sábado, 6 de abril de 2024

Há mais de 500 mil cidadãos portugueses com dependências graves

 

O Instituto para os Comportamentos Aditivos e Dependências (ICAD) estima que haja, no país, “480 mil pessoas com problemas relacionados com o uso de álcool e quase 50 mil com problemas relacionados com drogas”, garantiu ao Diário de Notícias (DN) o vogal do seu conselho diretivo, o médico Manuel Cardoso. A assunção do problema consolida-se com o relatório final do V Inquérito Nacional ao Consumo de Substâncias Psicoativas na População Geral, Portugal 2022 (INPG), ora publicado pelo ICAD, no qual são contabilizados os consumos, com ou sem substâncias aditadas. O álcool e o jogo instantâneo são as adições que mais alertam as autoridades.

O relatório analisa os consumos de várias substâncias psicoativas, lícitas e ilícitas, desde 2001 até 2022, e adições sem substâncias (caso do jogo), apontando as conclusões para maior excesso no consumo de álcool. “Aquilo que mais me preocupa no estudo, em relação aos consumos, é o consumo de bebidas alcoólicas”, adianta Manuel Cardoso, assegurando: “Independentemente desse consumo há, depois, práticas de padrões de consumo de risco que são graves. Aqueles que dizem, neste estudo, que consumiram grandes quantidades, num período curto de tempo, ou seja, que se embriagaram, são uma percentagem muitíssimo alta. Essa é a nossa preocupação do que ao inquérito diz respeito.”

O inquérito foi realizado pelo CICS.NOVA – Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa (NOVA FCSH) para o SICAD – Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências, na sequência dos estudos feitos em 2001, em 2007, em 2012 e em 2017. Os resultados consolidam o conhecimento da evolução do consumo e dos perfis dos consumidores de substâncias psicoativas – lícitas e ilícitas – bem como das representações sociais em torno de comportamentos de risco, das práticas de jogos de fortuna e de azar e da utilização da Internet. 

Foram incluídos os indicadores do Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência (OEDT), com vista à comparação internacional. A leitura é feita por sexo, por grupos etários e, pelas regiões – a nível de NUT II (Nomenclatura das Unidades Territoriais para fins Estatísticos), indicadores que permitem comparar os resultados de agora com os obtidos nas edições anteriores.

O universo considerado no estudo foi a população residente em Portugal, entre os 15 e os 74 anos de idade. A amostra seguiu o sistema de tiragem polietápico, estratificado por conglomerados, com seleção das unidades primárias (municípios) e das unidades secundárias (subsecções estatísticas) de forma aleatória proporcional. A seleção das unidades finais de observação – os indivíduos – realizou-se por sorteio sistemático na eleição dos lares e com recurso a tabelas de números aleatórios para o processo de seleção dos indivíduos dentro do lar.

Resultaram do trabalho de campo 12 038 entrevistas válidas. Os resultados apresentados foram ponderados por sexo, por grupo etário e por NUT II, para garantir a representatividade definida na amostra teórica para estes parâmetros. Os cálculos foram feitos para um nível de confiança de 95 %. O álcool é a substância psicoativa mais consumida, sendo que 74,7 % das pessoas com idades compreendidas entre os 15 e os 74 anos tiveram, pelo menos, uma experiência de consumo na vida, 61,5 % declararam consumos recentes (nos últimos 12 meses), e 54,8 % declararam consumos, no decorrer dos últimos 30 dias, e 48 % declararam ter consumido tabaco, ao longo da vida. Esta prevalência desce para 29,8 % e 28,7 %, respetivamente, ao considerar os consumos recentes (últimos 12 meses) e correntes (últimos 30 dias).

O consumo ao longo da vida de medicamentos (sedativos, tranquilizantes ou hipnóticos) apresenta a prevalência de 14,2 %, situando-se nos 7,4 %, no decorrer dos últimos 12 meses, e em 6,5 %, quando se consideram os últimos 30 dias. O consumo de estimulantes apresenta, para ao longo da vida, a prevalência de 1,1 %, descendo para os 0,2 %, nos últimos 12 meses, e para os 0,1 %, nos últimos 30 dias. A prevalência de consumo de analgésicos opioides é de 7,5 %, ao longo da vida, 4,1 %, nos últimos 12 meses, e 2 %, nos últimos 30 dias.  

