dos hospitais. Em geral, os estudos concluíram que a externalização correspondia a um menor número de efetivos por doente. O mesmo se verificou em relação ao pessoal de limpeza. Todavia, o efeito variava consoante o tipo de pessoal. Por exemplo, só os enfermeiros mais qualificados tiveram números reduzidos nos hospitais externalizados, em comparação com os hospitais públicos, nos Estados Unidos da América (EUA). E, nos estudos que mediram o número de médicos, este valor não foi reduzido após a privatização, ao passo que a maioria das outras categorias de pessoal o foi.

Alguns artigos analisaram os resultados para os trabalhadores, tais como salários, contratos e saúde dos trabalhadores. No Canadá, a externalização dos serviços de alimentação e de limpeza correspondeu a menor número de lesões conexas com o trabalho e a períodos mais curtos de baixa por cada lesão conexa com o trabalho (bem como a algumas que se mantiveram inalteradas). Um estudo qualitativo de acompanhamento sugeriu que a probabilidade de subnotificação destes incidentes, após a privatização, dificultou a interpretação dos dados e discutiu as incertezas sobre se a privatização melhorou as condições de trabalho ou se apenas suprimiu a comunicação de dados. Outro artigo avaliou as alterações na desigualdade salarial, na segurança do emprego e na carga de trabalho na Coreia do Sul, tendo encontrado piores resultados em todos estes domínios nos serviços privatizados, em comparação com os não privatizados. 

Dois artigos que avaliaram a conversão de hospitais públicos em privados, nos EUA, concluíram que os hospitais se tornaram menos acessíveis, após a conversão, porque a combinação de casos mudou para doentes mais rentáveis e porque o número de serviços prestados foi reduzido. Porém, a conversão das práticas de cuidados primários, na Croácia, em propriedade privada teve resultados mais positivos – os doentes recebem horários de consulta mais precisos e acedem aos cuidados de saúde através de novos meios, como chamadas telefónicas fora de horas. Em geral, os resultados sugerem que o acesso aos cuidados de saúde pode ser afetado de diferentes formas, com horários de marcação precisos e tempos de espera reduzidos, mas com efeitos que podem prejudicar os grupos cujos tratamentos têm baixos lucros para o setor privado.

Os estudos centrados em resultados financeiros podem ter conclusões diferentes. Contudo, verificou-se a tendência para o aumento das margens de lucro dos hospitais, que passaram a ter fins lucrativos e que tiveram, em média, desempenho financeiro pior do que os hospitais que permaneceram públicos. Talvez haja um efeito de seleção, pelo que é necessário trabalhar mais para compreender melhor os efeitos no desempenho financeiro.

Enfim, há um pequeno número de estudos que abordam o efeito da privatização na qualidade dos cuidados oferecidos pelos prestadores de cuidados de saúde, mas o quadro é consistente. No mínimo, a privatização dos cuidados de saúde quase nunca teve efeito positivo na qualidade. E a terceirização não é benigna, pois reduzirá custos, mas em detrimento da qualidade. Globalmente, a análise fornece provas que desafiam a justificação para a privatização da saúde e conclui que o apoio científico para maior privatização dos serviços de saúde é fraco.

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A este respeito, diz o constitucionalista Vital Moreira que “a ineficiência do SNS, entre nós”, tal como “o argumento ideológico contra ele”, leva ao “triunfo da opção privatizadora”.  

Vital Moreira, respondendo a um leitor segundo o qual “as PPP [parcerias público-privadas] na gestão de hospitais do SNS (Braga, Loures, etc.) provaram ser vantajosas, justificando-se o seu regresso”, refere que a hostilidade às PPP, no I Governo de António Costa, não contara com o seu apoio, como em tempo explanou, por serem “um bom exercício de benchmark competition para a gestão pública, cuja ineficiência é um dos principais handicaps do SNS, e que a reforma, há pouco iniciada – diretor executivo do SNS, instituição das ULS [Unidades Locais de Saúde], regime de ‘dedicação plena’, etc., – pode melhorar, se não for interrompida”. Porém, receia que, “em vez de  apostar na melhoria da eficiência do SNS”, o governo “prefira usar a ineficiência existente como pretexto para os seus projetos de privatização, que não se limitam às PPP…”.  

Em minha opinião, privatizar corresponde à tendência de os governos se desresponsabilizarem dos setores que promovem o Estado social: Educação, Saúde, Segurança Social, etc. Depois, a asserção, assaz repetida, de que os privados gerem melhor faz escola. Mais: os privados, pagam melhor, no imediato, e “selecionam” mais os doentes. Além disso, ao enunciarem-se as vantagens do setor privado, esquecem-se as suas limitações. Ora, a questão resolve-se com a atratividade das carreiras e com a concorrência, por um lado, e com a cooperação, por outro, com os setores privado, social e solidário. Isso gera mais despesa estrutural? Paciência! Vivemos num país de pessoas cada vez mais envelhecidas e frágeis, a que o SNS tem de dar resposta condigna.   

2024.04.02 – Louro de Carvalho

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