O consumo de qualquer substância psicoativa ilícita é de 11,2 % ao longo da vida, de 2,6 %, nos últimos 12 meses, e de 2,1 %, nos últimos 30 dias. A substância que mais contribui para esta prevalência é a canábis, que apresenta a prevalência de 10,5 %, para os consumos ao longo da vida, de 2,4 %, para os últimos 12 meses, e de 2 %, para os últimos 30 dias. As restantes substâncias apresentam prevalências ao longo da vida entre os 0,9 % (cocaína) e os 0,2 % (novas substâncias psicoativas).

As prevalências de consumo entre a população geral são superiores entre os inquiridos do sexo masculino, independentemente da substância psicoativa considerada, exceto para medicamentos. O consumo de substâncias psicoativas ilícitas em Portugal, nos últimos 12 meses, situa-se abaixo do valor médio das prevalências observadas num conjunto de cerca de 30 países europeus para os quais se dispõe de informações comparáveis.

Para comparação das cinco edições do INPG, considera-se o intervalo de idades de 15 a 64 anos. O álcool é a substância psicoativa com maiores prevalências de consumo, ao longo da vida, oscilando entre o mínimo de 73,6 % (em 2012) e o máximo de 86,4 % (em 2017). O tabaco, segunda substância psicoativa mais consumida, regista prevalências entre os 40 % (em 2001) e os 51 % (em 2022). No consumo de medicamentos sedativos as prevalências do consumo, ao longo da vida, de 2001 a 2012, rondam os 20 %, descendo 12,1 %, em 2017, e 13 %, em 2022.

No consumo de substâncias psicoativas ilícitas, a canábis é a substância que apresenta maiores prevalências, independentemente do ano de aplicação. Dos 7,6 % registados em 2001, o consumo sobe para 11,7 %, em 2007, descendo, em 2012, para 9,4 %, para voltar a subir, em 2017, para 11 % e, em 2022, para os 12,2 %. Todas as outras substâncias psicoativas ilícitas consideradas apresentam prevalências de consumo ao longo da vida inferiores a 2 %. Cocaína, anfetaminas e heroína registaram aumentos, entre 2001 e 2007, e descidas, entre 2007 e 2012, mantendo esses valores em 2017 e em 2022. No caso do ecstasy, que registou aumentos de 2001 para 2007, mantém, em 2012, os valores que apresentava; e, em 2017, apresenta uma descida, para voltar a subir, em 2022. As prevalências de LSD (dietilamida do ácido lisérgico), após terem atingido o máximo de 0,6 %, em 2007 e em 2012, voltam, em 2022, aos valores de 2001 e de 2017 (0,4 %).

O valor das prevalências de cogumelos alucinógenos e das novas substâncias psicoativas vem a descer, rondando, nas duas últimas aplicações, de 0,2 % a 0,3 %.

A prevalência da prática de jogos de fortuna ou azar (jogos a dinheiro), que registou uma descida de quase 20%, entre 2012 e 2017, é de 55,6 % na população residente em Portugal, em 2022.

O jogo do Euromilhões é o que regista a prevalência mais elevada. A prevalência do jogo é mais elevada entre os homens do que entre as mulheres.

A prevalência da prática de jogos eletrónicos, nos últimos 12 meses, é de 8,8 %, em 2022, na população residente em Portugal. Do total da população, 79,6 % utiliza a Internet, registando uma subida de quase 20%, comparativamente a 2017.

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Na ótica de Manuel Cardoso, o consumo de álcool, além de ser “socialmente aceite” está enraizado na sociedade. Tem a ver com uma cultura de consumo de bebidas alcoólicas. Festeja-se tudo com álcool e isso é aceite. Por outro lado, como somos produtores de vinho, de cerveja e de outras bebidas alcoólicas, temos a enorme pressão da indústria e de todo o setor económico relacionado com a produção. Assim, a tolerância aos consumos é muito grande.

Graças à magnitude do consumo de álcool, o médico alerta para a necessidade de controlar a publicidade e o patrocínio, por parte de bebidas alcoólicas, de eventos culturais e desportivos, à semelhança do que sucedeu com o tabaco anteriormente. “Parece que há condições para fazer alterações à lei da publicidade. Em relação às bebidas alcoólicas, o patrocínio de eventos, nomeadamente culturais ou desportivos, é muito comum e tem de ser regulado”, observa.

Também o perigo espreita na Internet, pelo que tem de ser mais regulada e mais fiscalizada a publicidade online, digital, feita por influencers, o que não está a acontecer.

O facto de o álcool ser legal e de fácil acesso contribui para o tão considerável número de consumidores, muitos deles problemáticos. Encontra-se álcool em vários sítios, mesmo com regras, que não se cumprem na íntegra (como a proibição de venda a menores), nomeadamente nas grandes superfícies. O acesso é fácil e demasiado promovido. Com efeito, num supermercado, encontramos bebidas alcoólicas a esmo. A acessibilidade, até por via dos preços, é altamente facilitada. A facilidade de acesso, a disponibilidade, a publicidade e o marketing são enormes.

O consumo excessivo de álcool cria ou agrava inúmeros problemas de saúde e sociais, além da dependência. O problema é efeito do consumo, que está associado a doenças, como cirroses, cancros, pancreatites e a problemas de violência doméstica, a acidentes de viação e à violência contra pessoas, que chega a situações gravíssimas, até de homicídio.

O jogo é, para o ICAD, a segunda adição mais preocupante, sobretudo a lotaria instantânea (a raspadinha). A indução de dependência vem dos jogos de recompensa imediata. As pessoas com menos dinheiro jogam, na tentativa de encontrar resposta fácil aos seus problemas. Quando dão por elas, estão viciadas. Começam e, se têm retorno, nos primeiros momentos, continuam a jogar, convictas de que terão sempre retorno. Depois, se não tiverem retorno, jogam, porque, nalguma vez, há de haver retorno. Portanto, é para compensar o que gastaram. Nunca lá chegam, porque o jogo não está feito para isso.

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Sobre esta matéria, o médico João Goulão, presidente do ICAD (o ICAD substitui o SICAD), refere que o consumo abusivo de álcool e a utilização de substâncias ilícitas, sobretudo o crack (mais do que a heroína), são as maiores preocupações do ICAD, havendo mudado o perfil dos consumidores abusivos de álcool. Há um recrudescimento no consumo de álcool por pessoas abaixo da idade legal para o consumo e uma aproximação, no consumo, entre os dois sexos.

Os consumidores do crack (droga mais acessível, mais barata e mais gulosa) são pessoas mais fragilizadas socialmente e mais expostas no espaço público. Além disso, “o crack e outras drogas, fazem parte de cocktails, em alguns casos perfeitamente disparatados, que integram substâncias ilícitas e substâncias lícitas, como medicamentos fora do seu contexto terapêutico.

Estes consumos (álcool e drogas) ocorrem muito à vista de todos, em populações mais expostas e visíveis, como os sem-abrigo, e em população migrante desorganizada e vulnerável.

Embora no seu início, o ICAD tem em marcha um novo plano de combate aos problemas das dependências, ou seja, um plano estratégico, que assenta em três pilares fundamentais. O primeiro tem a ver com “empoderar”, isto é, com o trabalho preventivo, proporcionando às pessoas escolhas informadas. O segundo tem a ver com “cuidar”, isto é, oferecer a todos os que necessitam a possibilidade de se tratarem ou, pelo menos, de acederem a substâncias de risco menor para a sua saúde e para a saúde envolvente. E o terceiro tem a ver com “proteger”, ou seja, com a proteção ambiental e com a intervenção das forças de segurança, no sentido de proteger os utilizadores, “tendo em conta o que é a envolvente e as consequências dos seus atos”.

O ICAD, além da monitorização dos problemas conexos com a dependência de álcool e das drogas, monitoriza as adições ao jogo, os ecrãs e a Internet, dependências que se agravaram, devido ao período pandémico. As pessoas passavam muito tempo em casa, o que levou ao aumento significativo desse tipo de dependências, havendo pessoas que passam seis ou mais horas, por dia, no jogo – no caso online –, na Internet, nas redes sociais. Por isso, o ICAD está a preparar-se para lidar com tais dependências. É preciso um relançamento da capacidade de intervenção nessas matérias, que já eram tratadas pelo SICAD.

É óbvio que o ICAD pouco fará, se as polícias e a sociedade civil não ajudarem.

2024.04.06 – Louro de Carvalho

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